terça-feira, 12 de março de 2019

Religião é política? E a ciência é ateia?


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NOTA: Este texto meu de 2011 é um dos mais interessantes, pois toca direto nos cernes do problema e tem estilo leve, fluido, sem palavras rebuscadas ou excessiva formatação em negrito ou itálico. Ele ainda é parte daquela onda na qual, tendo tomado contato com o marxismo dialético a partir, sobretudo, de Gramsci, eu enxergava a sociedade como um “todo orgânico” de instituições inter-relacionadas, de forma que suas funções se complementavam ou até intercruzavam. Porém, ainda ansioso por romper com o dogmatismo religioso e a doutrinação forçada, creio que forcei em certas associações e definições quanto ao papel e natureza da religião e a como igrejas e Estados funcionam na prática. O artigo é mais um dos meus inúmeros exercícios de tatear o real naquela época formativa, então tem as limitações compreensíveis do meu pouco estudo, mas vale pela coragem de enfrentar os dilemas e de tentar articular ideias de forma autônoma. Fiz apenas algumas alterações redacionais pra atualização.



Duas perguntas essenciais devem ser respondidas pelos movimentos ateus, céticos e laicos no desenrolar de suas lutas se eles quiserem ir para frente e adquirir consistência visual, teórica e combativa. A primeira é se as religiões instituídas são uma forma de fazer política, ou, mais ainda, se elas mesmas são uma espécie de braço espiritual dos Estados modernos para que estes façam valer seus discursos morais e cívicos. A segunda é se a ciência, tomada como instrumento de análise e transformação racional e padronizada da realidade, deve definitivamente se assumir como partidária do ateísmo e, portanto, combater as religiões de modo militante, em concomitância com sua atividade profissional e objetiva obrigatória.

Não pretendo aqui esgotar a questão, que deve ser resolvida por todos aqueles racionalistas e fiéis que batalham pela não interferência de interesses privados nas esferas coletivas. Ainda assim, desejo dar minha contribuição, mesmo parcial e incompleta. Penso que, de acordo com um conceito mais amplo sobre o que é fazer política, não só as religiões instituídas, ao menos no Brasil e em alguns países em que elas exercem grande influência, são agentes poderosos de interesse e atuam conforme regras de conciliação e acomodação bastante terrenas, como também o Estado ainda lhes reserva uma grande dívida no sentido de mobilizar apoio para seus projetos de unidade patriótica e lhes tributa inúmeros privilégios patrimoniais e fiscais como retribuição ao preenchimento de lacunas, por vários séculos, que o poder público não quis ou não pôde suprir. Da mesma forma, segundo um conceito particular de religião, não julgo ser a ciência totalmente competente para intervir em assuntos de fé, a não ser que estes passem a concernir e a intervir no mundo real e na própria prática científica.

Vamos à questão do Estado, primeiramente. Hoje se defende que o Estado e os poderes públicos devem ser laicos, ou seja, separados de qualquer crença religiosa e de seus responsáveis. Parece-me que a pergunta deve ser não só reformulada, mas também especificada: será que, nos países em que as religiões ainda conservam enorme ou significativo poder, o Estado pode ou tem condições de ser laico? Antes de tudo, é preciso atentar ao fato de que, desde o início da história, os sacerdotes ou mágicos eram parte do poder coercitivo ou ordenativo, e isso tanto nas civilizações que chegaram a desenvolver comércio e escrita quanto nas pequenas tribos isoladas de todo o contato externo. Ou seja, nem se cogitava a separação entre autoridades temporais e espirituais tão corrente hoje. Tal característica passou intocada nos povos grego e romano (primeiro pagão e depois cristão) e nas monarquias feudais, sempre constituindo um crime o desvio ou a contestação do credo oficial.

Só com o Iluminismo do século 18 passou-se a postular a cisão entre Igreja e Estado, embora Hobbes e Locke, um século antes, já tenham contestado a ideia do direito divino dos reis. Veio a Revolução Francesa, que levou a sugestão à prática, mas vieram também Napoleão, que fez a concordata com Roma, e a Santa Aliança, que, no século 19, fez retrocederem todos os movimentos revolucionários. A salvação para o apartamento entre os assuntos eclesiásticos e governamentais na Europa e em países de desenvolvimento semelhante foi o progressivo avanço da ciência, da educação e da cultura, que laicizaram a sociedade – e continuam laicizando – e cujo processo não foi atrapalhado por alguns países que decidiram manter cultos oficiais.

Quanto aos povos de língua portuguesa – e espanhola, em algum grau –, embora pudessem ser citados outros casos semelhantes, as Luzes nunca chegaram com plenitude até aí. No caso do Brasil, a empreitada missionária aportou junto à colonizadora, e por séculos, mesmo após a proclamação da República laica, os jesuítas e outras ordens religiosas, ainda que com cortes pontuais, mantiveram o monopólio de nossa educação. O Império brasileiro foi oficialmente católico até o fim, quando nem mesmo os clérigos suportavam mais a ingerência estatal em seus assuntos. Em Portugal, a atrasada monarquia católica só acabou em 1911, e pouco depois o ditador Salazar ia tornar o clero novamente uma espécie de colaborador privilegiado do regime. Novamente na América, por volta dos anos 1930, mais de 90% de nossa população ainda era católica, e ações que vão desde a construção do Cristo Redentor e a cessão de seus direitos à Igreja até a instituição do feriado de 12 de outubro, em 1980, deixam claro quem ainda emocionava as mentes do povo. Paradoxalmente, desde a década de 1970, alguns setores católicos não desprezíveis se veriam embrenhados na oposição à tirania militar e às torturas e na defesa dos direitos das populações da floresta e dos pequenos agricultores contra a opressão latifundiária.

Hoje em dia, a Igreja controla grande quantidade de dinheiro, pessoas e instituições e não deve ser totalmente marginalizada das polêmicas que envolvam direitos humanos, políticas familiares e projetos de inclusão social, até porque ela já tomou parte em muitas delas com inegável sucesso. No caso das religiões evangélicas pentecostais e neopentecostais, vários dados novos se incluem: a formação de bancadas legislativas fortes, o vertiginoso crescimento do eleitorado, o domínio de gigantescos montantes financeiros e midiáticos e um extremo conservadorismo moral e religioso. Os movimentos secularistas devem ser mais duros com eles, mas isso não impede que o diálogo deva ser paciente, longo e não dogmático, até porque agora também o pentecostalismo penetrou em muitas iniciativas beneficentes, sociais e educacionais. Política é isto: todos cedem algo e todos ganham alguma coisa, em nome de um equilíbrio frágil que só terá fim quando os modelos atuais de Estado e sociedade também tiverem passado. Mas aí os problemas já serão outros...

E a ciência, onde entra nisso? Ela deve tomar parte em assuntos políticos e religiosos? O primeiro traço visível de sua história é que por muito tempo ela não foi separada nem da técnica, nem do poder dominante e nem, portanto, da magia. Os próprios filósofos gregos e romanos não se consideravam cientistas, e suas reflexões, quando não imbricadas ao poder, não se separavam das soluções práticas cotidianas. Na Idade Média, os ofícios profissionais não costumavam teorizar sobre seus procedimentos, e apenas com a Renascença a redescoberta do conhecimento da Antiguidade Clássica, somada às próprias inovações da época, inclusive espirituais (Reforma, heresias etc.), deu margem à autonomia do planejamento intelectual face à execução grosseira da produção material. Muitos cientistas dos séculos 17 e 18 se diziam religiosos, até que no século 19 doutrinas aparentadas em maior ou menor grau ao positivismo cismaram que a ciência deveria suplantar a religião. Marx, Engels e Lenin bem lembraram que os delírios místicos só desapareceriam por si sós quando o mundo alcançasse um alto progresso material, mas vieram lá o nazismo e o stalinismo e, com uma caricatura da superioridade da ciência e da razão, quase exterminaram a humanidade. Pouco depois, parece ter surgindo naturalmente uma tácita separação amigável, mas atualmente a questão voltou à tona com o acirramento dos fundamentalismos religiosos anticientíficos em diversos pontos do planeta. Afinal, a ciência é intrinsecamente ateia e antirreligiosa?

Algumas categorias devem ser postas em pratos limpos. Antes de mais nada, ao contrário dos animais, o ser humano sempre foi um ser de transcendência, quer dizer, constantemente tentou enxergar, e conseguiu, além da realidade que se lhe apresentava em estado bruto e, com isso, não só a transformou segundo suas necessidades como também, com suas elucubrações mentais, erigiu civilizações. Esse processo de reorganização do real na própria mente é extremamente subjetivo, e por isso os conflitos pessoais sempre hão de surgir; ainda está para se verificar, contudo, se existem também “subjetividades grupais” que condicionam uma mesma transcendência a certos grupos de pessoas (países, etnias, religiões, clubes etc.). Essa subjetividade particular não deixa de ser influenciada pelo próprio meio objetivo, comum a todas as pessoas, mas, por causa das diferenças individuais, enxergado de modos diferentes. Essas discrepâncias é que tornaram a raça humana tão multifacetada, mas não impediram que a referida capacidade de transcendência a fizesse evoluir. (Talvez seja esse o sentido da frase de Einstein segundo a qual a religião sem a ciência é cega, e a ciência sem a religião é capenga.)

Por um acaso do destino, alguns desses projetos subjetivos se erigiram em visões de mundo políticas e religiosas consolidadas, e passaram a ser impostos aos outros cidadãos, e o que era apenas uma peculiaridade privada tornou-se lei obrigatória a conjuntos maiores. É um longevo fruto da maldade humana com o qual os cientistas devem lidar. Ainda que os sacerdotes em geral não reconheçam, cada um cria seus deuses – eis a essência original da religião –, e é nisso que a ciência, transformadora do objetivo, não deve se meter, mesmo sendo ela um conflito de subjetividades. Nesse caso, nem classificação ela tem: ateia, agnóstica, antiteísta, nada disso. Todavia, quando o sujeito se metamorfoseia em dado concreto do mundo real, a postura deve ser dialógica: convivência pacífica e negociada com instituições que respeitam a pluralidade do espaço público, crítica e combate daquelas subjetividades que desejam tiranizar suas semelhantes ou a própria dimensão objetiva do entendimento. O tratamento para com as religiões fica aí subentendido, embora só cada ocasião decidirá pela neutralidade ou pelo anticlericalismo.

Ciência, religião e política como filhas de uma mesma matriz, apartadas pelos azares do tempo e agora, numa dissertação marginal e despretensiosa, colocadas no mesmo saco para complicar ainda mais a análise laicista da sociedade? Se a leitora ou o leitor quiser, sim, uma tese incômoda e complexa. Entretanto, o caso é que a realidade é assim mesmo, um todo orgânico e contraditório de partes aparentemente conflitantes, mas muito interdependentes. Quando parece que encontramos a chave da compreensão do mundo, ela nos escapa como água pega com as mãos. Mas a militância ateia, secularista ou libertária, se quer fazer jus à importância que lhe espera no futuro coletivo, deve abandonar os esquemas simplificadores e abraçar a dialética que nos faz mudarmos a nós mesmos e ao nosso meio. Adaptações, flexibilidades e transigências necessárias para evitarmos nossa própria fossilização histórica e a passagem incólume, sem rastros, pelo cruel rio do progresso humano.


Bragança Paulista, 7 de setembro de 2011.



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