NOTA: Este texto, cujo arquivo Word tem 23 de abril de 2011 como data da última alteração, se chama “Religião: opção subjetiva ou poder social?”, e novamente critica o cerco em torno da então presidenta recém-eleita Dilma Rousseff no tocante às suas crenças religiosas. Mais uma vez reconheço a limitação da minha tendência em tratar tudo como dualismos (“subjetivo” e “objetivo”) e o pouco estudo em história, sociologia e filosofia antes de palpitar sobre assuntos tão complexos. Além de misturar com constância demais os planos da política institucional e da religião organizada, também me preocupava demais em definir conceitos, sentimentos e fenômenos, como se meu processo de esclarecimento devesse ao mesmo tempo se externalizar em palavras públicas. Como eleitor da Dilma e crente em sua adoção do esclarecimento, igualmente tentei “bilndá-la” do assédio cristão, e embora eu agora veja negativamente seu governo, me agrada menos a mediocridade intelectual de Bolsonaro. Apesar de tudo, reitero outra vez o valor do texto como elaborado exercício intelectual, e tentando dá-lo como semente de reflexão também pro presente, apresento-o abaixo sem alterações na forma ou no conteúdo.
Chamou-me a atenção ontem uma breve entrevista recente para a Folha.com do arcebispo de Brasília, dom João Braz de Aviz, a respeito da relação entre as convicções pessoais de Dilma Rousseff e a Igreja Católica, em especial a resposta a uma pergunta sobre a opinião do clérigo a respeito da separação entre política e religião. Seus argumentos básicos foram os seguintes: 1) religião e política devem separar-se; 2) “Estado laico” não é sinônimo de “Estado ateu”; 3) a “experiência religiosa” não pode ser considerada apenas como algo pessoal, pois haveria também a dimensão social, motivo pelo qual a Igreja estaria recuperando sua atenção à política. Suas declarações dão ensejo a uma discussão interessante sobre as naturezas subjetiva e objetiva da religião e da espiritualidade, algo até hoje complicado e sem consenso, e de suas relações com o poder político.
Parece-me que a consciência humana possui duas dimensões que não se misturam, mas que se complementam dialeticamente: a subjetiva, concernente ao nosso cérebro, à nossa individualidade e ao modo particular como sentimos, gostamos, abstraímos, gozamos ou percebemos as coisas, o que faz de cada ser humano, como se diz, um “Universo à parte”; e a objetiva, relacionada ao que está fora de nosso pensamento, das coisas que podemos sentir, fruir, apreender e vivenciar, enfim, aos objetos materiais em geral. Essas duas dimensões são dialeticamente inseparáveis: por um lado, a subjetividade só pode funcionar e só faz sentido com objetos que ela perceba e apenas a objetividade é fornecedora de realidade, em resumo, é o mundo que fornece material às ideias; por outro lado, nem todas as individualidades percebem o real da mesma forma, porquanto as vicissitudes genéticas, biológicas e patológicas mudam as formas de apreensão e, portanto, a percepção obtida do exterior. Enfim, mundo material e mundo mental condicionam-se e trocam informações mutuamente.
Além disso, creio que “espiritualidade” seria a crença e a comunicação com uma dimensão fora e paralela à material, não raro denominada “espiritual”, compreendida de maneiras diversas, desde o conjunto de nossos decalques não biológicos impalpáveis e invisíveis até simples energia. De “transcendência” chamo a sublime experiência estética, geralmente ligada a valores sagrados, gerada pela reorganização do real em uma nova unidade de sentido que ligue nossa pequenez à infinitude do Universo. Não há grupo humano que não tenha experimentado a sensação da transcendência, individual ou coletivamente, mas não julgo ser isso necessariamente “religião” por esta, em minha opinião, dever conter mais dois elementos: a espiritualidade e a institucionalização. Portanto, as crenças xamânicas e animistas dos povos antigos ou espiritualidades pessoais não seriam religiões, pois carecem de codificação escrita, ortodoxia dogmática e corpo sacerdotal complexo; já a Igreja Positivista, por exemplo, não prescindiria daqueles elementos, mas ainda lhe faltaria a fé em uma realidade não material que influenciasse este mundo. Da mesma forma, certas ideologias e regimes políticos, ainda que de forma não religiosa, também fomentaram a cristalização de transcendências na adulação de líderes e valores supremos e intocáveis.
Aparentemente, se analisarmos por um viés puramente teórico, a experiência transcendental possui um caráter estritamente subjetivo, já que cada pessoa terá uma sensação estética diferente, possuindo reações diversas se submetidas ao mesmo estímulo objetivo junto de outras. A possibilidade de codificar um único estimulante transcendental para que toda a humanidade tenha a mesma sensação é praticamente impossível, porque, mesmo que um grupo humano seja extremamente fechado e seus membros sejam quase indistinguíveis em seu modo de pensar e agir, as características particulares internas de cada um ainda terão algum peso. Sobre o mundo espiritual – a não ser que se tome “espírito” no sentido filosófico, o qual equivale, na prática, a nossa subjetividade –, sua existência empírica é improvável, pois, sendo um elemento imaterial, só pode ser subjetivo, ideal, portanto não pode criar uma realidade material, sensível, porquanto as dimensões subjetiva e objetiva não criam partes uma da outra, mas apenas se moldam; deste modo, ele será posto de lado da discussão. O que se pode concluir por ora é que a religião é um erro naquilo que ela pretende, pois, de um lado, ela procura impor ao mundo objetivo, à crença coletiva universal, um deus que nasceu de uma subjetividade, de uma ideia pessoal ou grupal, portanto sem validade geral; e, por outro lado, intenta que todas as pessoas tenham a mesma reação e a mesma experiência transcendental com os mesmos rituais, dogmas e paramentos consagrados. É provável que as cisões religiosas tenham nascido dessa percepção diferente das escrituras e das práticas sagradas.
Porém, no plano prático, essa análise filosófica não basta; um materialismo coerente deve centrar-se ainda nas consequências materiais de um objeto de natureza material, e não apenas em seus resultados subjetivos. Assim, é claro que as religiões também se constituem em poderes seculares, sociais, políticos, midiáticos e econômicos, e nunca poderiam deixar de ser. É sob esse pensamento que duvido da possibilidade de separação entre o Estado e a Igreja dominante em determinado país: as religiões nasceram como o sustentáculo ideológico dos líderes de suas épocas e lugares, a eles organicamente imbricadas, e assim continuaram até a laicização da política ocidental (porque em grande parte do Oriente essa divisão ainda não existe). Mesmo assim, se religião e Estado, a partir de dado momento, tornaram-se coisas separadas, a primeira nunca deixou de influenciar a segunda, e um governante não pode deixar de atender, de certa maneira, às pressões da religião ou das religiões mais poderosas de seu país, sob o risco de perder apoio material e moral. Basta ver como tal apartação no Brasil data apenas do início da República: exigir um Estado completamente laico nesse período de tempo relativamente curto seria demais. A religião é, como diria Gramsci, um “aparelho privado de hegemonia”, portanto seu desprezo seria um suicídio político; a política sem a religião não é política, e vice-versa, e quando uma desaparecer, acontecerá o mesmo à outra, e elas não serão mais o que são hoje. É difícil perceber esse processo como iminente, dado o pouco tempo, dentro de nossa longa história humana, ainda passado após aquela cisão.
(Existem apenas dois tipos de Estados no que concerne à religião: o Estado religioso e o Estado antirreligioso. Os primeiros se dividem nas seguintes categorias, com ou sem repressão: os que fundem as aparelhagens estatal e eclesiástica; os que apoiam ou subvencionam uma religião oficial – e entre esses estão boa parte dos países nórdicos, inclusive –; e os que são politicamente influenciados por uma ou mais religiões porque são as que a maioria do povo segue. Os segundos, quase sempre confinados aos países comunistas de ontem e de hoje e sempre repressivos, são de dois tipos: os que, na letra da lei, respeitam a liberdade e a diversidade religiosa e os que oficialmente proíbem as religiões, como na Albânia de Enver Hoxha, na qual era instituído o “ateísmo de Estado”. Excluídas essas peculiaridades, não há grandes diferenças práticas dentro de cada tipo. No mais, isso tudo torna inoperante a reflexão sobre se o “Estado laico” é, não é, deve ou não ser “ateu”.)
Agora já temos um bom instrumental para respondermos a esta pergunta: a religião é uma opção subjetiva ou um poder social? É de se notar, antes de tudo, que o arcebispo contradiz-se ao separar religião e política e atribuir à primeira uma dimensão social, já que a essência da política é a sociabilidade, e já que as relações sociais são essencialmente políticas. Igualmente, a inseparabilidade entre religiões (ou ao menos uma delas que seja predominante) e Estado, pelo menos no que tange às barganhas políticas e à divisão de poderes e de esferas em que podem ou não podem, devem não devem atuar ou influenciar, derruba por terra a ideia de que eles se constituem em âmbitos inconciliáveis; pelo contrário, são entidades igualmente públicas que tem como único dever não interferir arbitrariamente na esfera íntima e privada das cidadãs e cidadãos, esta, aliás, o verdadeiro recôndito da transcendência. Entre os comentários à matéria, vi uma citação da frase evangélica “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Não acredito que sua mensagem seja a separação entre Igreja e Estado, ambos instituições bastante terrenas, mas entre o “deus interno”, subjetivo e particular de cada um e as ações públicas, sociais e objetivas que também concernem aos outros.
Ficam patentes, de quebra, mais dois problemas na fala de dom João Braz de Aviz com relação à religiosidade de Dilma. O primeiro é o pedido de explicitação de suas opiniões sobre “assuntos caros à igreja” (homossexualidade, aborto etc.), que aparece relacionado às convicções religiosas da presidente. Exige-se aí uma coerência entre temas públicos, terrenos, e fé pessoal que não existe mais em nenhuma pessoa comum: se não fosse por isso, não haveria tantas católicas e católicos se divorciando, mantendo relações sexuais antes do casamento – com ou sem camisinha –, introduzindo em sua vida elementos de outras crenças e até mesmo abortando; aliás, transigir em vários pontos e fazer vista grossa às “escapadinhas” – sobretudo dos famosos e dos poderosos – foi o segredo da Igreja para manter sua influência. O segundo é a vontade de explicação das próprias posições religiosas de Dilma, o que mostra as cobranças a que são submetidos os governantes pelas hierarquias eclesiásticas. Com efeito, esse laço é tão forte que o fato de ela, na campanha, não ter podido confessar qualquer descrença – fosse ela verdadeira ou não – sob o risco de perder votos e, agora, não poder fazer o mesmo pelo temor de acusações de oportunismo político, deixa-a em um beco sem saída. É uma verdadeira “saia justa” derivada da intransigência dos religiosos, sumamente os evangélicos, que ao mesmo tempo foram os maiores detratores e os verdadeiros vencedores do último pleito: mesmo que ela dissesse em campanha “sou descrente e vocês são religiosos; eu não persigo vocês por serem religiosos e vocês não me perseguem por ser descrente, combinado?”, os religiosos continuariam a detração, pois a correlação entre descrença e maldade ainda tem audiência em nossa sociedade pouco conscientizada. Foi pensando justamente nisso que os candidatos dançaram conforme a música, pois só a perda dos 25% de eleitorado evangélico já seria uma tragédia imensurável.
O vocabulário ocidental para fatos espirituais e transcendentais, condicionado pelas três religiões monoteístas, ainda é bastante limitado, e apenas uma grande revolução em nosso pensamento nos permitiria expressar sensações e experiências que ultrapassam os estreitos limites do dogmatismo religioso; nesse aspecto, o Oriente está anos-luz distante de nós. Ainda engatinhamos no patamar de ritualismos amasiados com o aparato estatal, de cultos oficiais legitimadores do poder institucional, e, por isso mesmo, temos um desenvolvimento muito escasso e pouco difundido de formas profundamente eróticas e estéticas de reorganização subjetiva do real. Para piorar, nossa visão sobre política não vai além de considerações sobre os aparelhos institucionalizados, de representação indireta, tornando inútil a questão do “Estado laico”, da separação entre religião e política, quando, na verdade, trata-se de superar os modelos políticos e religiosos atuais. Enquanto isso, resta somente o campo da conciliação, das negociações e dos acordos provisórios feitos “por cima”, para que pelo menos a violência dos choques tribalistas cotidianos seja amenizada e espere ser dizimada pela emergência das massas como definidoras de seu próprio destino.