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Estas observações não são um receituário, mas um levantamento de possibilidades. O ateu ou a ateia é uma pessoa insubmissa por natureza e não aceita enquadramentos, mesmo vindos de quem diz compartilhar sua opinião. O ateísmo não é um conjunto de dogmas prontos, mas uma postura para com as religiões, e a relação de cada um com elas é muito subjetiva e dificilmente quantificável.
As religiões não se confundem necessariamente com a experiência religiosa, ou melhor, com a experiência espiritual. A separação de ambas é um fenômeno recente, pois até a eclosão dos movimentos rebeldes dos anos 1960, ao menos no Ocidente cristão, as instituições religiosas quase monopolizavam a espiritualidade individual e coletiva, condenando desvios e oposições às normas. Esse modelo institucional não é bem aplicável às fés orientais (não incluo aqui o islã), que sempre foram mais abertas ao misticismo pessoal, mas é certo que tal novidade só ganhou espaço por aqui com a atomização das relações humanas, a laicização da sociedade, a consolidação da liberdade de pensamento e a valorização das subjetividades. Hoje, portanto, apesar dos esperados chios clericais, podemos separar tranquilamente a religião como organização humana e a espiritualidade como vivência íntima, às vezes coletiva.
Já o ateísmo ainda não tem uma história tão bonita assim para contar. Corrente originariamente ocidental, surgiu como palavra na Grécia antiga para rotular os que contestavam os deuses oficiais (mas sem necessariamente descrer em outros de sua escolha) e assim permaneceu, apropriada pelo cristianismo, até o século 18. Então, manifestaram-se os primeiros pensadores que refutavam de modo sistemático e articulado a crença em qualquer divindade ou realidade sobrenatural, sem reunir, porém, a adesão esperada com a Revolução Francesa e com o progresso científico do século 19. A partir daí, e até hoje, o ateísmo, jamais claramente definido pelos seus adeptos ou pelos seus detratores, foi declarado pelos três grandes monoteísmos e suas crias como seu maior inimigo, junto com o secularismo, que visa livrar a esfera pública da ditadura das religiões (e não as afastar totalmente dela, como interpretam alguns), e com todos os matizes do socialismo, cujo objetivo é fazer as pessoas comuns dirigirem seus próprios destinos, e não os entregarem a chefões ou manipuladores.
Felizmente, a maioria das religiões soube se adaptar às mudanças das sociedades em que nasceram ou se implantaram. As heterodoxias puderam florescer para atender às necessidades da modernidade ou de grupos em ascensão antes marginalizados ou inexistentes. Todo grande sistema doutrinário de qualquer natureza, se não se presta à abertura para o diálogo e à leitura atualizada da realidade circundante, corre o risco de se tornar um cadáver exposto e de mais atrapalhar do que ajudar seus seguidores e as instituições vizinhas. Contudo, mudar implica extinguir ou reduzir os privilégios de algumas facções, e então surgem os radicalismos, extremismos e fundamentalismos, nem sempre fisicamente violentos, mas já ultrapassados de nascença. Em determinado momento histórico, se ocorre de triunfarem, inevitavelmente terminam derrotados tão cruelmente quanto pernicioso tenha sido seu domínio. Os heterodoxos vencem, enfim, para fazer a sociedade circular.
Os ateus costumam ser muito duros com as grandes religiões, pois respondem à dureza com que elas lhe tratam e deixam aflorar a revolta natural que uma minoria estigmatizada dirige a um poder dominante. Mas nem sempre fica evidente a distinção entre os institucionalismos majoritários e os dois maiores obstáculos naturais à sua integridade e influência já citados acima, ou seja, a fé pessoal e as dissidências progressistas. As manifestações mais frequentes da espiritualidade individual no Brasil costumam ser a crença em Deus ou Jesus Cristo sem filiação religiosa ou a transigência com as regras oficiais, por exemplo, na interpretação de um sonho, numa suposta visão, no recurso a simpatias, na relação particular com as entidades sobrenaturais, entre outras. É difícil medir o quanto alguém ou um grupo se apega a um velho preconceito, mas, na maioria dos casos, especialmente com a população comum, o mais seguro é conscientizar para a convivência pacífica e tolerante na diversidade, sem atacar frontalmente os antigos valores, a não ser que eles estejam causando prejuízos sérios e evidentes a seus aderentes.
Quanto aos dissidentes religiosos, sejam líderes de instituições novas, mas pequenas, sejam correntes marginais de grandes grupos, o diálogo é quase sempre possível (mais até do que com certos ateus, diga-se de passagem), especialmente se forem progressistas: é natural que busquem contatos variados para adquirir força e visibilidade e se aliem à luta pelo direito à pluralidade e pelo Estado laico, coisas que os ateus geralmente desejam. A troca de ideias e as concessões mútuas são praticamente uma necessidade, desde que haja intercompreensão e renúncia ao proselitismo. Às cisões conservadoras nem vale a pena dar muita atenção, pois costumam ser frutos ainda mais apodrecidos do que a árvore da qual caíram.
Parece irrealista dispensar um mesmo tratamento a todas as grandes denominações religiosas, isso quando é possível tirar alguma conclusão. Como poderes realmente fortes, vale empregar com elas o pragmatismo e a coerência. Pragmatismo para saber que não cairão apenas pelo berro de um ou outro inconformado e que podem muito facilmente jogar a opinião pública e popular contra qualquer um de seus oponentes. E coerência para, apesar das barreiras, não deixar esmorecerem a crítica aos aspectos enganadores, abusivos e corruptos das religiões e a batalha contra a tirania de assuntos privados sobre esferas que originalmente devem atender e representar todos os grupos e indivíduos de uma sociedade.
Há outros elementos que, por serem subjetivos, podem ficar de fora, como o comparecimento a cerimônias religiosas familiares, o porte de algum enfeite religioso, o cumprimento de feriados e a fruição de arte sacra. Mas, em qualquer caso, devem prevalecer o bom-senso, a educação, o conhecimento histórico, a consciência de que nenhuma força invisível vai lhe escravizar por executar este ou aquele ritual e até a lembrança daquele ditado popular: “Em Roma, faça como os romanos”. Todas as formas de expressão cultural merecem espaço, desde que respeitem a integridade e a dignidade física e psicológica de outras pessoas e não exijam regalias que lhes permitam transitar acima da lei.
Bragança Paulista, 25 de dezembro de 2011.
Levemente modificado a 25 de julho de 2012.
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