quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Abolição da ciência e da política (2011)


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NOTA: Estou voltando a publicar reflexões juvenis minhas colocando juntas política e religião. Já botei aqui algumas que achei melhores, mas meu plano agora é postar tudo o que tenho e ainda pode ser reaproveitado. O início de 2011 foi um tempo especial pra mim, pois além de ser o começo de uma nova década, eu estava entrando em contato com novas tecnologias, que hoje na verdade já estão até obsoletas. Além disso, eu tinha terminado todas as minhas matérias da graduação, tendo feito em 2010 duas matérias com um professor marxista da área de Educação, e no novo ano eu só faria meu TCC (monografia). Mais contato com o marxismo, mais reflexão irreligiosa, mais leituras que mudavam minha maneira de pensar. Relendo hoje, as ideias parecem bem utópicas e pouco realizáveis, mas é incrível como eu articulava bem os conceitos e enxergava algo além da nossa pura realidade. Quem me vê em outras mídias vai achar interessante essas adesões, e de fato ainda subscrevo os argumentos, embora com menos ousadia política. Republico sem alterações.



Muito se discutiu, nos círculos anarquistas e marxistas, a abolição do Estado como fase final da emancipação humana. Porém, mais do que pensar apenas no Estado como motivo de opressão e como alvo da revolução social, trata-se ainda de pensar a ciência e a política institucionais, em todas as suas manifestações abstratas e reais, como partes de um mesmo paradigma que deve ser superado em prol da auto-organização das comunidades humanas. Consequentemente, abre-se a possibilidade de se redefinir e democratizar as práticas científicas e políticas e, assim, minar a separação entre teoria e prática na convivência social.

A ciência se diz “universal” e a política se diz voltada “para todos”, e ambas se encastelam numa esfera dita “pública” representada institucionalmente pelo Estado. Contudo, esse caráter “democrático” da ciência e da política é falso, pois dentro de cada uma ainda existe a separação entre executores e planejadores, enquanto econômica e politicamente elas servem a poucas pessoas, e não à totalidade da população mundial. Tal constatação de ordem prática não leva em conta a natureza epistemológica da ciência, que é atualmente definida independentemente de análises sociais. Mesmo assim, essa suposta abrangência “democrática” ainda é prejudicada pelo fato de também apenas alguns iniciados participarem das decisões a respeito dessa esfera pública (pública porque se afirma abrangente e válida para todos), da qual, em última instância, a ciência é a guia teórica e a política, a condutora prática.

A despeito dessa pretensa universalidade, e tem-se aqui a segunda constatação de ordem prática, o que termina por de fato mover e dar vida às comunidades humanas não é sua esfera pública ‒ ou Estado ‒, mas sua esfera privada ‒ ou as pessoas, famílias e grupos coletivos que as compõem. O Estado se torna não mais do que um demiurgo cujos regulamentos, embora se suponham fruto de um acordo comum, não se identificam nem servem a ninguém, e, assim, ao invés de representar uma solução para os conflitos humanos, torna-se um peso morto. Mesmo que a assim chamada “sociedade civil” não se declare explicitamente um organismo independente composto de partes que somente funcionam em conjunto, tal é sua definição. Apesar das leis e sanções impostas por um corpo que lhe é estranho, ela possui regras e mecanismos próprios, muito bem viáveis sem a presença daquele. O problema surge quando os interesses coletivos e individuais se chocam entre si, mas isso será tratado adiante.

Cruzadas essas duas constatações, pode-se passar para o plano da teorização social-científica com vistas a uma transformação da realidade. Antes de mais nada, entre os vários matizes da esquerda, a questão de como se chegaria a uma sociedade comunista ou à abolição do Estado nunca optou definitivamente pela revolução social ou pela evolução natural da história. Assim, e também porque isso constituiria matéria para outro texto, essa parte, infelizmente e contra a vontade do articulista, fica em aberto, em favor da limitação a delineamentos de uma sociedade ideal. Enfim, indo-se além da absorção da “sociedade política” pela “sociedade civil” preconizada por Gramsci – e muito bem identificada com o que foi dito acima –, tem-se ainda a absorção e a perda de sentido de tudo o que alicerçava a primeira, com o mote principal de que a população autogerida pode fazer para si tudo o que o Estado fazia para poucos. A distinção entre esferas pública e privada, para começar, não teria mais razão de ser, e o que se dizia “ciência universal” e “política para todos” se tornará ciência para (e não “de”) este ou aquele coletivo, e política para este ou aquele coletivo. Aí não há prejuízo do bem comum (para não usar o vago termo “democracia”), pois se as comunidades humanas são totalidades formadas por partes, ninguém sai perdendo, ou, como dizia Marx, “o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos”. Os limites – e ainda, deve-se reconhecer, trabalhando-se com sociedades e seres humanos ideais – seriam impostos apenas pelo quanto um coletivo restringe a liberdade e a atividade de outro ou atenta contra a integridade da pessoa humana, pois se teria então a disfunção do todo pela falência de uma ou mais partes.

A ciência e a política, além disso e por conseguinte, seriam faculdade de todos, todos se tornariam cientistas e políticos e não haveria mais a separação entre executores e planejadores dentro de cada grande área e entre as duas. Portanto, extinta a dicotomia entre teoria e prática, a ação social seria regida por uma práxis instrumental, em que a execução, nos planos subjetivo (seres humanos) e objetivo (coisas), é inseparável do planejamento. O fim do institucionalismo da ciência e da política causaria a fundição de ambas e a entrega de seus destinos nas mãos dos próprios indivíduos (famílias e pessoas) e coletivos que sofrem as consequências de suas escolhas e, portanto, devem passar a ser seus únicos beneficiários. Entre os resultados mais importantes (que, na verdade, confundem-se com as medidas para se atingir os objetivos propostos) estariam a universalização da educação, o aumento do leque de habilidades de cada membro das comunidades humanas e a liberdade de cada indivíduo ou coletivo para a fixação do próprio cronograma material e espiritual.

Hoje em dia, a grande missão dos atores políticos e dos cientistas engajados não é descobrir ou elaborar leis universais e inevitáveis que rejam ou se apliquem mecanicamente às instituições ou populações de certos países ou de todo o planeta, mas reinventar constantemente a descrição da realidade como parte de uma existência mais caracterizada pela eterna sucessão de táticas do que pelo direcionamento a uma estratégia final e definitiva. O dinamismo da tecnologia e dos movimentos humanos exige que teoria e prática atuem cada vez mais organicamente, que as grandes decisões e os grandes modelos abstratos não sejam moldados por, nem descrevam exclusivamente, as grandes instituições burocráticas e hegemônicas, mas o conjunto indivisível da humanidade, e que, acima de tudo, a geração do conhecimento e da produção material seja imediatamente universalizada sob o risco de a prosperidade e a paz sucumbirem às explosões sociais e às próprias contradições do progresso técnico.


Bragança Paulista, 18 de abril de 2011.
Revisto a 1.º de abril de 2012.



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