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1. Alguns meses após ter escrito meu último texto mencionando a palavra “apartidarismo”, fiquei impressionado como ela repentinamente ganhou a boca das pessoas, da mídia e das redes sociais a partir dos protestos populares no Brasil, em junho de 2013. Os meus dois textos no blog que abordavam o tema, inclusive, tiveram um significativo aumento de visualizações, muitas delas certamente direcionadas pela busca no Google.
Os manifestantes, dizendo-se “apartidários”, rejeitavam a ostentação de bandeiras, faixas e cartazes que aludissem às siglas de partidos políticos, especialmente os de extrema-esquerda, alegando que eles poderiam apropriar-se de um movimento que eles não teriam ajudado a articular.
Curiosamente, várias reivindicações levantadas pelos “apartidários” já faziam parte do programa de um amplo espectro da esquerda há muitos anos, por vezes décadas, enquanto o desenlace dos eventos revelou, afinal, a apropriação do movimento, mas pela oposição conservadora, por um punhado de grupelhos de extrema-direita antes desconhecidos e pelos grandes jornais e cadeias de televisão.
Há algum tempo eu já desejava escrever um terceiro texto, com reflexões muito pessoais, sobre as relações entre ciência, política e uma postura apartidária, tal como a descrevi nos outros textos, mas fui impedido por algumas dúvidas ideológicas mais prementes, pelo redirecionamento de minhas prioridades acadêmicas e pela turbulência política nacional que implicava muita atenção antes de qualquer posicionamento social mais consequente ou bem estruturado.
As manipulações (não no sentido pejorativo) por que passou o conceito de “apartidarismo” nas últimas semanas também me levaram a olhá-lo com alguma distância e até a pensar em abandoná-lo de vez, mas creio que com a poeira abaixada, posso resgatá-lo com mais serenidade e prevenir que influências externas direcionem minha lida com ele.
O que posso dizer e quero defender é que a noção de apartidarismo aqui expressa não tem qualquer vínculo com o antipartidarismo, e sim, com a opção consciente, por motivações várias, de não vincular organicamente a própria ação e trabalho ao serviço a um partido político específico, o qual, é claro, não deixa de ser um componente imprescindível no funcionamento de nossa democracia representativa.
Também sustento a opinião, passível de possíveis críticas, de que, por mais que a ciência esteja sujeita à pressão de diversas forças maiores – econômicas, estatais ou grupais –, ela cumpriria melhor seu papel se não se obrigasse a produzir significados políticos ou ideológicos, mas apenas se orientasse, socialmente, por valores mais gerais, porém bem definidos, de respeito à vida circulante e conservação da humanidade e de sua dignidade.
2. O trabalho histórico (ou científico em geral) se divide em três “fases epistemológicas” (as aspas indicam uma denominação provisória): a “empírica”, ou “historiográfica”, ou “técnica”, a “crítica objetiva”, ou “histórica”, ou “científica”, e a “crítica subjetiva”, ou “política”, ou “militante”, ou ainda “significadora”.
A fase “empírica” é a dos dados e fatos brutos. Exemplo: saber que tal rei proclamou tal lei em tal data por tal motivo.
A fase “crítica objetiva” é a da interpretação crítica dos dados brutos, sua contextualização dentro do conhecimento mais amplo da ciência; no caso da história, saber o que tal fato significou objetivamente para uma sociedade ou época, cujas consequências podem ser metrificadas objetivamente, mas de modo crítico, por meio de contextualizações mais gerais e correlações com outros dados ou fatos. Exemplo: saber quais foram as forças ocultas por trás da promulgação da lei, qual foi seu impacto, como outros setores da sociedade o receberam.
A fase “crítica subjetiva” tem a ver com o significado político de uma descoberta ou fato para certos grupos da sociedade, “grupos significadores”, “subjetividades individuais ou coletivas”. O significado político concerne a sentimentos afetivos, relacionados a uma escolha (nem sempre racional), ou a uma condição social, geográfica, étnica, linguística, cultural ou de gênero. Exemplo: o rei proclamou a lei porque ele era um reacionário que queria controlar a população, e o Estado da época oprimia as classes camponesas, que por isso tinham que lutar etc.
“Crítica objetiva” não é “crítica subjetiva”: a ciência não dá significado político a uma descoberta (que não é um mero “fato”, o qual se localiza ainda no nível empírico), ela explica por que algo é assim ou assado, e não qual é o sentido de algo ser assim ou assado. Um mesmo fato, e mesmo uma narração histórica científica, podem ter significados distintos para grupos diferentes.
A fase “empírica” demonstra “o que é”; a fase “crítica objetiva” demonstra “por que é assim”; e a fase “crítica objetiva” demonstra “o que significa isso ser assim, para que serve isso ser assim”.
Embora se diga que “a ciência não produz política”, o mais correto é chamá-la de “apartidária”, porque escolher a ciência é uma escolha política, fazer ciência em relacionamento com a sociedade obriga a tomar posturas sobre essa sociedade. Fazer ciência não é ser neutro, pois implica também que se reconheça que por vezes ela é constrangida por “forças maiores” ou “interesses ocultos”, que podem ser não só de classe, mas relacionados a outros grupos, burgueses/dominantes ou não.
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