terça-feira, 18 de setembro de 2018

Andrés do Barro: Corpiño xeitoso, 1970


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Outra canção que traduzi e legendei a partir da língua galega, a mais próxima do português, desta vez cantada pelo já falecido artista galego Andrés do Barro. Ela se chama Corpiño xeitoso, que podemos traduzir, obviamente, como Corpinho jeitoso, mas também Corpinho elegante, e foi composta pelo próprio Andrés. No ocaso da ditadura de Francisco Franco, que perseguiu as minorias linguísticas, o sucesso de Andrés do Barro foi algo excepcional, tanto com este clipe, gravado em 1970, quanto com outra música sua, O tren (O tren que me leva pola beira do Miño/Me leva, me leva polo meu camiño...), que estourou na Espanha.

Idiomas quase iguais são interessantes, e podemos entender o galego escrito, mas seria difícil traduzir literalmente as palavras ao português e ter algo que soasse palatável. Segundo as teorias modernas, uma tradução não deve ser apenas “compreensível” na língua-alvo, mas também parecer que foi escrita na língua-alvo. Isso porque um idioma não consiste só de palavras-tijolos unidas numa estrutura-gramática, mas compõe-se, sobretudo, de “modos de dizer”, que fazem com que certas combinações, embora logicamente corretas, soem estranhas devido à falta de uso. Essa é a perspectiva da linguística histórica, que há alguns anos emprego nesta página.

Por isso, mais do que decalcar elementos do galego que tenham um cognato em português (o qual, porém, pode ser arcaizante ou pouco usado, sobretudo no Brasil), busquei outras formas de dizer a mesma coisa, mais comuns no português brasileiro. Até porque Andrés do Barro foi um poeta capcioso nesta canção, por criar combinações que obedecessem à métrica e à rima, e utilizar interessantes metáforas. Inclusive, às vezes também gosto de provocar vocês e, bem brasileiro, traduzi balance, que poderia ser “balanço”, como “gingado”, muito comum em nossa cultura popular pra mesma situação. Lembremos que em Garota de Ipanema, Vinícius de Moraes também usa “O seu balançado é mais que um poema”.

A música Corpiño xeitoso saiu como faixa 2 do álbum de estreia Me llamo Andrés Lapique do Barro (1970), lançado com o selo da RCA. Ator, cantor e compositor, Andrés do Barro (1947-1989) foi o cantor pioneiro em alçar sucessos em galego ao topo das paradas, apesar das dificuldades culturais dessa língua. Além de vários compactos, gravou outros dois LPs em 1971 e 1974, e no começo dessa década, ápice de seu êxito, chegou a dar shows na Argentina, Brasil e México, bem como em alguns países da Europa. Aos poucos, seus discos iam tendo menos sucesso, chegou a viver no México de 1976 a 1980 e enfim retornou a La Coruña. Atuou algum tempo no rádio, mas morreu jovem (câncer no fígado), já sofrendo de problemas financeiros. Com a esposa Paula López, a qual deixou alguns anos antes de morrer, teve três filhos e duas filhas.

Andrés do Barro cantava em galego, espanhol e italiano, mas ganhou fama por levar a cultura da Galiza pra além de suas fronteiras. Nos anos 2000, um movimento conhecido como “dobarrismo” começou a resgatar sua memória e relançar vários de seus sucessos, tornando a canção galega ouvida em outros países, sobretudo com o advento da internet. Escutando músicas de Andrés, podemos perceber alguns traços de espanhol, que era sua língua materna, como a pronúncia do LL como “i” (idêntica à pronúncia “caipira” do LH no Brasil) ou “dj”. A transcrição da letra de Corpiño xeitoso varia muito entre sites, quase sempre havendo a grafia primaveira pra primavera, errada até em galego. Outra peculiaridade é a fusão do infinitivo verbal ver com o artigo a, resultando em vela (erronemanete grafado ve-la), que muitos interpretam como “vê-la”. Mas na verdade, é fenômeno igual ao que acontece, por exemplo, com todos + os = tódolos.

Eu mesmo traduzi direto do galego e legendei, recortando o quadro, o vídeo desta página. Agora conheça este clone do ator Rafael Vitti na legendagem que segue abaixo, junto com a letra original e a tradução:


Que muller máis xeitosa que eu encontrei,
Doces foron as verbas que eu lle escoitei.
Ela ficaba na praia deitada na area,
Cos meus ollos abertos eu ollei pra ela.
Eu lle dixen “¡Ven!”
E me dixo “¿Que?”.

Déixame verche o corpo dourado
Polo sol primeiro do mes de abril.
Ergue as túas mans ata que cheguen ó ceo,
Colle as estrelas, foron feitas pra ti.

Teu corpo xeitoso indo sobre a area,
O teu movemento é coma as ondas do mar,
Teu doce balance coma o vento che leva,
Teu corpo xeitoso quer botarse a voar.

Que feitura levaba no seu camiñar,
Confundín o seu paso co meu palpitar.
Cando ela chamoume fun á súa beira,
Abondaba o seu corpo pra vela primavera.
Eu lle dixen “¡Ven!”
E me dixo “¿Que?”.

Déixame verche o corpo dourado
Polo sol primeiro do mes de abril.
Ergue as túas mans ata que cheguen ó ceo,
Colle as estrelas, foron feitas pra ti.

Teu corpo xeitoso indo sobre a area,
O teu movemento é coma as ondas do mar,
Teu doce balance coma o vento che leva,
Teu corpo xeitoso quer botarse a voar.

____________________


Que mulher mais elegante que eu encontrei,
Foram doces as palavras que escutei dela.
Ela ficava na praia deitada na areia,
Com vista arregalada eu olhei pra ela.
Eu lhe disse: “Vem!”
Ela respondeu: “Quê?”.

Deixe-me ver seu corpo bronzeado
Pelo primeiro Sol que saiu em abril.
Levante as mãos até chegarem ao céu,
Pegue as estrelas, foram feitas pra você.

Seu corpo elegante anda sobre a areia,
Você se movimenta como as ondas do mar,
Como o vento, seu lento gingado te leva,
Seu corpo elegante quer levantar voo.

Ela caminhava de maneira bonita,
Meu coração batia seguindo seus passos.
Quando ela me chamou, fui a seu lado,
Seu corpo bastava pra enxergar a primavera.
Eu lhe disse: “Vem!”
Ela respondeu: “Quê?”.

Deixe-me ver seu corpo bronzeado
Pelo primeiro Sol que saiu em abril.
Levante as mãos até chegarem ao céu,
Pegue as estrelas, foram feitas pra você.

Seu corpo elegante anda sobre a areia,
Você se movimenta como as ondas do mar,
Como o vento, seu lento gingado te leva,
Seu corpo elegante quer levantar voo.


Agora, um bônus! A Televisão da Galiza teve um programa chamado No bico un cantar, que conta detalhes da trajetória de um cantor ou da história social de uma dada região partindo de uma canção específica desse artista. A Rianxeira ganhou uma edição que já apareceu aqui na página. Na estreia (8 de janeiro de 2013), a música escolhida foi O tren, sucesso imediato com o qual o galego Andrés do Barro estourou em toda a Espanha em 1969. Feito inédito não igualado nem pelos catalães, foi a única peça numa língua regional (que não fosse o espanhol) que alcançou o topo das paradas nacionais, e em plena ditadura franquista!

A melodia e os efeitos sonoros são bem pegajosos, e ainda hoje constituem um hit, mesmo entre as crianças, na Comunidade Autônoma da Galiza (Galicia, com língua presa, em espanhol e galego), região mais pobre do Reino da Espanha. Sua cultura, porém, é muito antiga e rica, pois é considerada a parte céltica do país e tem uma língua irmã do português (ambas têm a mesma origem) que permaneceu com traços mais arcaicos. Andrés Lapique do Barro, que cantava em espanhol (sua língua materna) e galego, deixou ótimas canções, mas morreu precocemente devido à saúde frágil, e teve o legado resgatado no início dos anos 2000. Compositor, colocou muito do folclore galego em seus álbuns, mas ao contrário de Ana Kiro (ótima também!), puxava mais pro pop e tendências internacionais.

No site da TVG, pode-se ver também o programa completo, com algumas explicações. Prestigie o trabalho dessa cultura regional! No episódio aparece a família de Andrés, seus antigos amigos e vizinhos e muitas imagens da Galiza e de suas novas gerações. Não legendei, porque ou você pode entender com algum esforço, ou pode fazê-lo após se acostumar com a sonoridade do idioma. Divirta-se!


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