Um dos meus cantores preferidos, Julio Iglesias gravou em 1972 Un canto a Galicia (Um canto/Uma canção à Galiza), na língua galega e de sua própria autoria, como seu primeiro sucesso internacional. Julio José Iglesias de la Cueva honrou suas origens cantando no idioma nativo da região mais pobre da Espanha, muito próximo do português. As duas línguas mesmas fazem parte de uma mesma sub-ramificação dos idiomas ibero-românicos, que é a galego-portuguesa. Isto era um único idioma até o meio da Idade Média, e então se dividiu em dois, sobretudo com a precoce formação do Estado português (1140).
O cantor nasceu em Madrid, em 1942, e seu pai, Julio Iglesias Puga (“Iglesias” é o sobrenome paterno de ambos), que viveu entre 1915 e 2005, nasceu na cidade galega de Ourense, capital da província de mesmo nome (a Galiza, como um todo, é considerada “comunidade autônoma”). A mãe do cantor era filha de um jornalista andaluz e de uma porto-riquenha, quando a ilha ainda pertencia à Espanha. Quando jovem, jogou pelo Real Madrid e estudou Direito, mas teve a carreira e a faculdade interrompidas por um grave acidente de carro em 1962. Durante o tratamento, aprendeu a tocar violão, e sabemos no que isso foi dar (curiosamente, retomou estudos de Direito nos anos 90). Tinha começado a carreira em 1968 e já alcançado a fama em 1970-71.
Un canto a Galicia ocupou o primeiro lugar nas paradas da Espanha, vários países da América Latina e na Holanda, França e Bélgica, além da posição 12 na Alemanha Ocidental (onde ganhou a versão Wenn Ein Schiff Vorüberfährt) e espaço de destaque na África do Norte e Oriente Médio. Gravado inicialmente em compacto, entrou também no disco Suspiros de España, de Manolo Escobar, em dueto com Iglesias. O astro também a incluiu em outras coletâneas e cantou também em italiano e português (Um canto a minha terra). Não sendo a língua materna do Julio, o texto foge um pouco do padrão culto, a começar pela peculiar pronúncia de pai e nai como pae e nae. Além disso, a forma normal de de esos (desses) é deses, bem como soidade é mais empregado que saudade. Uma grande polêmica rodeia leixos (longe): variante regional, nenhum dicionário oficial a registra, e ela quase não aparece nos corpora da língua. Uma espécie de cognata evolutiva do espanhol lejos, é por isso reputada “castelhanismo” e substituída por lonxe, em raros registros aparecendo a forma híbrida lexos.
Pelo que parece, Julio Iglesias “corrigiu” esses pontos em gravações posteriores. Esta matéria em espanhol do jornal La Voz de Galicia tem um relato interessante do dia em que ele estreou a música em público. Na internet, só aparecem as letras “corrigidas”, mas consegui achar o texto mais fiel ao aúdio no livro Writing Galicia into the World: New Cartographies, New Poetics, de Kirsty Hooper (Liverpool, Liverpool University Press, 2011), p. 54, disponível no Google Livros. A autora destaca o vínculo da canção com o sentimento de nostalgia da vasta imigração galega pelo mundo, mas outros analistas contrastam essa melancolia com a vivacidade do ritmo, ao menos nesta gravação. Pra piorar, há uma polêmica sobre se o galego é ou não idioma separado do português, tanto que há falantes que usam uma versão muito mais próxima deste, apenas com algumas alterações morfológicas. É meio o caso do polonês e do cachubo, este tido como dialeto do primeiro. Mas a variante mais comum tem fonética semelhante à espanhola e usa a ortografia do espanhol, que é o caso de Un canto a Galicia.
Julio Iglesias sempre destacou que a Galiza lhe é muito querida, e não raro lhe dedica esta música quando se apresenta. Eu mesmo traduzi e legendei, fazendo uma legenda bilíngue galego (em cima) e português (embaixo). Nesta página pode ser lida a letra alterada, gravada anos depois, mas seguem abaixo as legendas, o texto do áudio e a tradução em português:
Eu quéroche tanto, Quero as túas ribeiras Un canto a Galicia, hey, Teño morriña, hey, Teño morriña, teño saudade, ____________________
Amo os seus riozinhos Uma canção à Galiza, ei, Eu sinto falta, ei, Eu sinto falta, tenho saudade, |
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