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Pesquisando música folclórica da Córsega, vasta ilha do Mediterrâneo pertencente à França, acabei na verdade encontrando muitas canções de grupos tradicionais que reivindicam politicamente a independência local. O que me atraiu neles foi a sonoridade dos arranjos, a poesia das letras e o caráter de novidade na cena brasileira, sobretudo entre os jovens. Muitos sabem que boa parte dos corsos deseja se tornar um país livre, mas poucos no Brasil e outros países de fala portuguesa tiveram algum contato com a cultura e com seu lindo idioma.
Entre os conjuntos que gravam canções muito bonitas, com pedidos de autonomia ou independência local, está o L’Arcusgi (se lê “larcúji”), nome que significa “Os Arcabuzeiros”, ou “Os Atiradores”, em alusão à arma de fogo primitiva usada pelas tropas de Pasquale Paoli, reputado o Pai da Pátria corsa. Acredito que todas as músicas, gravadas em álbuns de diferentes épocas, foram compostas pelo próprio grupo, que só canta na língua corsa, da mesma ramificação do italiano entre as línguas românicas, mas muito semelhante também aos dialetos do sul da Itália. Antes de traduzi-las, me informei um pouco sobre a pronúncia e o funcionamento do idioma corso, de forma que não desse “tiros no escuro”, mas também me apoiei nos conhecimentos de italiano e até de napolitano que eu já tinha.
O grupo L’Arcusgi foi fundado em 1984 na região corsa de Bastia e define-se como “político-cultural”, solidarizando-se também com outras minorias nacionais separatistas, como se nota nas canções gravadas em basco. Ativo ainda hoje, conta com cinco músicos e nove cantores, número que variou pelo tempo, e sua principal missão declarada é defender a língua e a cultura corsas, pouco favorecidas pelo governo de Paris. Seu primeiro álbum, Resistanza, saiu em 1988, e o último, 30 anni: cantu, passione, spartera, em 2014. Eu mesmo traduzi direto do corso e legendei, tendo usado, além de traduções em francês, um dicionário bidirecional corso-francês e um conjugador de verbos.
A relação da população nativa dessa ilha de 8 722 km² com a França sempre foi tensa. Em 2013, o ministro do Interior Manuel Valls rejeitou qualquer tentativa de elevar o status da língua corsa e imputou aos ilhéus uma “cultura da violência”. O grupo terrorista local FNLC (Frente Nacional de Libertação Corsa) ameaçou então retomar as atividades armadas, mas desde 2014 não há emprego sistemático da violência. A Córsega chegou a declarar em 1735 sua independência da República de Gênova, inclusive adotando, em 1755, talvez a primeira constituição democrática da história moderna, até mesmo com o sufrágio feminino. Mas em 1768, Gênova entregou a Córsega à França, que a submeteu militarmente em 1769, derrubando a república fundada pelo general Pasquale Paoli. Este, horrorizado pelo Terror de Robespierre, chegou a estruturar um reino corso tutelado pelos ingleses em 1794-96, mas terminou seus dias exilado em Londres.
A Córsega possui um status especial dentro da República Francesa, que desde 2018 a faz ser chamada “Coletividade da Córsega”. Muito menos do que por pressão violenta, a língua corsa sempre esteve em risco pela onipresença do francês, considerado como instrumento de integração social e cultural, de forma que o corso nunca foi aceito por Paris nem mesmo como língua cooficial, tendo o francês a condição oficial isolada. Ainda hoje se tenta conservar o corso contra a extinção, mas em geral são iniciativas isoladas, justamente como a do L’Arcusgi.
A primeira canção é Lotteremu, canteremu (Lutaremos, cantaremos), que foi gravada no álbum Testimone à l’eternu, lançado em 1997, o quarto da carreira do grupo L’Arcusgi (tradução francesa). O nome da segunda canção é Un populu ùn è vintu (Um povo não é vencido), que foi gravada no álbum L’Arcusgi di Pasquale, lançado em 2005, o sexto da carreira (tradução francesa). O nome da terceira canção é Lotta ghjuventù (Lute, juventude), que foi gravada no álbum Sò elli, lançado em 1993, o segundo da carreira (tradução francesa). Mas acredito que esta gravação seja de 2002, álbum In vivu à fianc’à voi, e eu cortei uma fala inicial em francês, comentando a discriminação à língua corsa. E o nome da quarta canção é Omu cantà (O homem a cantar), que foi gravada no álbum de estreia Resistanza, lançado em 1988.
Seguem abaixo as legendagem bilíngues que eu mesmo montei, as letras originais no idioma corso, retiradas de várias fontes e nas quais fiz certas mudanças quando necessário, e as traduções em português. Nem sempre traduzi as canções literalmente, porque era impossível nos limites da expressão idiomática e poética corsa, mas acredito que consegui passar o sentido essencial:
1. Per l’omu di ’ssa terra Ripigliu: 2. Per ’sse mamme ferite, (Ripigliu) 3. A st’omi di valore (Ripigliu) 4. Vince per ùn more (Ripigliu) Lotteremu, canteremu ____________________ 1. Para o homem dessa terra Que conheceu a guerra Abrimos nosso coração E partilhamos sua dor. Para o povo negado Que se revoltou Procurando sua história Sem perder a memória. Refrão: 2. Por essas mães feridas (Refrão) 3. A estes homens valorosos (Refrão) 4. Vencer para não morrer (Refrão) Lutaremos, cantaremos |
Ripigliu: 1. A forza di dice A forza di lampacci (Ripigliu) 2. Mà a voce di a notte Mà a voce di l’alba (Ripigliu) 3. Mà u sognu ùn hè mortu: Mà u sognu ùn hè mortu: (Ripigliu) ____________________ Refrão: Um povo não é vencido Enquanto puder lutar. Um povo não é vencido Enquanto puder lutar. 1. De tanto dizerem De tanto nos lançarem (Refrão) 2. Mas a voz da noite Mas a voz do alvorecer (Refrão) 3. Mas o sonho não morreu: Mas o sonho não morreu: (Refrão) |
Intorna una bandera Francia è to sole sumente Intorna una bandera Francia tutt’è to milizie Lotta ghjuventù, Intorna quessa bandera Francia tandu morerà, Lotta ghjuventù, ____________________ Em torno de uma bandeira, Um pequeno punho erguido Grita para a Terra inteira: “Meu papai está preso, Mas meu povo é orgulhoso E vou combater por ele!” Você, França, traz sementes Em torno de uma bandeira, França, todo seu exército Lute, juventude, Em torno dessa bandeira, A França então vai morrer Lute, juventude, |
Quand’u ferru si face pisante, Per un grombulu di ghjustizia, Duve l’omu si stà mutu, Per un grombulu di ghjustizia, Per un populu inghjuliatu, Per un grombulu di ghjustizia Ascolt’ ascolta, zitellu, 2x: È stu cantu fallu toiu. ____________________ Quando a espada fica pesada, Quando a opressão agride, Quando a coragem quer fugir, O encarcerado canta Uma canção feita de Sol. Por um grão de justiça, Onde o homem emudeceu, Por um grão de justiça, Por um povo humilhado, Por um grão de justiça, Escute, escute, menino, 2x: E este canto é culpa tua [da França]. |
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