Muito por acaso, achei esta bonita canção que se encaixa bem com o clima de Copa do Mundo e com a abertura dos jogos, que ocorreu um dia depois que eu a legendei. Ela se chama “Мы – русские! С нами – Бог!” (My – russkie! S nami – Bog!), Somos russos! Deus está conosco!, e foi inspirada na célebre frase de um discurso proferido pelo herói nacional Aleksandr Suvorov. A letra é de Aleksandr Shaganov, conhecido por ter feito muitos outros poemas patrióticos, e a melodia é de Aleksei Poznakhariov. Provavelmente é este quem está cantando, mas não achei mais informações sobre o áudio.
A montagem sem legendas, postada num canal russo, foi feita com imagens de paradas militares do Dia da Vitória (9 de maio). É uma das muitas músicas em estilo militar, criadas nos moldes soviéticos, mas desta vez falando sobre a Rússia, um “novo” país que aspira a se tornar novamente uma potência mundial. Esse tipo de canção aludindo ao país sem o comunismo começou a surgir nos anos 90 e proliferou nos anos 2000, quando Vladimir Putin deu início ao reerguimento nacionalista. Duas coisas parecem não ter dado certo: o socialismo internacionalista e o liberalismo ocidental, daí o poder atual ter copiado do primeiro somente o autoritarismo, e do segundo somente o republicanismo. Como os símbolos patrióticos soviéticos (a começar pela vitória antinazista) ainda tinham apelo junto à população, a ideia foi reelaborá-los às novas condições e ao sempre latente nacionalismo russo, gerando essa peculiar mistura atual.
O nacionalismo patriótico sempre foi uma das marcas da população russa, tanto que esta canção fala em russkie, ou seja, os russos étnicos, e não rossiane, isto é, os cidadãos da Rússia, independente de sua origem cultural. Mesmo na antiga URSS, esse sentimento persistiu, tanto que a língua russa, a RSFS da Rússia e a população russa, maior que todas as outras da união, sempre predominaram. Pra piorar, havia o nacionalismo por parte das outras nacionalidades constituintes (armênios, georgianos, azerbaijanos, ucranianos e bielo-russos: os povos da Ásia Central tinham escasso sentimento nacional, por serem em geral nômades), algo multiplicado com a anexação da Estônia, Letônia, Lituânia e Moldávia em 1945. Em resumo, a União Soviética, que foi em grande parte obra de Stalin como Comissário para as Nacionalidades e recebida por Lenin com estranhamento no começo, nunca se livrou desse empecilho a seu alicerce.
E os russos não devem ser julgados por essa exaltação: povo que sempre viveu com a sensação de estar cercado, sob climas rígidos (quente ou frio), pouca diversidade alimentar e guerras durante os séculos 19 e 20 inteiros, o sentimento patriótico, de pertencer a uma nação, a um coletivo maior, é um de seus poucos alentos. Por isso, ao contrário de grande parte do Ocidente, com sua bonança material e sua mobilidade pra buscar formas de governo mais flexíveis, o autoritarismo estatal acabou por se tornar um mal menor. O imperador, o secretário-geral do PCUS ou o presidente se torna um controlador de liberdades, mas em troca de garantir proteção e sustento num meio tão hostil interna e externamente. Como diria Nicos Poulantzas, o Estado, ao mesmo tempo em que diz representar a vontade geral, concentra todas as contradições existentes numa sociedade.
Eu mesmo traduzi a canção diretamente do russo e legendei o vídeo. Algumas palavras são de matiz claramente arcaico ou poético: obitel (monastério, convento, aqui “refúgio”), dal (distância, comprimento, lonjura), vovek (para sempre, ou “nunca”, em oração negativa), otrinut (recusar, evitar), viuga (nevasca). Nesta página vocês podem ler a letra original, que copiei e também segue abaixo, com a legendagem que postei no canal Eslavo (YouTube) e a tradução em português:
1. Русская земля – Божия обитель. Припев: 2. Помнят сыновья светлые молитвы, (Припев) 3. Солнце не сожжёт, вьюга не застудит, (Припев 2x) ____________________
Refrão: 2. Os filhos lembram orações de luz, (Refrão) 3. No Sol mais quente, na neve mais fria, (Refrão 2x) |
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