Benvolguts ciutadans, benvolgudes ciutadanes, Visca Catalunya! Foi assim que Carles Puigdemont, Presidente da Generalitat, como é chamado o governo autônomo da Catalunha, encerrou seu primeiro discurso público-televisivo após a semideclaração de independência da região, em 10 de outubro de 2017. Esta alocução foi proferida no dia 21 seguinte, e até a colocação da bandeira da União Europeia junto à catalã tenta passar um ar de que o cabeludinho já falava como chefe de um novo Estado independente e constituído. Porém, até agora nenhum governo mais ou menos sério se atreveu a reconhecer Barcelona abertamente, e dois aliados que seriam cruciais, Alemanha e França, declararam total repúdio ao “separatismo”. A UE, por sua vez, também preferiu apoiar a Espanha, que é um de seus membros, e tirou o sustento a Puigdemont, cujo sonho é fazer de seu próprio torrão um novo Estado-membro do bloco.
Esta é uma das situações geopolíticas mais estranhas já vista até hoje, ou ao menos “estranha” pro padrão tradicional de guerras, diplomacia, líderes fortes e secessões territoriais forçadas. Carles Puigdemont tem 54 anos e é considerado um político “jovem” pros padrões locais, tendo saído não da burguesia catalã, como os presidentes anteriores, mas de uma família de padeiros radicada na fronteira com o sul da França. Amante do rock, toca guitarra e violão, tem sua inconfundível franjinha inspirada nos Beatles e fala, além do espanhol e catalão, as línguas inglesa, francesa e romena, que é a nativa de sua esposa jornalista. Aproveitando a impopularidade de líderes anteriores, que também foram pouco ofensivos na questão da separação, chegou a seu posto no início de 2016 por meio de uma coalizão de partidos separatistas chamada “Junts pel Sí” (Juntos pelo Sim) e prometeu levar a cabo o referendo previsto em lei, que daria a palavra final sobre o pertencimento ou não à Espanha. Vale lembrar que o Presidente da Generalitat é eleito pelo Parlamento local, e não por voto universal.
Considerado corajoso, seu intento, porém, não é consensual nem dentro do Parlamento catalão, nem dentro da Catalunha, embora o povo daí de forma alguma se considere “espanhol”. A primeira grande ruptura veio com a insatisfação dos partidos separatistas mais radicais, que só conheceram o texto do discurso de 10 de outubro pouco antes da leitura e detestaram a ideia da suspensão da independência. Mas Mariano Rajoy, primeiro-ministro espanhol de direita e cavaleiro da unidade nacional, não perdeu tempo e tratou, alguns dias depois, de pôr em prática o dispositivo previsto no artigo 155 da Constituição espanhola, que manda, em caso de insurgência, temporariamente suspender o governo autônomo da Catalunha e pôr o controle de sua política e finanças sob enviados diretos de Madri. O problema é que, embora vários militantes secessionistas já tenham sido presos, aquele dispositivo nunca tinha sido usado, e nem se previa que o seria, por isso seu emprego causou e ainda causa muita discussão. O próprio Rajoy diz tentar adiar medidas mais drásticas, mas, com os catalães já na rua, esta semana promete ser muito agitada.
Como eu disse, o que parece “estranho” nessa quixotada (perdoem a ironia)? De início, a própria “suspensão de efeitos” da independência, um recuo compreensível, mas ignorado por Madri. Imagino um meme com D. Pedro 1.º no 7 de Setembro legendado assim: “Independência ou... não, péra, vamos suspender os efeitos do Grito do Ipiranga por algumas semanas”. Outro problema são as passeatas: a Catalunha tem mais de 7 milhões de habitantes, mas apenas em torno de 100 mil costumam aparecer nos protestos, tanto pró quanto contra a separação. Isso, nos anos 30, pararia o país, e poderia ter precipitado a guerra civil. Ao que parece, como já está ocorrendo com outros fenômenos políticos, as redes sociais estão roubando o protagonismo, e estamos diante de um caso inédito em que: um jornalista semelhante a um boneco Playmobil quer legitimar a independência de seu país por meio do Facebook; conversa com seus cidadãos e colegas por aplicativos de mensagem; mistura línguas estrangeiras na alocução nacional, aqui começadas por “Queria dirigir uma mensagem...”; e passa uma mensagem extremamente rasa, típica de quem só lê memes, apelando menos à crua e infeliz realidade da lei vigente do que ao argumento moralista e voluntarista de um típico millennial, que quer que seja assim porque tem que ser e ponto final.
Eu baixei o vídeo sem legendas desta página, que colocou alguns selos, mas uma versão com interpretação em espanhol, que usei no começo, mas depois dispensei, também está neste vídeo. O que realmente me ajudou e que encontrei só depois foi esta transcrição de um periódico livre catalão, que também usei pra fazer a versão corrigida abaixo. Eu mesmo traduzi direto do catalão (às vezes do espanhol) e legendei, e seguem abaixo as legendas e a tradução em português, mais refinada do que o texto daquelas:
Caras e caros concidadãos!
Todas as propostas de diálogo endereçadas ao Estado espanhol tiveram a mesma resposta: ou o silêncio, ou a repressão. Em minha última carta ao premiê espanhol, reiterei-lhe a necessidade de falarmos e recordei-lhe que este é um clamor que muita gente de muitos lugares dirige para nós. Hoje, o Conselho de Ministros encarregou-se de dar um verdadeiro virar de costas a esse clamor e a esse desejo, anunciando diversas medidas e demissões que representam diretamente a liquidação de nosso autogoverno e da vontade democrática dos catalães. Aquilo que os catalães decidiram nas urnas é anulado pelo governo espanhol em canetadas.
Dessa maneira, o governo espanhol, com o apoio do PSOE e do Ciudadanos, empreendeu o pior ataque às instituições e ao povo da Catalunha desde os decretos do ditador militar Francisco Franco que aboliam a Generalitat da Catalunha. Menosprezando a vontade popular expressada de maneira nítida e massiva nas eleições de 27 de setembro de 2015, violentando nosso Parlamento e todas as garantias e direitos dos deputados e deputadas que escolheram o Presidente da Generalitat e aprovaram o programa de governo, o governo espanhol autoproclamou-se de forma ilegítima o representante da vontade dos catalães.
Sem passar pelas urnas, com um apoio escasso e de encontro à vontade da maioria, o governo de Mariano Rajoy quer nomear um diretório para que em Madri ele dirija à distância a vida da Catalunha.
Não é a primeira vez que, também com a intervenção do Rei, as instituições catalãs recebem um golpe por parte do Estado espanhol para serem rebaixadas, reorientadas ou diretamente suprimidas. A cada vez, o povo catalão sobrepôs-se mais forte e mais determinado, consciente de que as agressões sempre ocultaram a capacidade de fazer política por parte do Estado e de que era preciso, consequentemente, conquistar mais porções de autogoverno. Do regionalismo no começo do século 20 até o soberanismo do século 21, a ideologia hegemônica foi sempre a mesma na Catalunha.
A Generalitat não é uma instituição nascida com a Constituição Espanhola atual. Muito antes da aprovação da Carta Magna, a Generalitat já funcionava, e foi restabelecida em caráter provisório conforme sua legitimidade histórica e a continuidade que, no exílio, haviam-lhe garantido os presidentes Companys, Irla e Tarradellas. Portanto, nenhuma decisão de nenhum governo pode apagar este fato que persistiu ao longo do tempo: foi a vontade dos catalães que permitiu defendermos e restabelecermos nossas instituições. O que nós temos, nós obtivemos sempre com a força das pessoas e com a força da democracia.
As instituições catalãs e o povo da Catalunha não podem aceitar esse ataque. A humilhação pretendida pelo governo espanhol, fazendo-se tutor de toda a vida pública catalã, desde o governo até os meios públicos de comunicação, é incompatível com uma atitude democrática e situa-se fora do estado de direito. Porque impor uma forma de governo não escolhida pelos cidadãos, sem uma maioria parlamentar que o ratifique, é incompatível com o estado de direito.
Como o é agir impunemente com violência contra cidadãos pacíficos, usar códigos penais antigos para manter na prisão duas pessoas de paz que não cometeram nenhum crime e perseguir ideias e meios de comunicação ou estimular a instabilidade econômica de maneira irresponsável. Ou como foi também gravíssima a irresponsabilidade do Partido Popular com o hoje premiê Mariano Rajoy como condutor de uma infame coleta de assinaturas contra a Catalunha e a vergonhosa sentença do Tribunal Constitucional depois, reitero, depois de ter sido aprovado o Estatuto da Catalunha num referendo legal e consentido. Aqueles irresponsáveis que menosprezaram a vontade dos catalães e agrediram o pacto constitucional de 1978 são os que hoje querem governar-nos.
Estou ciente, portanto, da ameaça que pesa sobre todo o povo da Catalunha se o Estado perpetrar seu intento liquidador. Devemos nos comprometer a defender de novo nossas instituições, como sempre fizemos, de maneira pacífica e civilizada, porém carregados de dignidade e de motivos. Por isso vou pedir ao Parlamento que fixe a convocatória de uma sessão plenária onde os representantes da soberania cidadã, escolhidos pelos votos dos cidadãos, por vocês, debatamos e decidamos sobre o intento de liquidar nosso autogoverno e nossa democracia e atuemos de forma consequente.
(Parágrafo em espanhol) Quero dirigir uma mensagem aos democratas espanhóis. O que se está fazendo com a Catalunha é um ataque direto à democracia, que abre caminho para outros abusos da mesma natureza em qualquer lugar, não somente na Catalunha. Criminalizar os dissidentes, negar a realidade e erguer muros de legalidades na frente das janelas da vontade cidadã: se tudo isso triunfa, o prejuízo à democracia, e portanto aos cidadãos, será muito pesado e acarretará um retrocesso monumental. Não devemos permitir que isso ocorra.
(Parágrafo em inglês) Quero dirigir uma mensagem para a Europa. Não somente a seus líderes políticos, mas também, e sobretudo, a todos os cidadãos europeus, nossos irmãos e irmãs, com os quais compartilhamos a cidadania europeia. Se os valores fundacionais europeus estiverem em risco na Catalunha, eles também o estarão na Europa. Decidir democraticamente o futuro de uma nação não é um crime. Reprimir vai contra os fundamentos que unem os cidadãos europeus através de sua diversidade. A Catalunha é uma nação europeia antiga e está no centro dos valores europeus. Estamos fazendo tudo isso porque acreditamos numa Europa democrática e pacífica, a Europa da Carta de Direitos Fundamentais que deve proteger todos e cada um de nós. Vocês devem saber que aquilo pelo que vocês estão lutando em casa, também estamos lutando na Catalunha. E assim continuaremos fazendo.
Senhoras e senhores, caros concidadãos, caras concidadãs, viva a Catalunha!
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