Esta legendagem foi um dos maiores desafios pra mim, não somente porque levei quatro dias fazendo (fui intercalando com atividades acadêmicas), mas também porque enfrentei sobrepostos o discurso que estava sendo proferido em catalão e a interpretação simultânea em espanhol. Este é o discurso feito por Carles Puigdemont, Presidente da Generalitat da Catalunha, nome que se dá ao governo da região autônoma espanhola, no Parlamento local a partir das 19h (14h no horário de Brasília) de 10 de outubro de 2017, início atrasado em uma hora. O líder apresentaria então à casa o resultado oficial do referendo do último dia 1.º, que tinha aprovado a formação do Estado catalão como república e sua separação da Espanha monárquica.
O conflito entre espanhóis e catalães, entre Madri e Barcelona, é secular e sempre teve pontos altos de tensão. A Catalunha usa um idioma muito próximo do italiano falado no sul do Mediterrâneo, mas que pertence não ao ramo itálico das línguas românicas, mas ao ramo occitano, do qual o outro único representante ainda hoje relevante é o idioma occitano, falado por minorias no extremo sul da França. (O catalão, por exemplo, está muito longe de ser língua de minorias ou próxima da extinção.) Na Idade Média, as línguas occitanas gozavam de grande prestígio junto aos trovadores, poetas e cancioneiros, mas no fim dessa era começaram a surgir os grandes Estados nacionais, e a Catalunha passou a integrar no século 16 o Império Espanhol. Sempre houve um vaivém na liberalização ou repressão da língua catalã, mas o momento mais brutal foi na repressão do ditador Franco, que perseguiu todas as minorias culturais. Apenas após sua morte, em 1975, os catalães obteriam mais liberdade pra escolher seus destinos.
Mas o sonho pela independência continuou. Catalães e espanhóis (sem contar que a Espanha tem ainda outras minorias nacionais, como galegos, bascos etc.) têm culturas um tanto distintas, e a Catalunha é a região mais rica, que responde por 1/5 do PIB, com as melhores universidades e o F. C. Barcelona (Barça), midiático e lucrativo clube de futebol. Nos últimos anos, as relações entre o centro e a província foram se desgastando, e aumentou a frequência das consultas populares sobre a independência nacional. Após o plebiscito de 2014, sem efeito jurídico, finalmente em 1.º de outubro de 2017 a Generalitat catalã convocou um referendo que daria a palavra final. Mas sem a anuência de Madri, os eleitores foram brutalmente reprimidos e muitos colégios eleitorais foram fechados. No dia 10, o presidente regional Puigdemont (ler “pudj-demôn”) daria no Parlamento uma alocução que poderia significar a declaração de independência unilateral.
Marcado pras 18h (13h em Brasília), ele começou apenas alguns minutos depois das 19h (14h em Brasília), adiamento atribuído a uma última busca por intermediários internacionais. Ao findar o discurso, Puigdemont confirmou a intenção de proclamar a Catalunha uma república independente, mas solicitou que os “efeitos” da independência só começassem a valer dentro de algumas semanas, pra que fossem abertos novos canais de diálogo com a Espanha. A verdade é que o intento da Generalitat quase não encontrou respaldo mundial: a Espanha ameaçou a suspensão do autogoverno; a França e a Alemanha disseram não reconhecer a separação (a própria França tem minorias parecidas, a começar pela que faz fronteira com a Catalunha, que poderia querer se juntar a esta, além dos bretões do norte); a União Europeia não deu sinal favorável, pelo contrário, apelou pela “unidade espanhola”. Além disso, embora o Sim tenha ganhado por mais de 90% dos votos, menos da metade dos eleitores aptos foi votar, talvez por medo da polícia, talvez por indiferença à questão.
Irritados com esse recuo, os deputados do CUP, partido de esquerda independentista que formou a base do movimento com o Junts pel Sí de Puigdemont, sequer aplaudiu o discurso, como se vê no vídeo. Pra piorar, Mariano Rajoy, premiê espanhol, pediu explicações sobre se essa sessão declarou ou não a separação. Notavelmente, o entusiasmo do povo que assistia ao discurso nas praças foi-se amainando com as últimas palavras do presidente, dando lugar a uma perplexidade e incompreensão. A cobertura da mídia espanhola é implacável: até o El País em português online baba de raiva ao falar do assunto, e nesse vídeo que legendei, abre-se mesmo um breve link ao vivo de uma sessão no Congresso dos Deputados em Madri, tratando do mesmo problema. Inclusive no Brasil, pelo menos no Jornal Nacional que eu tenho visto mais, a omissão é cabal, passando a mesma imagem de “delirantes” feita pela Espanha. Espero que este vídeo, mesmo com 3 dias de atraso, e a concernente versão escrita possam suprir um pouco essa lacuna.
Este vídeo sem legendas foi o primeiro que achei logo depois do discurso, e depois não procurei outros em catalão ou espanhol. A maior parte do catalão de Puigdemont é coberta pelo espanhol do intérprete, o qual usei como base pra traduzir. Porém, onde pude, me baseei também em fragmentos do original que eu ia escutando (estudei um pouco de catalão sozinho), e inclusive, pra sincronizar as legendas, ora me apoiava na fala de Puigdemont, ora na do intérprete. Este mesmo, em alguns momentos, se embromava ou se atrasava todo! Por isso, só pude fazer o trabalho apoiado neste rascunho de tradução em espanhol, o qual, contudo, também omite algumas partes.
Somente depois de legendar descobri uma transcrição completa na página de um periódico catalão, e pra fazer esta postagem no blog, decidi pegar o texto das legendas, compará-lo com essa transcrição e fazer uma versão escrita corrigida e definitiva, e menos condensada do que o exigido no audiovisual. Infelizmente, percebi que eu (ou o intérprete!) cometi alguns erros de tradução no vídeo, mas nada impede a fruição total da mensagem. Seguem abaixo minha legendagem e a tradução pra impressão:
Compareço diante deste Parlamento por petição própria para apresentar-lhes os resultados do referendo celebrado no dia 1.º de outubro e para explicar-lhes as consequências políticas dele derivadas. Tenho ciência, como seguramente muitos dos senhores, que também estou comparecendo hoje diante do povo da Catalunha e de muitas outras pessoas que fixaram sua atenção no que hoje possa ocorrer nesta Câmara.
Vivemos um momento excepcional, de alcance histórico. Suas consequências e efeitos vão muito além de nosso país, e ficou evidente que, longe de ser assunto doméstico e interno, como fomos muitas vezes obrigados a escutar da parte dos que se esquivaram da responsabilidade ao não quererem inteirar-se do que ocorria, a Catalunha é um assunto europeu.
De meu discurso, não esperem chantagens, ameaças ou insultos. O momento é sério o bastante para que todos assumamos nossa parte de responsabilidade devida na necessidade imperiosa de diminuir a tensão e não contribuir com palavras ou gestos para fomentá-la. Pelo contrário, quero dirigir-me ao conjunto da população, aos que se mobilizaram nos dias 1.º e 3 de outubro, aos que o fizeram no sábado, na manifestação em prol do diálogo, aos que o fizeram massivamente no domingo, em defesa da unidade da Espanha, e aos que não se mobilizaram em nenhum desses comícios. Todos, na diferença e na discrepância, no que nos entendemos e no que não nos entendemos, formamos um mesmo povo e devemos seguir assim junto a despeito de tudo, porque é assim que se constrói o caminho de povos que procuram seu futuro.
Nunca estaremos de acordo em tudo, é óbvio. Mas entendemos, como já mostramos muitas vezes, que não há outra maneira de avançar senão a democracia e a paz. Quer dizer, o respeito por quem pensa diferente e a descoberta de como realizar as aspirações coletivas, o que exige obviamente grandes doses de diálogo e empatia.
Como vocês podem supor, nestes últimos dias e horas, muitas pessoas se dirigiram a mim sugerindo o que devia fazer ou evitar fazer. Todas essas sugestões são respeitáveis e lícitas, próprias a um momento como o atual. Agradeci todos aqueles que pude, porque reconheci de cada um razões fundamentadas, dignas de se escutarem. Também eu pedi a opinião de diferentes pessoas que me ajudaram a enriquecer a análise do momento e a perspectiva para o futuro, e por isso quero agradecê-las de todo coração.
Porém, senhoras e senhores deputados, o que vou lhes expor neste dia não é minha decisão pessoal nem mania de ninguém: é o resultado do 1.º de outubro, da vontade do Governo que presido de honrar seu compromisso em convocar, organizar e celebrar o referendo de autodeterminação e, claro, da análise dos fatos posteriores que partilhamos com o Governo. Hoje devemos no Parlamento falar dos resultados da votação, e é o que faremos.
Estamos aqui porque no último domingo, 1.º de outubro, a Catalunha celebrou seu referendo de autodeterminação, em condições mais que difíceis, de fato extremas. É a primeira vez na história das democracias da Europa que uma jornada eleitoral se desdobra em meio a violentos ataques policiais contra votantes que fazem fila para depositar sua cédula. Desde as 8 da manhã até a hora de fechar os colégios, a polícia e a Guarda Civil golpearam pessoas indefesas e forçaram os serviços de emergência a atenderem mais de 800 pessoas. Todos nós vimos isso, e todo o mundo também viu e se chocou com as imagens que ia recebendo.
O objetivo não era somente confiscar urnas e cédulas, mas provocar pânico generalizado e fazer as pessoas, vendo as imagens de violência policial indiscriminada, ficarem e casa e renunciarem a seu direito de votar. Porém, aos responsáveis políticos por essa ignomínia, o tiro saiu pela culatra: 2.286.217 cidadãos venceram o medo, saíram de casa e votaram. Não sabemos quantos tentaram e não conseguiram, mas sabemos que os colégios fechados de forma violenta representam um acréscimo de 770 mil pessoas.
Mais de 2,2 milhões de catalães puderam votar porque venceram o medo, e também porque quando chegaram a seu colégio, encontraram urnas, envelopes, cédulas, mesas constituídas e uma contagem confiável e operante. As operações e registros policiais das semanas passadas, em busca de urnas e cédulas, não impediram o referendo. As prisões dentro do alto escalão e do funcionalismo governamentais também não findaram a votação. As escutas telefônicas, a perseguição de pessoas, os ataques na internet, o fechamento de 140 sites e as violações de correspondência tampouco barraram o referendo. Repito: apesar do esforço e dos recursos voltados a combatê-lo, quando os cidadãos chegaram aos colégios eleitorais, encontraram urnas, envelopes, cédulas, mesas constituídas e uma contagem fidedigna e operante.
Quero dar, portanto, meu reconhecimento a todas as pessoas que tornaram possível este êxito logístico e político: aos voluntários que dormiram nas escolas, aos cidadãos que guardaram as urnas em casa, aos gráficos que imprimiram as cédulas, aos programadores que projetaram e desenvolveram o sistema de contagem universal, aos trabalhadores e trabalhadoras do Governo, aos que votaram no Sim, que votaram no Não ou que votaram em branco, a tantíssimas pessoas anônimas que puseram seu grão de areia para tornar tudo possível. Quero enviar, sobretudo, minha afeição, minha solidariedade e meu apoio a todos os feridos e agredidos pela operação policial. As imagens ficarão registradas em nossa memória para sempre. Nunca vamos esquecê-las.
Deve-se reconhecer e denunciar que a atuação do Estado conseguiu introduzir tensão e inquietude na sociedade catalã. Como Presidente da Catalunha, tenho toda ciência de que nessas horas há muitas pessoas preocupadas, angustiadas e mesmo assustadas com o que está ocorrendo e com o que pode ocorrer, pessoas de todas as ideologias e correntes. A violência gratuita e a decisão de algumas empresas de transferirem suas matrizes – uma decisão, deixem-me dizer, mais ligada aos mercados do que com dados reais de nossa economia, sobre a qual o impacto real são na verdade os 16 bilhões de euros catalães que são obrigados a mudar de matriz todo ano – sem dúvida são fatos que, admito, anuviaram o ambiente. A todas essas pessoas com medo quero enviar uma mensagem de compreensão e empatia, e também de serenidade e tranquilidade: o Governo da Catalunha não vai se desviar um milímetro de seu compromisso com o progresso social e econômico, a democracia, o diálogo, a tolerância, o respeito às divergências e a vontade de negociar. Como Presidente, sempre atuarei com responsabilidade e levando em conta os 7,5 milhões de cidadãos do país.
Gostaria de explicar aonde chegamos e, sobretudo, por que aí estamos. Hoje, quando muitos estrangeiros nos observam e, sobretudo hoje, quando o mundo todo nos escuta, penso que vale a pena explicar de novo.
Desde a morte do ditador militar Francisco Franco, a Catalunha foi a que mais contribuiu para consolidar a democracia espanhola. A Catalunha não foi somente o motor econômico da Espanha, mas também um fator de modernização e estabilidade. A Catalunha acreditou que a Constituição espanhola de 1978 podia ser um bom ponto de partida para garantir seu autogoverno e seu progresso material. A Catalunha se envolveu a fundo na operação que devolveu o Estado espanhol às instituições europeias e internacionais após 40 anos de isolamento e autarquia.
Passados os anos, porém, pudemos constatar que o novo edifício institucional surgido da Transição, que na Catalunha era visto como um ponto de partida do qual se evoluiria para níveis mais altos de democracia e autogoverno, era entendido pelas elites hegemônicas do Estado não como um ponto de partida, mas como um ponto de chegada. E ao longo dos anos, o sistema não somente parou de evoluir na direção desejada pelo povo da Catalunha, mas também começou a regredir.
Conforme a essa constatação, em 2005, a vasta maioria, 88% deste Parlamento, repito, uma maioria de 88% deste Parlamento, seguindo os procedimentos determinados pela Constituição, repito, seguindo os procedimentos determinados pela Constituição, aprovou a proposta de um novo Estatuto de Autonomia e a enviou ao Congresso dos Deputados. A proposta catalã desencadeou uma autêntica campanha de catalanofobia, atiçada de maneira irresponsável pelos que queriam governar a Espanha a qualquer preço.
O texto finalmente submetido a referendo em 2006 já era muito diferente da proposta inicial do Parlamento da Catalunha. Porém, apesar de tudo, foi aprovado pelos cidadãos que foram votar. 47% dos votantes aptos participaram, e os votos favoráveis ao Estatuto foram de 1.899.897. Quero ressaltar que são 145 mil votos a menos do que obteve o Sim à independência no último 1.º de outubro.
Porém, ao Estado não bastou o primeiro decepamento. Em 2010, quatro anos depois de entrar em vigor o Estatuto decepado, um Tribunal Constitucional formado por magistrados escolhidos a dedo basicamente pelos dois grandes partidos espanhóis, o PSOE e o PP, proferiu uma sentença, de infame lembrança, que decepava o Estatuto uma segunda vez e modificava o conteúdo que já havia sido aprovado pelo povo em referendo.
Recordemos e destaquemos esse fato: apesar de termos seguido os procedimentos previstos na Constituição, ou seja, apesar de termos obedecido mando e normas constitucionais, apesar dos 88% do Parlamento da Catalunha que apoiaram e apesar do voto popular em referendo legal e consentido, a ação coordenada do Congresso dos Deputados e, em especial, do Tribunal Constitucional converteram a proposta catalã num texto irreconhecível. E convém relembrar e destacar também: esse texto irreconhecível, duas vezes decepado e não referendado pelos catalães, é a lei vigente hoje em dia. Esse foi o resultado da última tentativa da Catalunha de modificar seu status jurídico-político pelas vias constitucionais, ou seja, uma humilhação.
Mas isso não é tudo. Desde a sentença do Tribunal Constitucional contra o Estatuto votado pelo povo, o sistema político espanhol não somente não moveu uma palha para tentar voltar atrás e consertar o dano feito, mas também pôs em marcha um programa agressivo e sistemático de recentralização. Do ponto de vista do autogoverno, os últimos sete anos foram os piores dos últimos 40: supressão contínua de incumbências por meio de decretos, leis e sentenças; desatenção e desinvestimento no sistema básico de infraestruturas da Catalunha, peça-chave do progresso econômico do país; e um injurioso menosprezo para com a língua, a cultura e o jeito de ser e viver de nosso país.
Tudo isso que explico condensadamente em algumas linhas teve um impacto profundo na sociedade catalã, muito fundo, a ponto de, durante esse período, muitos cidadãos, de fato milhões de cidadãos, chegaram racionalmente à conclusão de que a única forma de assegurar a sobrevivência não só do autogoverno, mas também de nossos valores como sociedade, é a Catalunha constituir-se num Estado. Os resultados das últimas eleições para o Parlamento da Catalunha testemunham isso.
Além disso, ocorreu algo ainda mais relevante: paralelamente à formação da maioria absoluta independentista no Parlamento, formou-se um consenso muito amplo e transversal em torno da ideia de que o futuro da Catalunha, fosse qual fosse, devia ser traçado pelos catalães de forma democrática e pacífica, por meio de um referendo. De fato, na pesquisa mais recente de um importante diário de Madri, não daqui, mas de Madri, 82% dos catalães assim se expressam.
Pois bem, com o objetivo de pôr em prática esse referendo, nos últimos anos as instituições e a sociedade civil catalãs lançaram numerosas iniciativas ante o governo e as instituições espanhóis. Todas estão documentadas: até 18 vezes e em todos os formatos possíveis, solicitamos abertura de um diálogo para combinar um referendo como o celebrado na Escócia em 18 de setembro de 2014. Um referendo com uma data e uma pergunta combinadas entre as duas partes, no qual as duas partes pudessem fazer campanha e expor seus argumentos e no qual ambas partes se comprometessem a aceitar e aplicar o resultado por meio de uma negociação que protegesse os respectivos interesses. Se isso pôde ter sido feito numa das democracias mais antigas, consolidadas e exemplares do mundo como o Reino Unido, por que não podia se fazer igual na Espanha?
A resposta a todas essas iniciativas foi uma negativa radical e absoluta, combinada com a perseguição policial e judicial das autoridades catalãs. O ex-presidente Artur Mas, hoje aqui conosco, as ex-conselheiras Joana Ortega e Irene Rigau, esta também deputada hoje, e o ex-conselheiro da Presidência Francesc Homs, também presente, foram todos inabilitados por terem promovido um processo participativo não vinculante e sem efeito jurídico no dia 9 de novembro de 2014. E não só inabilitados, mas também multados de forma arbitrária e abusiva: se não depositarem mais de 5 milhões de euros ao Tribunal de Contas espanhol em alguns dias, todos os seus bens serão embargados e eles e suas famílias poderão ver-se gravemente prejudicados.
Além deles, uma parte importante da Mesa deste Parlamento e dezenas de políticos municipais eleitos foram processados por expressarem seu apoio ao direito de decidir e permitir debates sobre o referendo. Relembro e repito: foram lançados processos contra a presidenta e membros da mesa do Parlamento, por quê? Para impedir que este Parlamento pudesse debater! A última onda repressiva contra as instituições catalãs implicou a detenção e a transferência a dependências policiais de 16 políticos e servidores públicos do Governo da Catalunha, que tiveram de depor algemados e sem serem informados de qual era a acusação que pesava contra eles. O mundo também deve saber que os líderes das entidades que lideraram as manifestações mais massivas e, ao mesmo tempo, pacíficas da história da Europa, estão hoje acusados de um delito de sedição que pode acarretar até 15 anos de prisão: os responsáveis por terem promovido manifestações que maravilharam o mundo por sua organização, seu civismo e sua total ausência de incidentes.
Essa foi a resposta do Estado espanhol às demandas catalãs, exigências que sempre, sempre foram expressas e devem ser expressas de forma pacífica e por meio das maiorias obtidas nas urnas. O povo da da Catalunha reclama há muitos anos liberdade para poder decidir. É muito simples. Contudo, não encontramos interlocutores no passado e não estamos ainda encontrando. Não há nenhuma instituição do Estado que se abra para falar do pedido majoritário deste Parlamento e da sociedade catalã. A última esperança que podíamos ter era que a monarquia exercesse o papel de árbitro e moderador que a Constituição lhe outorga, mas o discurso da semana passada confirmou a pior das hipóteses.
(Parágrafo em espanhol) Quero dirigir-me agora aos cidadãos do conjunto do Estado espanhol que seguem com preocupação o que acontece na Catalunha. Quero passar-lhes uma mensagem de serenidade, respeito, vontade de diálogo e acordo político, como sempre foi nosso desejo e nossa prioridade. Estou ciente das informações que vocês recebem da maioria das mídias e de qual foi a narrativa que se consolidou. Ouso, porém, pedir-lhes um esforço para o bem de todos; um esforço para que conheçam e reconheçam o que nos levou até aqui e as razões que nos impeliram. Não somos delinquentes. Não somos loucos. Não somos golpistas. Não somos alienados. Somos pessoas normais que pedem para poder votar e que estiveram dispostas a todo diálogo que fosse necessário para fazê-lo de maneira consentida. Não temos nada contra a Espanha e os espanhóis. Ao contrário, queremos de novo nos entender melhor e esse é o desejo majoritário que existe na Catalunha. Pois hoje, desde há muitos anos já, a relação não está funcionando e nada foi feito para reverter uma situação que se tornou insustentável. E um povo não pode ser obrigado, contra sua vontade, a aceitar um status quo no qual não votou e o qual não quer. Efetivamente, a Constituição é um marco democrático, mas é igualmente certo que a democracia vai mais além da Constituição.
Senhoras e senhores, com os resultados do referendo de 1.º de outubro passado, a Catalunha ganhou o direito de ser um Estado independente e ganhou o direito de ser escutada e respeitada.
E devo dizer que ser escutada é o que está ocorrendo ultimamente, porque o que tem se dado nesse âmbito nos últimos dias não se dava em anos, e hoje a Catalunha é ouvida e estimada para além de nossas fronteiras.
O Sim à independência ganhou eleições por maioria absoluta, e após dois anos ganhou um referendo sob uma chuva de golpes de cassetete. As urnas, a única linguagem que entendemos, dizem SIM à independência, e este é o caminho que estou comprometido a percorrer.
Como se sabe, a Lei de Referendo estabelece que, dois dias após a proclamação oficial dos resultados, e caso os votos do Sim tenham superado os votos do Não, o Parlamento, e cito textualmente a lei: “celebrará uma sessão ordinária para efetuar uma declaração formal de independência da Catalunha com seus efeitos e agendar o início do processo constituinte”.
Há um antes e um depois do 1.º de outubro. Conseguimos o que no princípio da legislatura nos comprometemos a fazer.
Chegado esse momento histórico, e como Presidente da Generalitat, assumo o dever de mostrar o resultado do referendo diante do Parlamento e de nossos concidadãos, mostrar o mandato para que a Catalunha se converta num Estado independente em forma de República.
Isso é o que nos toca fazer hoje, por responsabilidade e respeito.
E com a mesma solenidade, o Governo e eu mesmo propomos que o Parlamento suspenda os efeitos da declaração de independência, para que nas próximas semanas promovamos um diálogo, sem o qual não é possível chegar a uma solução consensual. Acreditamos firmemente que o momento exige não somente amainar a tensão, mas, sobretudo, agirmos com clareza e compromisso para avançarmos as demandas do povo da Catalunha a partir dos resultados de 1.º de outubro, os quais temos imprescindivelmente de levar em conta na etapa de diálogo que estamos dispostos a abrir.
Todos os senhores sabem que, desde o dia seguinte ao referendo, lançaram-se várias iniciativas de mediação, diálogo e negociação a nível nacional, estatal e internacional. Algumas delas são públicas, outras ainda não, mas logo o serão. Todas são muito sérias e eram difíceis de se imaginar há algum tempo. As chamadas ao diálogo e à não violência partiram de todos os cantos do planeta: a declaração feita ontem por oito vencedores do Nobel da Paz; a declaração do The Elders, cujo líder é Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU, e que é formado por personalidades de eminência mundial; os posicionamentos de presidentes e primeiros-ministros de países europeus e de líderes políticos europeus. O clamor por diálogo percorre a Europa, porque ela já se sente interpelada sobre os efeitos que pode ter uma resolução ruim deste conflito. Todas essas vozes merecem ser escutadas, e todas, sem exceção, nos pediram que deixemos um tempo para dar oportunidade ao diálogo com o Estado espanhol.
Hoje, também isso deve ser feito por responsabilidade e respeito.
Encerrando, faço isso com apelo a que todos sejam responsáveis. Aos cidadãos da Catalunha, peço que continuem se exprimindo como têm feito até agora: com liberdade e respeito aos que pensam diferente. Às empresas e agentes econômicos, peço que continuem gerando riqueza e não caiam na tentação de usar seu poder para assustar o povo. Às forças políticas, peço que contribuam com suas palavras e ações para amainar a tensão. Faço o mesmo pedido aos meios de comunicação. Ao governo espanhol, peço que escute, não mais a nós, se não quiser, mas aos que pedem a mediação, à comunidade internacional e aos milhões de cidadãos de toda a Espanha, que lhe rogam deixar a repressão e a imposição. E à União Europeia, peço que se envolva a fundo e que zele por seus próprios valores fundacionais.
Hoje, o Governo da Catalunha está fazendo um gesto responsável e generoso e volta a estender a mão ao diálogo. Estou convencido de que, se nos próximos dias, todos agirem com a mesma responsabilidade e cumprirem com suas obrigações, o conflito entre a Catalunha e o Estado espanhol pode ser resolvido de forma serena e consensual, respeitando a vontade dos cidadãos. Ainda não é o fim para nós. Pois queremos ser fiéis à nossa longa história, a todos os que sofreram e se sacrificaram, e porque sonhamos com um futuro digno para nossos filhos e filhas e para todas as pessoas que queiram fazer da Catalunha sua terra de acolhida e esperança.
Muito obrigado!