No dia 23 de abril houve o primeiro turno das eleições presidenciais na França, e os resultados deram no segundo turno entre Emmanuel Macron (En Marche!) e Marine Le Pen (Front national). Em disputa, duas visões opostas sobre a Europa e a afluência de imigrantes: ele queria liberar mercados, reformar a União Europeia, integrando a França ainda mais a ela, e diminuir a discriminação contra os imigrantes; e ela, mais protecionismo econômico, sair do bloco europeu (o chamado “Frexit”, paralelo ao “Brexit” britânico) e reduzir drasticamente a imigração, sobretudo de muçulmanos, expulsando do país os já incluídos nas listas de vigilância. Os números foram de 24,01% pra Macron e 21,3% pra Le Pen, e se lembrarmos que François Fillon (Les Républicains, antiga UMP), de direita, obteve 20,01% dos sufrágios e Jean-Luc Mélenchon (bloco “La France insoumise”), de extrema-esquerda, 19,58%, nota-se que os franceses estão muito divididos, insatisfeitos. François Hollande não quis nem mesmo tentar a reeleição, fato inédito na Quinta República, e é a primeira vez em décadas que nem os Rep/UMP, nem o Partido Socialista, chegaram ao 2.º turno.
Via de regra, rotulam-se Marine Le Pen de “extrema-direita” e Emmanuel Macron, cujo partido ele criou ano passado apenas pra disputar essas eleições, de “centrista”. Apesar do discurso duro e por vezes xenofóbico, parece meio forçado chamar o FN de “fascista”. Mas quase todas as outras forças se uniram em torno de Macron pra derrotar o chamado “perigo” de Le Pen. Apenas o derrotado no 1.º turno Nicolas Dupont-Aignan (Debout la France) recomendou voto em Marine Le Pen no 2.º turno, enquanto os outros recomendaram Macron, nulo ou não disseram nada. Ao comemorar a passagem pra outro turno, ela fez um discurso breve pra reafirmar os valores de seu partido, anunciar sua vontade de enrijecer as fronteiras da França e não realizar qualquer conciliação com Macron, a quem considera “mais do mesmo”, o velho candidato dos bancos e continuador de Hollande (PS) e suas más políticas, dele tendo sido ministro por alguns anos.
Marion Anne Perrine Le Pen, que se fez chamar “Marine”, nasceu em 1968 e se inscreveu no FN em 1986, quando começou a militar ativamente. Sua formação e estudos em Direito não a impediram de incrementar sempre mais seu ativismo político, crescentemente aparecendo na mídia desde 2002, quando seu pai Jean-Marie concorreu em 2.º turno à Presidência da República com o vitorioso Jacques Chirac (UMP). Desde 1998 ela ocupa vários cargos públicos, é deputada europeia desde 2004 e presidente do FN desde 2011. Jean-Marie em 2007 e Marine em 2012 não conseguem ir ao 2.º turno das presidenciais, mas a votação cresce de ano a ano. E também de crise em crise, a filha se distancia cada vez mais das posições insistentemente xenofóbicas e retrógradas do pai, até que consegue fazer que o excluam do FN em 2015. Fato notório: ele não perde o cargo de presidente de honra, o que lhe conserva direitos internos.
A chegada de Marine ao 2.º turno com uma votação histórica coroou a história do partido fundado em 1972 pelo movimento Ordre nouveau, bem mais próximo do fascismo e que escolheu Jean-Marie Le Pen pra presidir o FN, já tentando lhe dar uma cara “respeitável”. Essa busca pela inserção, forçando por vezes a moderar posições, marcou o trajeto do FN até hoje, embora no essencial mantenha sua raiz nacionalista, eurocética, anti-imigração e protecionista. Marion Maréchal-Le Pen, por exemplo, é um modelo de rigidez ideológica, mas de liberalismo político e econômico.
Não apoio nem rejeito Marine Le Pen, embora eu veja muita incoerência no discurso dela (por exemplo, ela certamente teria logo se ajoelhado ao dinheiro-rei, à concorrência desleal e à velha Dona Zelite de Lula). Não tive muito tempo nos últimos anos de ler com calma o programa do FN. Eu apenas sigo de perto a política francesa, porque estudei francês por muitos anos. E sei também que meu antigo canal no YouTube tinha uma ampla audiência de direita, embora ele tenha deslanchado com as legendagens comunistas. Sou progressista, mas não apoio acriticamente nem o comunismo soviético, nem o projeto dos Le Pen, e sei que as presidências de Sarkozy e Hollande estiveram entre as piores da história da França, além das de Mitterrand e Chirac, que também foram problemáticas.
Eu baixei o vídeo sem legendas desta página de notícias, e a transcrição completa em francês do discurso de Marine Le Pen está nesta página no site do Front national. Eu mesmo traduzi e legendei, usando como base o discurso escrito, e seguem abaixo as legendas e a tradução em português:
Meus caros compatriotas,
Vocês me levaram ao segundo turno da eleição presidencial. Eu reconheço essa honra com humildade e gratidão. Quero expressar a vocês, eleitores patriotas franceses, meu agradecimento mais profundo.
Queimamos a primeira etapa que levará os franceses ao Élysée. Esse resultado é histórico. Ele põe sobre meus ombros, desde já, a responsabilidade imensa de defender a nação francesa, sua unidade, sua segurança, sua cultura, sua prosperidade e sua independência.
Ele significa também um ato de orgulho francês, de um povo que reergue a cabeça, de um povo seguro de seus valores e confiante no futuro. Todo francês percebeu que o sistema tentou de todas as formas, até as mais duvidosas, abafar o vasto debate político que a eleição deveria ter sido.
Finalmente, esse grande debate agora vai acontecer. Os franceses devem apanhar esta oportunidade histórica que raia, pois nesta eleição está em jogo a mundialização selvagem, que põe em risco nossa civilização.
A opção dos franceses é simples. Ou continuamos rumo a uma total desregulamentação, sem proteção e sem fronteiras, tendo como consequência as deslocalizações, a concorrência internacional desleal, a imigração em massa e o livre curso aos terroristas. Esse reino é o do dinheiro-rei. Ou escolhemos a França, com fronteiras que protegem nossos empregos, nosso poder de compra, nossa identidade nacional, nossa segurança.
Vocês têm então a opção pela alternância, a verdadeira. Não aquela na qual governos se sucedem sem que nada mude. A que lhes proponho é a grande alternância, a alternância fundamental, que vai pôr em marcha uma nova política, novos rostos no poder, e a renovação que vocês desejam. Claro que não é com o herdeiro de François Hollande e de todos os fracassos desses cinco anos catastróficos que a alternância tão esperada virá.
Chegou a hora de livrar o povo francês, todo o povo, lembrando os compatriotas do Ultramar, que exprimiram para comigo uma lisonjeira confiança. Chegou a hora de livrar o povo francês de elites arrogantes que querem ditar sua conduta, pois eu sou, sim, a candidata do povo.
Lanço apelo a todos os patriotas sinceros, donde quer que venham, qualquer que seja a origem e qualquer que fosse seu trajeto e seu voto no primeiro turno, a juntarem-se a mim. Convido-os a deixarem as brigas passadas, os apriorismos e os ressentimentos, para o bem do interesse superior do país.
É o essencial, realmente o essencial, que está em jogo: a sobrevivência da França. Chamo-os à unidade nacional por trás de nosso projeto de retificação. Vamos os acolher fraternalmente.
Em 8 de agosto de 1943, o general de Gaulle lembrava em Casablanca: “A grandeza de um povo só pode proceder desse povo.” Foi esse princípio que, durante os 1500 anos de sua história, deu forma à França que nós amamos. Será esse princípio que vou pôr em prática.
A união do povo francês com a qual todos sonham só se forma em torno do amor à França.
Viva o povo francês!
Viva a República!
Viva a França!