Essa é uma das mais famosas canções folclóricas russas e se chama “Калинка” (Kalinka), ou “Калинка-Малинка” (Kalinka-Malinka), numa referência carinhosa a duas frutinhas típicas da Rússia, o viburno (kalina) e a framboesa (malina). Ela data de 1860, tendo sido composta por Ivan Larionov.
Por muito tempo se pensou que essa música fosse anônima, mas na verdade ela tem a autoria de Larionov, cuja peça foi executada pela primeira vez em Saratov, num espetáculo de artistas amadores. Larionov também compôs a parte musical dessa apresentação, e logo o regente Dmitri Argenev-Slavianski conheceu a canção e pediu pra incluí-la em seu repertório. Começou aí a fama de Kalinka, mas o renome mundial viria na era soviética, com o arranjo de Aleksandr Aleksandrov, autor do hino nacional da URSS e diretor do Coral do Exército Vermelho, que a tocou na maioria das turnês no estrangeiro.
O próprio vídeo que legendei exibe uma das gravações desse coral, que hoje faz parte do Exército Russo, leva o nome de Aleksandrov e, além da parte cantada e tocada, tem o conjunto de dança, especializado no folclore russo. O coral voltou à mídia no Natal (católico) de 2016, quando um avião que o levava pra apresentar-se na Síria caiu no mar Mediterrâneo, causando uma perda cultural irreparável. O vídeo que baixei pra legendar está no canal do Coral do Exército Vermelho, mas há ainda outras interpretações de que talvez vocês gostem: um vídeo mais antigo com o coral, de 1965, tendo Ievgeni Beliaiev por solista, conhecido como “Mr. Kalinka” por cantá-la com frequência no exterior; com Ivan Rebroff, pseudônimo de um célebre cantor alemão especializado na música russa; e uma versão mais moderna, com batida eletrônica, na voz de Marina Deviatova.
A letra é muito simples, mas a densidade das informações contidas é que torna trabalhosa uma descrição. O viburno (kalina) e a framboesa (malina) são duas bagas, ou frutas em bolinhas, que na mitologia eslava pagã eram oferecidas como oferenda a Liuli, deusa da primavera, terra, amor e fertilidade (daí sua invocação na música). Segundo outras fontes, “liuli” (além de muitas outras formas nas línguas eslavas) aparece como uma invocação de Lelia (ou Lialia), não exatamente uma deusa pagã, mas uma personagem folclórica dos eslavos orientais, já da época do cristianismo ortodoxo, associada à beleza feminina, juventude, floradas e casamento. Liuli e outras formas aparecem justamente nas canções primaveris de amor, sobretudo em refrões, num fenômeno parecido com o “aê, aô”, “olelê, olalá” ou “arerê, bará berê” do Brasil, sendo que foneticamente poderia se relacionar com as palavras russas liubov (amor) e liubit (amar).
De fato, o viburno aparece no paganismo eslavo como representando a beleza de jovens donzelas, e como kalyna em ucraniano (também se escreve “калина”), símbolo nacional da Ucrânia, já apareceu em outras canções aqui do blog. “Viburno”, na verdade, é o nome do gênero de arbustos a que pertence a kalina, espécie cujo nome científico é Viburnum opulus e cujo fruto não tem um nome popular famoso no Brasil. Sendo um gênero originário da Europa, a Wikipédia lista como traduções de kalina: bola-de-neve, noveleiro, novelo, novelo-da-china, novelo-cromático, espirema e, o mais comum, rosa-de-gueldres. Mas no meu Dicionário Aurélio de 2004, nenhuma dessas palavras aparece com tal significado. Mais importante é saber que o autor, na primeira estrofe, joga com a omissão quanto a quem o estaria “deitando”; na segunda, com a associação da araucária (na verdade, “pinheiro”, que em russo é feminino) à figura da mulher; e, na terceira, com a revelação de que se trata mesmo de uma jovem, ligada na letra inteira à kalina e à malina. Por isso mesmo, escrevi “viburninha”, e não “viburninho”, e usei “araucária”, que é o que temos de mais próximo ao pinheiro (“pinheira” é sinônimo de “fruta-do-conde”).
Há quem pense ainda que o andamento variado da canção tem a ver com um ato sexual, ou apenas com uma cerimônia nupcial, mas ocorreu que a expressão “Kalinka”, ou às vezes “Kalinka-Malinka”, ganhou o mundo representando coisas relacionadas à Rússia (como restaurantes, lojas de lembranças etc.), e a música está presente em jogos de videogame, partidas de futebol, séries televisivas etc. Como eu disse, traduzi a letra e eu mesmo inseri as legendas no vídeo:
Sugiro que veja também esta versão ao vivo com o mitológico cantor checo Karel Gott, o solista Vadim Ananiev e todo o resto do Conjunto Aleksandrov! Convidado a cantar na Rússia, Gott celebra com os colegas os 75 anos do coral em 2003 no Kremlin, ocasião sobre a qual só achei esta notícia em francês no site da Rádio Praga.
Vadím Petróvich Anániev (n. 1959) é um dos principais solistas do Conjunto Aleksandrov, conhecido por executar a ária que se segue ao refrão de Kalinka nas atuais apresentações públicas. Karel Gott (1939-2019), que nasceu durante a ocupação nazista, é considerado o maior cantor masculino de língua checa, mas com grande sucesso também nos países de língua alemã, na qual ele também canta. Também foi pintor amador e eletricista de formação, mas ficou célebre por meio da música, começando a carreira de cantor profissional em 1960. O deslanche de sua trajetória foi na década de 70, tendo gravado muitos álbuns e inclusive sendo lançado na URSS em 1977, em cujos futuros países ele também seria admirado. Gott encerrou a carreira em 1990, mas retornou em 1993 e continuou até morrer de leucemia.
Eu mesmo traduzi a fala inicial de Gott direto do russo e inseri as legendas dela e da letra da canção:
Калинка, калинка, калинка моя!
Ах, под сосною, под зелёною,
Калинка, калинка, калинка моя!
Ах, сосёнушка ты зелёная,
Калинка, калинка, калинка моя!
Ах, красавица, душа-девица,
Калинка, калинка, калинка моя!
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Ah, sob a araucária, verde araucária,
Viburninha, viburninha minha!
Ah, tu, araucarinha verde,
Viburninha, viburninha minha!
Ah, lindinha, querida donzela,
Viburninha, viburninha minha!
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