Este trecho de vídeo raro do líder soviético Nikita Khruschov elogiando seu antecessor Iosif Stalin, que ele terminou detratando no famoso 20.º Congresso do Partido Comunista da URSS, me pareceu no ano passado uma oportunidade pra comentar algo sobre a formação de adjetivos na língua russa por meio de sufixos.
O vídeo sem legendas está no canal YouTube do usuário Anatoli Ushakov, e infelizmente não consegui identificar a data exata, nem havia menção a ela no vídeo. Tempos depois encontrei o mesmo trecho num breve registro documental a respeito dos 70 anos de vida de Stalin (1949), com trechos esparsos de várias homenagens em russo à época, mas talvez ele possa também estar falando em 1936 ou 1937, não só pela qualidade da imagem, mas também porque ele fala da Constituição Soviética de 1936, chamada “Stalinskaia” (Сталинская), ou “de Stalin”, a qual consolidou o poder do georgiano na URSS. Além disso, há um trecho de discurso (áudio) de 1937, em que ele faz vastos elogios a Stalin e é febrilmente ovacionado. Não tenho certeza se se trata da mesma ocasião.
Na época não consegui transcrever o texto de ouvido porque o áudio é muito ruim, mas por sorte alguém postou em comentário o texto do que Khruschov falou, que consistia no seguinte, em alfabeto cirílico e em alfabeto latino no meu sistema de transliteração (a tradução se encontra apenas no vídeo):
“Главное, что нас привело к нашей сталинской конституции, – это наша большевистская ленинская-сталинская партия, это руководство нашего великого товарища Сталина!”
“Glavnoie, chto nas privelo k nashei stalinskoi konstitutsii, – eto nasha bolshevistskaia leninskaia-stalinskaia partia, eto rukovodstvo nashego velikogo tovarischa Stalina!”
Temos aqui um belo exemplo da plasticidade da morfologia russa. Ele usa o adjetivo “stalinski” (сталинский) (aqui na forma feminina “stalinskaia” (сталинская), porque é “a” constituição), que é a adição ao apelido Stalin do sufixo -ski (-ский), prolífico formador de adjetivos. Pode ser traduzido de várias formas, dependendo do contexto: “staliniano” ou apenas “de Stalin”. Acho que “stalinista” fica muito forçado, porque em geral é referência negativa feita por opositores.
Ele faz a mesma coisa com “Lenin” (Ленин) – “leninski” (ленинский), que pode ser traduzido como “leniniano”, “leninista” (neste caso não é forçado, porque naquela época tal forma já era corrente) ou “de Lenin”, como no caso de uma região de Moscou chamada “Leninskie gory” (Ленинские горы), “Colinas de Lenin” (ou mesmo apenas “Colinas Lenin”). Mas na fala de Khruschov há notável junção dos adjetivos em “leninskaia-stalinskaia partia” (ленинская-сталинская партия) como se fossem uma coisa só. Era comum essa referência a Lenin e Stalin como uma só entidade, como se usava em “partia Lenina-Stalina” (партия Ленина-Сталина), literalmente “partido de Lenin-Stalin”. Mas no geral traduzo separado: “partido de Lenin e Stalin”, como no vídeo, com “leninskaia-stalinskaia partia” (ленинская-сталинская партия).
É interessante lembrar que os próprios apelidos de Lenin e Stalin provêm de um sufixo que indica posse e forma adjetivos de pertencimento, também muito empregados como sobrenomes, tais como os nossos sobrenomes antecedidos de “do(s)”, “da(s)” ou “de”. Na língua russa literária são usados os sufixos -ов (-ov), -ев (-ev), -ин (-in) e -ын (-yn) como uma espécie de possessivo junto a qualquer substantivo, tal como o ’s inglês ou o caso genitivo do próprio russo (mas o adjetivo de posse vem antes do substantivo, e o atributo no genitivo, depois). -Ов e -ев se usam com nomes masculinos, -ин e -ын com nomes femininos ou com masculinos de final feminino (-a, -ia); -ев se usa após as chamadas “terminações brandas”, e -ын é mais raro, geralmente empregado apenas após Ц (TS).
O uso desses sufixos é mais comum nas línguas eslavas meridionais, como o sérvio: Titov govor (o discurso de Tito), Lukin album (o álbum do Luka). Em tcheco também se usa para formar sobrenomes de mulheres casadas a partir do sobrenome do marido, em procedimento semelhante ao costume argentino da mulher receber o sobrenome do marido precedido de “de”: Jan Blahuš > Jana Blahušová.
Em russo há mais em sobrenomes ou topônimos consagrados: Иванов (Ivanov, “Ivan”, “de Ivan” ou “dos Ivans”, a partir de Иван/Ivan), Гусев (Gusev, “Ganso” ou “do Ganso”, a partir de гусь/gus), Медведев (Medvedev, “Urso” ou “do Urso”, a partir de медведь/medved), Ленин (Lenin, a partir do rio siberiano Лена/Lena, onde o líder foi desterrado por anos), Сталин (Stalin, “de aço”, a partir de сталь/stal), Царицын (Tsaritsyn, antigo nome de Stalingrado/Volgogrado, relativo ao rio Царица/Tsaritsa, afluente do Volga e cujo nome teria origem túrquica, embora também signifique “tsarina”).
É mais raro com substantivos comuns: папин дом (papin dom, “a casa do pai”, a partir de папа/papa), дядин труд (diadin trud, “o esforço do tio”, a partir de дядя/diadia), дедов портрет (dedov portret, “o retrato do avô”, a partir de дед/ded), отцов характер (ottsov kharakter, “o caráter do pai”, a partir de отец/otets). É mais corrente em expressões consagradas: Христов день (Khristov den, “o dia de Cristo”, isto é, a Páscoa, a partir de Христос/Khristos, sem o -os), сукин сын (sukin syn, “filho da mãe”, a partir de сука/suka – cadela, vagabunda, vadia).
Para se referir a mulheres (com o sobrenome vindo do pai ou do marido) ou ao gênero feminino, basta acrescentar o -a: Иванова (Ivanova), Гусева (Guseva), Медведева (Medvedeva), папина жизнь (papina zhizn, “a vida do pai”), дедова жена (dedova zhena, “a esposa do avô”), Христова невеста (Khristova nevesta, “noiva de Cristo”, isto é, “freira” ou “solteirona”). Cumpre destacar que o gênero dos sufixos se refere ao substantivo originário, e não ao portador da palavra: “Guseva” é uma mulher, embora a palavra “gus” seja masculina e, por isso, receba -ev; “Stalin” é um homem, embora a palavra “stal” seja feminina e, assim, demande -in. Não vou abordar a declinação desses substantivos, que segue um paradigma especial, pois é um tema complexo que não cabe no escopo deste blog.