Como historiador, tenho que revirar os destroços do passado e lembrar relíquias esquecidas. Por um acaso, achei no YouTube uma canção que se afirma um projeto de hino da República Socialista Federativa Soviética da Rússia (a famosa RSFSR), maior unidade integrante da antiga URSS, que em 1946 concorreu com outros poemas numa disputa, finalmente, encerrada sem resultados. A letra é do poeta russo Stepan Schipachov, e a melodia, do célebre Sergei Prokofiev.
Segundo outra fonte, a canção foi composta em 1945 e o concurso para escolher um hino para a Rússia Soviética (que a partir de 1922 não deve ser confundida com o conjunto da URSS) se passou em 1946, logo após o fim da 2.ª Guerra Mundial. Contudo, o concurso teria dado “em nada” e, ao que parece, como ocorreu até 1990, o hino de toda a URSS também era usado como hino da RSFS da Rússia.
Na verdade, segundo penso, foi a partir daí que se criaram os “hinos nacionais” das repúblicas soviéticas, nas línguas oficiais locais, mas que jamais caíram no gosto popular nem se tornaram parte dos embriões das futuras nações independentes que tinham autorização para se separar, conforme prometia a própria Constituição da URSS. Como peças musicais, esses 14 hinos eram lindos, e até hoje constituem um monumento cult na rede, mas os poemas têm todos o mesmo molde, tal com o próprio hino soviético: uma primeira estrofe que enche a bola da nacionalidade local reinante, lembrando que os bondosos russos sempre foram seus parceiros; uma segunda estrofe que louvava Lenin e (até 1956) Stalin, mostrando como eles iluminaram o caminho desses povos; uma terceira estrofe que insiste na invencibilidade das ideias do comunismo e no futuro triunfo de sua bandeira; e um refrão, repetido após cada estrofe, que amarra cada povo em sua pátria União Soviética, dirigida pelo Partido Comunista. Como a maioria dos nomes de logradouros, esses hinos foram todos trocados para retirar as menções a Stalin a partir de 1956.
E o tal concurso “gorou”, “miou”, enfim. Prokofiev é famoso, então falo um pouco do letrista. Stepan Petrovich Schipachov nasceu em 1899 (segundo o novo estilo do calendário) e morreu em 1980, sempre na Rússia. Serviu no Exército Vermelho, estudou e lecionou literatura em diversos grandes institutos. Escrevendo e publicando poesia desde 1919, entrou no PC soviético no mesmo ano, foi um dos dirigentes da União dos Escritores e atuou a favor do perseguido Ievtushenko, mas contra Solzhenitsyn. Prêmios: Prêmio Stalin (1949 e 1951), Ordens de Lenin (1967), da Bandeira Vermelha do Trabalho (1959), da Amizade dos Povos (1979) e da Estrela Vermelha (1942 e 1945).
A primeira execução pública da canção, com base nas partituras deixadas pelo autor, foi esta que apresento, regida em 2012 por Iuri Simonov, com arranjos de Kirill Volkov para o Coral Estatal A. V. Sveshnikov e a Orquestra Sinfônica Acadêmica da Filarmônica de Moscou. Quase não se fala na rede a respeito do hino, e o pouco que achei está nesta página, de onde tirei também o áudio e a letra. O vídeo sem legendas, pelo qual fiquei sabendo da existência da peça, deve tê-la usado como fonte. Seguem abaixo as legendas, a letra em russo e a tradução:
В грозах окрепла Россия родная Всё, что людей угнетало веками, В битвах, в труде ты овеяна славой Славься, Россия – отчизна свободы! ____________________
Tudo o que oprimiu as gentes em séculos Nas lutas e labor você vestiu a glória Glória à Rússia, pátria da liberdade! |