Link curto para esta postagem: fishuk.cc/pasmem
Nota: Este texto foi escrito em fevereiro de 2007 para o extinto Jornal do IFCH, o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, como uma breve introdução ao esperanto e ao movimento esperantista para leigos. O primeiro rascunho foi revisado por esperantistas do Orkut para compor a primeira versão, que não chegou, contudo, a ser publicada, por causa de desencontros no envio do original e da extinção do jornal em março de 2007, em meio às turbulências estudantis em torno da ocupação da reitoria. Publiquei uma segunda versão no meu antigo blog “Pensadores Libertos” em 25 de dezembro de 2009, que já continha, em relação à primeira, algumas atualizações necessárias após quase três anos e a revisão da ortografia, conforme o Acordo Ortográfico em vigor desde o início de 2009. A terceira versão aqui apresentada é outra atualização que eu havia postado no blog “Materialismo – Filosofia” em 7 de março de 2012, mas agora (2016) decidi manter o texto intacto, mesmo após a revolução das redes sociais e mudanças geopolíticas nos últimos anos. Quem foi das turmas 2006-2009 de História do IFCH saberá o motivo do título...
____________________
Uma curiosidade: o idioma, no começo, não se chamava “esperanto”, mas “Lingvo Internacia” (“língua internacional”), ou, como muitos o chamavam, “a língua internacional proposta por Esperanto”: “Doutor Esperanto” era o pseudônimo que Zamenhof usou em sua brochura. Com o tempo, o nome “esperanto” (que nesse idioma significa “aquele que tem esperança”), sozinho ou com outras palavras, passou a se mostrar adequado para diferenciar o idioma de outros projetos, até que, de pseudônimo de seu iniciador, passou a designar seu próprio projeto.
Em 1905 organizou-se, em Boulogne-sur-Mer, litoral norte da França, o primeiro Congresso Universal de esperanto, com 688 participantes. Os congressos aconteceriam todos os anos, com exceção dos períodos das Guerras Mundiais, sendo que o de 1981, o primeiro a acontecer no hemisfério Sul, ocorreu em Brasília e o de 2002, em Fortaleza. Zamenhof morreu em 1917 e, após o baque da Primeira Guerra Mundial, o esperanto voltou a se difundir, mas logo sofreu as consequências ainda piores da Segunda Guerra Mundial e dos anos imediatamente posteriores: esperantistas foram perseguidos tanto por ditaduras de direita como pelos regimes do chamado “bloco socialista”. Após esse período traumático, a UNESCO publicou duas resoluções favoráveis ao esperanto, respectivamente em 1954 e 1985, ressaltando sua importância para a educação, a ciência e a cultura e recomendando aos Estados-membros sua difusão e ensino.
Hoje, o esperanto é falado nos cinco continentes, em mais de cem países, inclusive no Brasil, onde se considera ter o maior número de falantes no mundo. Foram publicados muitos livros em esperanto, existem vários periódicos que divulgam informações nesse idioma por meios impressos e pela internet, em cujas redes sociais como o Facebook e o Orkut sua presença é marcante, e há até mesmo bandas e cantores que gravam músicas em esperanto, como o grupo sueco de rock-pop Persone. A Organização Mundial da Juventude Esperantista (TEJO) publica anualmente o Pasporta Servo (algo como “Serviço de Passaporte”), uma lista de interessados em hospedar gratuitamente, em suas casas, esperantistas de outros países, proporcionando de modo amistoso o contato com diversas culturas.
Os morfemas do esperanto não foram criados arbitrariamente por Zamenhof, mas vêm de palavras e elementos gramaticais retirados principalmente do latim e também dos diversos idiomas nacionais, como as palavras helpi (“ajudar”, do inglês to help), fermi (“fechar”, do francês fermer), tago (“dia”, do alemão Tag) e okulo (“olho”, do latim oculus) e os prefixos re- (dos idiomas neolatinos, como em “rever”, “relembrar” etc.) e bo- (do francês, indicando parentesco por casamento, como em beau-père, “sogro” etc.). Há também o artigo la e a preposição de, facilmente reconhecíveis por nós.
O atual cenário globalizante nos faz assistir à hegemonia da língua inglesa nas relações internacionais e nos contatos interpessoais. Isso não só favorece seus falantes nativos em situações como conversas casuais e encontros internacionais em que muitas vezes eles nem são os que melhor conhecem o assunto tratado, mas também irriga os países que usam o inglês como língua-materna com grandes somas de dinheiro vindas das escolas de inglês e da indústria cultural, que é difundida pelo mundo todo. Isso sem contar as centenas de idiomas minoritários que desaparecem ou veem seu número de falantes diminuir a cada ano em favorecimento de idiomas maiores, ou “oficiais”.
O esperanto se propõe a ser um idioma-ponte nos contatos internacionais para que as pessoas conheçam diversas culturas sem precisar da intermediação de tradutores ou outras pessoas que, muitas vezes, não proporcionam uma comunicação eficaz entre os interlocutores. Vistas a simplicidade de sua gramática e a internacionalidade de seu vocabulário, o estudante consegue compreender um texto no idioma ou compor frases básicas após pouco tempo de aprendizado, sendo que são necessários, normalmente, apenas seis meses para a aquisição de um nível satisfatório. E essa facilidade não é privilégio apenas de europeus e habitantes da América: muitos falantes de idiomas não europeus sabem esperanto e não se sentem nem um pouco discriminados.
Nenhum país usa oficialmente o esperanto, e ele não é o idioma de nenhum povo. Contudo, muitas organizações o empregam como idioma de trabalho (o Pen International, uma associação de escritores, reconheceu-o como língua literária), e muitos casais binacionais (cônjuges de países diferentes) que o usam entre si ensinam-no como primeiro idioma a seus filhos, que em vista disso passam a ter o esperanto como sua língua materna. Por não ser “propriedade particular” de nenhum país, movimento político ou crença religiosa, o esperanto é considerado “neutro” ao não privilegiar nenhuma classe de pessoas em especial, proporcionando aos falantes a possibilidade de se comunicarem em pé de igualdade e tomarem contato direto com outras culturas. Por isso, o esperanto poderia ser a solução para instituições que utilizam grande número de idiomas de trabalho, como a ONU e a União Europeia, e por isso gastam quantias astronômicas com tradução e interpretação de discursos e documentos, dinheiro que poderia ser usado em projetos sociais e outros fins mais nobres.
O esperanto não é um idioma morto, como muitos pensam. As 16 regras básicas de sua gramática não mudaram desde sua criação, mas o vocabulário não só sofreu alguns reparos ainda na época de Zamenhof como nunca deixou de ser ampliado, inclusive com termos técnicos de várias áreas do conhecimento. Como em qualquer idioma, houve ainda palavras que caíram em desuso e outras que apareceram para expressar ideias novas. Como prova disso, há a versão em esperanto da Wikipédia, com mais de 161 mil artigos (março de 2012), ao lado de versões em vários idiomas nacionais e minoritários.
Não é a adoção arbitrária por parte dos Estados nacionais ou das grandes instituições que aumentará o papel internacional do esperanto, que já é significativo devido ao grande número de falantes no mundo (número difícil de calcular, mas aproximado em 2 milhões que ao menos possuem algum conhecimento de suas bases) e à literatura traduzida e original produzida em torno dele. É por meio do número cada vez maior de falantes, do uso diário em conversas, periódicos, sites e congressos que o esperanto se torna uma proposta viável e uma alternativa à atual massificação que distorce a visão que nós temos sobre as demais culturas e impõe o domínio de poucos povos sobre a maioria do mundo.