Esta é uma das mais famosas canções que simbolizam a Revolução Francesa, Ah ! ça ira, cujo título se tornou um lema dos revoltosos. Eu soube de sua existência ao ler o livro A formação da classe operária inglesa, do historiador britânico Edward Palmer Thompson, que aborda o período de 1780 a 1830 e conta que os trabalhadores em luta a cantavam frequentemente junto com A Marselhesa. É uma prova de que a cultura francesa, bem como suas tradições rebeldes, eram muito influentes do outro lado do Canal da Mancha.
A expressão “Ça ira” remonta ao tempo (1776-1785) em que Benjamin Franklin estava na França como representante (embaixador) do Congresso Continental, órgão legislativo que governava as 13 colônias (futuros EUA) durante a guerra de independência contra o Reino Unido. Muito popular entre os franceses, sempre que questionado sobre o andamento da guerra, Franklin invariavelmente respondia em seu francês ruim: “Ça ira, ça ira”, literalmente “Isso irá, isso irá”, ou “Isso dará certo”, “Terá um bom desfecho”.
Aparentemente “Ça ira” pegou, e um antigo soldado que cantava nas ruas, de sobrenome Ladré, fez uma canção com essas palavras, baseada na melodia do Carillon national, uma popular ária de contradança atribuída ao violinista Bécourt e que ironicamente a rainha Maria Antonieta gostava de tocar em seu cravo. A canção foi ouvida pela primeira vez em maio de 1790, mas se popularizou na Festa da Federação do 14 de julho seguinte, com a primeira letra apresentada no vídeo. Com a difusão da canção, ela tomou várias letras, sendo uma delas a versão vingativa que “sans-culottes” compuseram nos anos posteriores da revolução, apresentada depois no vídeo.
Esta segunda versão cantada por Édith Piaf omite no refrão os dois últimos versos originais: “Et quand on les aura tous pendus,/On leur fichera la pelle au cul !”. Uma tradução possível seria “E depois de enforcá-los,/Vamos empalá-los todos!”, especialmente porque a expressão “ficher la pelle au cul” admite várias interpretações relacionadas a uma situação ruim, além da mera empalação.
Eu fiz uma tradução direta das duas versões, mas também cotejei a primeira com as traduções da Wikipédia em inglês e italiano, e a segunda, com uma tradução italiana do site Canções Contra a Guerra. Esta versão está completa, mas a primeira é mais comprida, e traduzi apenas as estrofes gravadas em fita cassete em 1988. As legendas estão simplificadas em relação à letra das traduções escritas, para facilitar a leitura rápida sem prejuízo do sentido, mas fiz aqui também notas explicativas. O áudio da primeira versão eu tirei do canal YouTube “ccffpa”, e o da segunda versão, do canal “valestap”. Depois do vídeo legendado estão as letras das duas versões em francês e em português:
Versão de 1790: Ah ! ça ira, ça ira, ça ira, Ah ! ça ira, ça ira, ça ira ! Ah ! ça ira, ça ira, ça ira ! Ah ! ça ira, ça ira, ça ira ! ___________________ Ah, vamos vencer, vamos vencer, É o que o povo não para de dizer, Ah, vamos vencer, vamos vencer, Vai dar certo apesar dos baderneiros. Nossos inimigos confusos param E vamos cantar Aleluia! Ah, vamos vencer, vamos vencer, Falando do clero, Boileau (1) outrora Previu tudo isso como um profeta. Cantando minha cançoneta Vamos dizer com gosto: Ah, vamos vencer, vamos vencer! Vai dar certo apesar dos baderneiros. Ah, vamos vencer, vamos vencer! Ah, vamos vencer, vamos vencer! Ah, vamos vencer, vamos vencer! |
Acréscimos “sans-culottes” posteriores: Refrain : 1. V’la trois cents ans qu'ils nous promettent (Refrain) 2. V’la trois cents ans qu’ils font la guerre (Refrain) 3. Le châtiment pour vous s’apprête (Refrain) ___________________ Refrão: Ah, vamos vencer, vamos vencer Vamos enforcar os aristocratas (5) Ah, vamos vencer, vamos vencer Vamos enforcar nos lampiões (E depois de enforcá-los, Vamos empalá-los todos!) 1. Há trezentos anos eles nos prometem (Refrão) 2. Há trezentos anos eles fazem a guerra (Refrão) 3. O castigo de vocês está próximo (Refrão) |
Notas do tradutor
(Clique no número para voltar ao texto)
(1) Nicolas Boileau (1636-1711), escritor, crítico e poeta cujas sátiras sobre os costumes da época atraíram a ira até mesmo do clero.
(2) “Guinguette”, antigo tipo de cabaré originado nos subúrbios parisienses que também funcionava como restaurante e, por vezes, lugar de dança. Nas legendas, usei “cabaré” por razões de espaço.
(3) Gilbert du Motier, Marquês de La Fayette, ou apenas Lafayette (1757-1834), aristocrata, oficial e político liberal francês que lutou ao lado dos americanos na guerra de independência e teve um papel proeminente na Revolução Francesa de 1789, bem como na de 1830.
(4) Em todas as fontes escritas, o verso em francês que conta é “Tout le monde s’apaisera” (Todo mundo se acalmar), mas o intérprete de 1988 canta “Tout trouble s’apaisera” (Toda desordem se acalmar).
(5) A expressão em francês “Les aristocrates à la lanterne” (literalmente “Os aristocratas ao lampião”) deriva dos primeiros atos impulsivos da Revolução Francesa, em que o povo enforcava clérigos, nobres, cobradores de impostos e outros funcionários públicos em lampiões, após mandá-los “À la lanterne !” (Ao lampião!). “La lanterne” ou “À la lanterne” terminou se tornando um jargão muito usado na cultura, em títulos de revistas etc.
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