domingo, 22 de novembro de 2015

Ah ! ça ira (canção revolucionária)


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Esta é uma das mais famosas canções que simbolizam a Revolução Francesa, Ah ! ça ira, cujo título se tornou um lema dos revoltosos. Eu soube de sua existência ao ler o livro A formação da classe operária inglesa, do historiador britânico Edward Palmer Thompson, que aborda o período de 1780 a 1830 e conta que os trabalhadores em luta a cantavam frequentemente junto com A Marselhesa. É uma prova de que a cultura francesa, bem como suas tradições rebeldes, eram muito influentes do outro lado do Canal da Mancha.

A expressão “Ça ira” remonta ao tempo (1776-1785) em que Benjamin Franklin estava na França como representante (embaixador) do Congresso Continental, órgão legislativo que governava as 13 colônias (futuros EUA) durante a guerra de independência contra o Reino Unido. Muito popular entre os franceses, sempre que questionado sobre o andamento da guerra, Franklin invariavelmente respondia em seu francês ruim: “Ça ira, ça ira”, literalmente “Isso irá, isso irá”, ou “Isso dará certo”, “Terá um bom desfecho”.

Aparentemente “Ça ira” pegou, e um antigo soldado que cantava nas ruas, de sobrenome Ladré, fez uma canção com essas palavras, baseada na melodia do Carillon national, uma popular ária de contradança atribuída ao violinista Bécourt e que ironicamente a rainha Maria Antonieta gostava de tocar em seu cravo. A canção foi ouvida pela primeira vez em maio de 1790, mas se popularizou na Festa da Federação do 14 de julho seguinte, com a primeira letra apresentada no vídeo. Com a difusão da canção, ela tomou várias letras, sendo uma delas a versão vingativa que “sans-culottes” compuseram nos anos posteriores da revolução, apresentada depois no vídeo.

Esta segunda versão cantada por Édith Piaf omite no refrão os dois últimos versos originais: “Et quand on les aura tous pendus,/On leur fichera la pelle au cul !”. Uma tradução possível seria “E depois de enforcá-los,/Vamos empalá-los todos!”, especialmente porque a expressão “ficher la pelle au cul” admite várias interpretações relacionadas a uma situação ruim, além da mera empalação.

Eu fiz uma tradução direta das duas versões, mas também cotejei a primeira com as traduções da Wikipédia em inglês e italiano, e a segunda, com uma tradução italiana do site Canções Contra a Guerra. Esta versão está completa, mas a primeira é mais comprida, e traduzi apenas as estrofes gravadas em fita cassete em 1988. As legendas estão simplificadas em relação à letra das traduções escritas, para facilitar a leitura rápida sem prejuízo do sentido, mas fiz aqui também notas explicativas. O áudio da primeira versão eu tirei do canal YouTube “ccffpa”, e o da segunda versão, do canal “valestap”. Depois do vídeo legendado estão as letras das duas versões em francês e em português:



Versão de 1790:

Ah ! ça ira, ça ira, ça ira,
Le peuple en ce jour sans cesse répète,
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira,
Malgré les mutins tout réussira.
Nos ennemis confus en restent là
Et nous allons chanter alléluia !
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira,
Quand Boileau jadis du clergé parla
Comme un prophète il a prédit cela.
En chantant ma chansonnette
Avec plaisir on dira :
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Malgré les mutins tout réussira.

Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Pierette et Margot chantent à la guinguette
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Réjouissons-nous, le bon temps viendra !
Le peuple français jadis à quia,
L’aristocrate dit : Mea culpa!
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Le clergé regrette le bien qu’il a,
Par justice, la nation l’aura.
Par le prudent Lafayette,
Tout le monde s’apaisera.
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Réjouissons-nous, le bon temps viendra !

Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Par les flambeaux de l’auguste assemblée,
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Le peuple armé toujours se gardera.
Le vrai d’avec le faux l’on connaîtra,
Le citoyen pour le bien soutiendra.
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Quand l’aristocrate protestera,
Le bon citoyen au nez lui rira,
Sans avoir l’âme troublée,
Toujours le plus fort sera.
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Le peuple armé toujours se gardera.

Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Par les flambeaux de l’auguste assemblée,
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira !
Le peuple armé toujours se gardera.

___________________


Ah, vamos vencer, vamos vencer,
É o que o povo não para de dizer,
Ah, vamos vencer, vamos vencer,
Vai dar certo apesar dos baderneiros.
Nossos inimigos confusos param
E vamos cantar Aleluia!
Ah, vamos vencer, vamos vencer,
Falando do clero, Boileau (1) outrora
Previu tudo isso como um profeta.
Cantando minha cançoneta
Vamos dizer com gosto:
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
Vai dar certo apesar dos baderneiros.

Ah, vamos vencer, vamos vencer!
Pierette e Margot cantam na guinguette (2)
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
Alegremo-nos, bons tempos virão!
O povo francês outrora silenciava,
E agora o aristocrata se culpa!
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
E o clero lamenta sua riqueza,
Que será da nação por justiça.
O moderado Lafayette (3) fará
Todo mundo (4) se acalmar.
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
Alegremo-nos, bons tempos virão!

Ah, vamos vencer, vamos vencer!
Com as tochas da augusta assembleia
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
O povo sempre resistirá armado.
O joio será separado do trigo
E o cidadão apoiará o bem.
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
Quando o aristocrata protestar,
O bom cidadão rirá da sua cara
Sem se incomodar com isso
E será sempre o mais forte.
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
O povo sempre resistirá armado.

Ah, vamos vencer, vamos vencer!
Com as tochas da augusta assembleia
Ah, vamos vencer, vamos vencer!
O povo sempre resistirá armado.




Acréscimos “sans-culottes” posteriores:

Refrain :
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira
Les aristocrates à la lanterne
Ah ! ça ira, ça ira, ça ira
Les aristocrates on les pendra
(Et quand on les aura tous pendus,
On leur fichera la pelle au cul !)

1. V’la trois cents ans qu'ils nous promettent
Qu’on va nous accorder du pain
V’la trois cents ans qu’ils donnent des fêtes
Et qu’ils entretiennent des catins
V’la trois cents ans qu’on nous écrase
Assez de mensonges et de phrases
On ne veut plus mourir de faim

(Refrain)

2. V’la trois cents ans qu’ils font la guerre
Au son des fifres et des tambours
En nous laissant crever d’misère
Ça n’pouvait pas durer toujours
V’la trois cents ans qu’ils prennent nos hommes
Qu’ils nous traitent comme des bêtes de somme
Ça n’pouvait pas durer toujours

(Refrain)

3. Le châtiment pour vous s’apprête
Car le peuple reprend ses droits
Vous vous êtes bien payé nos têtes
C’en est fini Messieurs les rois
Il n’faut plus compter sur les nôtres
On va s’offrir maint’nant les vôtres
Car c’est nous qui faisons la loi

(Refrain)

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Refrão:
Ah, vamos vencer, vamos vencer
Vamos enforcar os aristocratas (5)
Ah, vamos vencer, vamos vencer
Vamos enforcar nos lampiões
(E depois de enforcá-los,
Vamos empalá-los todos!)

1. Há trezentos anos eles nos prometem
Que vão nos conceder pão
Há trezentos anos eles dão festas
E entretêm prostitutas
Há trezentos anos somos esmagados
Chega de mentiras e falatórios
Estamos fartos de morrer de fome

(Refrão)

2. Há trezentos anos eles fazem a guerra
Ao som dos pífaros e tambores
Deixando-nos arrebentar de miséria
Isso não podia ser para sempre
Há trezentos anos eles pegam nossos homens
E nos tratam como animais de carga
Isso não podia ser para sempre

(Refrão)

3. O castigo de vocês está próximo
Pois o povo retoma seus direitos
Vocês já nos ferraram muito
Isso já era, Senhores Reis
Não vão mais ferrar com a gente
Agora vocês é que serão ferrados
Pois somos nós que fazemos a lei

(Refrão)

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Notas do tradutor
(Clique no número para voltar ao texto)

(1) Nicolas Boileau (1636-1711), escritor, crítico e poeta cujas sátiras sobre os costumes da época atraíram a ira até mesmo do clero.

(2) “Guinguette”, antigo tipo de cabaré originado nos subúrbios parisienses que também funcionava como restaurante e, por vezes, lugar de dança. Nas legendas, usei “cabaré” por razões de espaço.

(3) Gilbert du Motier, Marquês de La Fayette, ou apenas Lafayette (1757-1834), aristocrata, oficial e político liberal francês que lutou ao lado dos americanos na guerra de independência e teve um papel proeminente na Revolução Francesa de 1789, bem como na de 1830.

(4) Em todas as fontes escritas, o verso em francês que conta é “Tout le monde s’apaisera” (Todo mundo se acalmar), mas o intérprete de 1988 canta “Tout trouble s’apaisera” (Toda desordem se acalmar).

(5) A expressão em francês “Les aristocrates à la lanterne” (literalmente “Os aristocratas ao lampião”) deriva dos primeiros atos impulsivos da Revolução Francesa, em que o povo enforcava clérigos, nobres, cobradores de impostos e outros funcionários públicos em lampiões, após mandá-los “À la lanterne !” (Ao lampião!). “La lanterne” ou “À la lanterne” terminou se tornando um jargão muito usado na cultura, em títulos de revistas etc.




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