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Igor Strelkov fala à imprensa na cidade ucraniana de Donetsk a 10 de julho de 2014.
Introdução (Erick Fishuk)
Este é o texto traduzido para o português (não sei se chegou a ser traduzido para outras línguas) da gravação em vídeo, datada de 18 de maio de 2014, em que o coronel Igor Ivanovich Strelkov, comandante das milícias armadas da autoproclamada República Popular de Donetsk, convoca a população local para repelir as unidades armadas ucranianas enviadas para deter a rebelião dos separatistas pró-Rússia. Foi traduzido diretamente do original russo, sem o cotejamento com qualquer outra versão. A transcrição foi comparada com o vídeo para se levantarem as poucas diferenças, expostas nas notas ao final.
Após a queda do governo pró-Rússia de Viktor Ianukovych na Ucrânia, na esteira dos protestos centrados na Praça da Independência (“Maidan”) em Kyiv, milícias armadas formadas por habitantes das regiões em que o russo é língua predominante e mesmo por cidadãos russos iniciaram uma rebelião na província de Donetsk, no leste do país. Em 7 de abril, líderes separatistas proclamaram a chamada República Popular de Donetsk, desencadeando a intervenção das forças armadas ucranianas e o conflito na região do Donbass que se prolonga até hoje. Embora o novo governo tenha montado toda uma estrutura institucional paralela que funciona de forma praticamente normal e goza de amplo apoio popular, entidades internacionais de direitos humanos têm acusado as milícias de cometer violência contra homossexuais, judeus, ciganos e outras minorias culturais.
Igor Ivanovich Strelkov, que se presume ser na verdade Igor Vsevolodovich Girkin, foi o segundo Ministro da Defesa dessa república entre 16 de maio e 14 de agosto, assim como o segundo Comandante Militar de Donetsk de 6 de julho a 14 de agosto. Teria deixado seus postos de comando por razões de férias e para cumprir missões em outros lugares, mas alegam-se também desentendimentos com as lideranças políticas dos separatistas e mesmo com figuras que lhe dariam apoio a partir de Moscou. Fontes de informação russas ressaltam sua popularidade na Rússia como ex-coronel do serviço secreto russo e seu destaque pelas ideias monarquistas, ortodoxas e fortemente antiliberais. Do ponto de vista ocidental, contudo, é considerado um terrorista que teria supostamente atuado na Bósnia nos anos 1990 e na Chechênia nos anos 2000, de forma violenta a favor dos interesses da Rússia.
No apelo apresentado abaixo, Igor Strelkov se queixa rispidamente que os esforços de voluntários da Rússia e da Ucrânia em enfrentar as forças armadas ucranianas, atendendo ao próprio pedido da população local da província de Donetsk, estariam sendo pouco reconhecidos e que muitos poucos nativos haviam se apresentado para lutar nas milícias rebeldes. Escasseariam especialmente os homens jovens, abundando os mais velhos que haviam vivido os tempos soviéticos, ao que Strelkov visa responder pelo recrutamento também de mulheres, algo bastante destacado por analistas estrangeiros. Embora as tropas separatistas estivessem passando por momentos bastante difíceis, os jovens estariam se aproveitando da anarquia reinante para saquear e praticar vandalismo, enquanto os que obtinham armas por meio das milícias não as estariam usando nos combates principais, mas na defesa das próprias casas contra bandidos. Strelkov define rigidamente as condições para que os cidadãos de Donetsk pudessem receber armas e lutar contra as tropas de Kyiv, intimida os que desejam continuar na criminalidade e expressa confiança no reforço de seus efetivos e na vitória final.
O texto original do apelo pode ser lido nesta página. Por meio da audição, e com a ajuda de vários amigos russos do Facebook, decodifiquei algumas passagens que estão diferentes, ou em acréscimo, na fala e na transcrição. Quanto aos vários nomes de cidades ucranianas citados em sua variante russa, nesta postagem anterior justifico, ou tento problematizar, minha opção em colocar na tradução suas variantes em ucraniano. Abaixo você pode ver também o próprio vídeo legendado, no qual, claro, sempre são feitas as necessárias adaptações a esse tipo de mídia:
APELO
do Comandante da Milícia da República Popular de Donetsk
18 de maio de 2014
[Eu mesmo escrevi o apelo. Agora só vou ler em voz alta. É um tanto comprido.]
Cidadãos da República Popular de Donetsk!
Dirijo-me a vocês com um pedido. Peço que se levantem em defesa de sua Pátria, suas casas, suas famílias e seu povo.
Cumpre-me lhes pedir que façam algo impossível de se exigir conforme todas as medidas humanas. Pois levantar-se por sua Pátria e sua liberdade na Mãe-Rússia sempre foi uma tarefa honrosa, a cujo apelo avidamente atenderam desde o início dos tempos aqueles que se consideravam varões.
Entretanto, preciso lhes dizer a verdade. Direto na cara! São palavras duras, que talvez até ofendam a dignidade de vocês. Já faz mais de um mês que nós, um pequeno grupo de voluntários da Rússia e da Ucrânia, atendendo a um pedido de socorro saído da boca dos líderes manifestantes que vocês promoveram, chegamos aqui e de armas na mão estamos enfrentando o exército ucraniano inteiro e uma enorme gentalha de mercenários louca por dinheiro.
O mês passado inteiro ouvimos várias vezes o apelo desesperado: “Deem-nos armas! Deem armas para que possamos lutar por nossa liberdade, por nosso direito de ler e falar em russo, nossa língua materna, e pelo direito de honrar nossos antepassados, heróis da Grande Guerra Pátria, e não os lacaios dos bandidos nazistas!” Atendendo a esse apelo, conseguimos armas. Tomamos em depósitos, tiramos de militares e milícias ucranianos ou compramos no mercado negro a preços exorbitantes. E eis que agora temos armas. Elas não estão no fundo da retaguarda ‒ nem em Donetsk, Luhansk ou Makiivka, nem em Shakhtarsk ou Antratsyt. Estão na linha de frente da luta, na cidade sitiada de Sloviansk (1). Estão aqui, onde são mais necessárias! Aqui, com os voluntários que defendem todo o resto do Donbass ‒ incluindo Donetsk e Luhansk. E bem aqui, nos arredores de Sloviansk e Kramatorsk, de Krasny Lyman e Kostiantynivka, onde se encontram nossas guarnições, a junta de Kyiv concentrou as forças mais combativas e numerosas. A seu lado se dispuseram dois terços da tropa punitiva e o estado-maior do que chamam “operação antiterrorista”.
E eis que chega a hora em que cada cidadão de Donetsk, apto a usar armas e disposto a mirá-las contra os inimigos de seu povo, pode chegar e recebê-las direto em mãos. Receber e se juntar às fileiras dos voluntários para expulsar as tropas punitivas para fora de sua terra natal. Mas o que estamos vendo? Qualquer coisa, menos multidões de voluntários às portas de nossos estados-maiores. Sloviansk tem 120 mil habitantes. Kramatorsk, o dobro. Só na província de Donetsk vivem 4,5 milhões de pessoas. Claro que nem todos os homens têm idade para combater. Nem todos são saudáveis ou livres de ocupações importantes para a subsistência. Nem todos podem nos procurar por terem obrigações familiares ou de qualquer outra natureza. Mas confesso sinceramente que jamais esperava não se apresentarem em toda a província nem mil homens dispostos a arriscar a vida não na própria cidade, numa barricada do lado de casa, distante a meio dia de carro do “guarda nacional” mais próximo, mas na linha de frente, onde realmente se dispara todos os dias.
A verdade é essa. Para não soar mentiroso, vou dar exemplos. Anteontem (2) chegou um grupo de 12 “heróis” de Artemivsk, selecionados e recomendados por uma pessoa de altíssima estima. Ao saber que deveriam servir imediatamente em Sloviansk (e não em sua Artemivsk natal), e que o prazo não terminaria em poucos dias, nem quiseram receber as armas. Ontem a história se repetiu. Dos 35 “voluntários” vindos de Donetsk, ressoando os estrondos dos morteiros ao longe e ficando claro que por três dias eles não poderiam ir para casa com as armas recebidas, 25 voltaram alegremente para seus lares... Talvez queixar-se das “duras condições” (sem tê-las vivido sequer um minuto) é mostra de seu heroísmo, revelado no trajeto do ônibus de passageiros. E não são casos isolados, (3) pois ocorrem com frequência entre nós.
Ainda na Crimeia, tive que ouvir dos ativistas do movimento popular relatos de que “quando os mineiros se levantarem, matarão todos com as próprias mãos!”. Ora, talvez isso ocorresse no passado. Mas ainda não é o que se vê. Dezenas e centenas de pessoas se arregimentaram para lutar. E dezenas e centenas de milhares (4) assistem a tudo tranquilas pela TV, de latinha na mão. Pelo visto, esperam que os irmãos da Rússia ou mandem um exército capaz de fazer tudo por eles, ou enviem uma quantidade suficiente de voluntários descabeçados prontos a morrer pelo direito deles de viver mais dignamente do que viviam sob os 23 anos de governo dos nacionalistas de Kyiv. (5) Onde estão os 27 mil voluntários de que falam os jornalistas? Não estou vendo. Chegar em casa com ar orgulhoso declarando “Eu me alistei na milícia!” para as mulheres admiradas é tudo o que sabem fazer?
Casas destruídas perto do Aeroporto Internacional de Donetsk, em outubro de 2014.
Em nossa fileira de voluntários estão entrando cada vez mais homens “bem acima dos 40”, crescidos e educados ainda nos tempos da URSS. Mas há pouquíssimos jovens. Onde estão os jovens e saudáveis rapazes locais? (6) Talvez nas “brigadas” bandidas que, tendo percebido a anarquia, correram “expropriar os expropriadores” e alvoroçar por todos os cantos da província de Donetsk? Sim, recebemos diariamente notícias sobre suas repetidas “façanhas”. E muitos falsos “milicianos” exigem armas antes de tudo para defender as próprias casas dos bandidos e delinquentes. Ora, é um desejo compreensível. Mas surge a questão ‒ e o que os comandantes da milícia devem fazer ‒: quem são os que vêm lhes pedir armas? Um cidadão honesto ou um bandido qualquer disfarçado de “patriota de Donetsk”? A resposta que damos é simples: só será considerado “miliciano” aquele que pessoalmente, compondo uma subdivisão, participar diretamente das operações de combate contra as tropas da junta! Onde e quando seus comandantes acharem necessário. Pois sem disciplina, não haverá nada! Nem vitória e nem ordem. Se cada um for “guerrear” onde e quanto mais lhe agrada ou convém pessoalmente, a milícia de Donetsk vai degenerar em algo a meio termo entre uma corja de desertores dissolutos e um bando reacionário contra tudo e todos.
Mas não será assim! Somente a quem demonstrar combater bem o inimigo e realizar outras missões de combate daremos o direito de pôr ordem na própria casa integrando a milícia! E imporemos essa ordem, não tenham dúvida! Os que hoje “acobertam” lojas e empresas, traficam drogas e simplesmente assaltam gente indefesa, não esperem que “as regras do jogo serão as mesmas” ou que “a guerra perdoará tudo”. O “Donbass Bandido” chegou ao fim! O novo poder dará a todos a possibilidade de renunciar à atividade criminosa, mas quem não quiser, receberá uma resposta firme. (7) Dessa resposta não se poderá resgatar por dinheiro algum! Não sob a legislação de guerra!
Voltando ao principal. A terra de Donetsk precisa de defensores, e a milícia, de soldados voluntários disciplinados. Se os homens não estão aptos a isso, devemos convocar mulheres. A partir de hoje emiti ordem para que sejam aceitas na milícia.
Lamentável não haver sequer uma oficial mulher, nem na ativa, nem na reserva. Mas que diferença faz, se nenhum oficial homem vem nos procurar? Em toda a província não se encontrou ainda nem duas dúzias de militares profissionais dispostos a comandar as subdivisões de combate! Uma vergonha, uma infâmia! (8) Há duas semanas peço que me enviem o chefe do estado-maior e ao menos uns cinco comandantes de companhias e pelotões. E nada! Nenhum! Minhas companhias e batalhões se guiam por soldados rasos e sargentos da reserva. Alguns comandam bem razoavelmente, mas no decorrer é que vai se sentindo a falta dos conhecimentos militares necessários... Bem, aprenderão com o tempo. Mas advirto que nenhum desses ditos “oficiais”, agora empoleirados em seus apartamentos como pardais sob o telhado apavorados com a tempestade e não tendo ocupado seu posto na milícia, jamais será a nossos olhos (9) considerado oficial! E tornar nossa opinião difundida também entre os cidadãos simples será outra tarefa.
Talvez restem poucos dias até que as ações de combate, até agora sem serem encarniçadas demais, atinjam as dimensões de uma verdadeira luta com dezenas e centenas de mortos e feridos. O inimigo está intimidado, mas ainda é muito forte! Ele tem o patrocínio de oligarcas dispostos a pagar enormes quantias para cada assassinato, cada casa destruída, cada crime contra o povo russo! Para vencê-lo, devemos lutar. Os cidadãos capazes de me ouvir e mostrar devoção a sua terra natal e seu povo, que venham aos estados-maiores da milícia, nas cidades de Sloviansk, Kramatorsk, Krasny Lyman, Kostiantynivka, Horlivka. Os comandantes que designei formarão aí subdivisões de reserva, organizarão a instrução e as enviarão, conforme sua preparação, ao exército na ativa. E mesmo que ele ainda pareça uma guerrilha pequena e muito mal organizada, está lutando e vai vencer! É caminhando que se faz o caminho!
Deus e a Verdade estão conosco!
O comandante da milícia da RPD
Coronel I. I. Strelkov
Notas (Clique pra voltar ao texto)
(1) Segue-se no vídeo: “em Kramatorsk, em Kostiantynivka.”
(2) No vídeo: “Três dias atrás”.
(3) No vídeo: “E estão longe de serem casos isolados”.
(4) No vídeo: “E dezenas de milhares e centenas de milhares”.
(5) No vídeo: “nacionalistas ucranianos.”
(6) No vídeo Strelkov não usa a palavra “locais”.
(7) No vídeo: “receberá a resposta merecida.”
(8) No vídeo: “Uma vergonha, uma desonra!” Na verdade, está escrito no texto “Styd i pozor!”, enquanto Strelkov pronuncia “Styd i sram!”: as palavras russas styd, sram e pozor são sinônimas, e podem ser traduzidas aleatoriamente por “vergonha”, “desonra”, “infâmia” ou outros sinônimos ainda.
(9) No vídeo Strelkov titubeia: “aos olhos... a nossos olhos, nenhum será”.
Bandeira da República de Donetsk: faixa aludindo à Mãe-Rússia e São Miguel Arcanjo.
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