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Este é o segundo de uma série de textos em que pretendo abordar várias questões com que me deparei ao traduzir textos da língua russa para a portuguesa, em especial discursos e canções dos tempos soviéticos. São apontamentos que salvei como notas no Facebook e, após algumas revisões, estou publicando agora. Para mais informações sobre minhas leituras a respeito de teoria da tradução que me inspiraram a escrever, consulte o primeiro texto da coletânea.
Esta segunda postagem, como prometido na primeira, trata de questões mais específicas, e é a fusão (ou quase) de duas notas do Facebook: uma a respeito da manutenção de estrangeirismos no texto de chegada e outra sobre as diferentes traduções para o português de um mesmo substantivo, a depender se ele está no singular ou no plural. Também é recomendável que as leitoras e leitores tenham algum conhecimento de russo, mesmo apenas do alfabeto cirílico, porque nem sempre vou traduzir ou transliterar as palavras e frases dos textos de partida.
Teoria da tradução faz bem, mas é mesmo traduzindo que se aprende a traduzir. Em algumas traduções de Lenin que fiz, surgiu o pouco explorado problema da flexão de substantivos não assimilados à língua portuguesa, ou seja, os famosos “estrangeirismos”.
Deparei-me com o problema de como traduzir os plurais de “кулак” (“kulak”, o camponês médio da Rússia e da URSS) e “погром” (“pogrom”, onda de perseguição em massa aos judeus na Europa Oriental), que no nominativo são respectivamente “кулаки” (transl. “kulaki”) e “погромы” (transl. “pogromy”). Esses plurais em russo são pouco conhecidos nossos e convivem com alternativas aclimatadas às línguas euro-ocidentais, como “kulaks” e “pogroms”. Quais delas escolher? Após realizar, em alguns casos, traduções que agora eu não realizaria, acabei estabelecendo quatro níveis em que as traduções poderiam ser diferentes.
No primeiro nível, os iniciados em língua russa (ao menos em nível incipiente) e história da URSS. Obviamente, em se tratando de um texto em português, eu faria a transliteração, mas da forma no nominativo plural em russo: “kulaki” e “pogromy”. Claro que a coisa ficaria mais fácil se as palavras fossem acompanhadas por elementos plurais, como “os”, “alguns”, “certos”, “aqueles” etc.
No segundo nível, os livros de divulgação, mas ainda com um caráter científico e acadêmico. Eu escreveria os plurais originais “kulaki” e “pogromy” no texto, mas colocaria as respectivas notas de rodapé:
* Nominativo plural de “kulak” em russo
e
* Nominativo plural de “pogrom” em russo.
É de se lembrar, claro, que se no texto russo essas palavras estão em outros casos (genitivo, dativo, instrumental etc.), mesmo assim translitero como no nominativo em português.
No terceiro nível, os textos de divulgação política, geralmente os discursos e textos dos grandes líderes, mas criados especialmente para um suporte escrito fixo ou de consulta culta (mesmo que originalmente tenham sido, por exemplo, discursos orais ou panfletos), como por exemplo sites marxistas e coletâneas de documentos. É uma inversão da solução anterior: escreve-se “kulaks” e “pogroms” no texto, e, apenas para fins de informação, colocam-se as respectivas notas de rodapé:
* Nominativo plural em russo: “kulaki”
e
* Nominativo plural em russo: “pogromy”.
Essa inversão se justifica por uma questão de economia de energia mental: no caso anterior, a lentidão da leitura e o nível intelectual dos leitores justificam a espera em se saber do que se tratam “kulaki” e “pogromy”, até que se leia a nota. No presente caso, capta-se imediatamente o que são “kulaks” e “pogroms”, sendo dispendida aí toda a energia mental e não se gastando praticamente nada na consulta às notas, que ficam como uma informação secundária.
E no quarto nível, enfim, os panfletos, os textos militantes mais circulantes e fluidos, as legendas de vídeo e, possivelmente, a reinterpretação de discursos ou falas em filmes e outras ocasiões de encenação. É melhor usar aí as formas “kulaks” e “pogroms”, imediatamente compreensíveis aos receptores ocidentais.
Poderia ainda estabelecer um quinto nível de tradução, no âmbito explicativo, em que, em certos casos, ou eu trocaria “kulaks” e “pogroms” por “camponeses médios” e “massacres/perseguições antissemitas/contra os judeus”, respectivamente, ou expressões ou circunlóquios equivalentes, ou ainda poderia me valer do procedimento técnico da “explicitação” citado por Vázquez-Ayora, escrevendo “os kulaks, camponeses médios” ou “os pogroms, perseguições...” etc. Mas estou focado nos leitores que já têm algum conhecimento sobre história da Rússia e da URSS, especialmente historiadores e militantes políticos, e por isso me centro no uso de “kulak” e “pogrom”.
Em todo caso, o que eu jamais faria era utilizar formas pouco usuais e não consagradas como “cúlaque” e “pogron” (esta, incrivelmente, dada como vinda do iídiche!), listadas no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), havendo na primeira a marcação errada da sílaba tônica e apenas a segunda (escrita erroneamente com N) sendo listada na seção de estrangeirismos.
Existem casos na tradução em que nos deparamos com “falsos amigos”, ou seja, palavras parecidas nas duas línguas, mas de significado absolutamente diferente. Estes dias, ao traduzir Lenin, descobri, digamos, um tipo intermediário dessa confusão: palavras transparentes, ou muito comuns, que no singular sabemos muito bem o que significa, mas que no plural, por vezes, podem assumir acepções levemente diferentes.
“Продукт” (produkt), por exemplo, é fácil: significa “produto” de uma forma geral. Porém, o plural “продукты” (produkty) pode nomear também “gêneros alimentícios”, “víveres”. Aliás, foi consultando o verbete “gêneros” no Aurélio que fiz uma acrobacia na tradução: a expressão “необходимые для них продукты” (neobkhodimye dlia nikh produtky), dentre outras possibilidades, pode ser traduzida por “produtos/víveres/gêneros que lhes são indispensáveis”, se formos seguir ao pé da letra. Mas como vi no dicionário brasileiro a expressão “gêneros de primeira necessidade”, e ainda significando “Mercadorias, esp[ecialmente]. alimentos, indispensáveis às necessidades básicas do homem”, decidi traduzir “необходимые для них продукты” por “gêneros de primeira necessidade”, deixando subentendidos os destinatários já mencionados.
Outra palavra enganadora é “работа” (rabota), que, em geral, significa “trabalho”, mas que no plural, “работы” (raboty), pode designar também “obras” (em geral de engenharia). No trecho “Все работы, необходимые для восстановления транспорта” (Vse raboty, neobkhodimye dlia vosstanovlenia transporta), “работы” também poderia ser traduzido por “trabalhos”, mas veja como ficaria melhor, ainda mais em se levando em conta o que o contexto oferece: “Todas as obras necessárias à restauração dos transportes”.
Lembrando ainda que no texto inteiro não traduzi “транспорт” (transport) pelo singular, mas pelo plural “transportes”, já que aí havia a acepção de “sistema de transportes”! Ou seja, como dizia o sábio Geir Campos, que o tradutor consciencioso procure no dicionário todas as palavras, especialmente as que julga conhecer melhor...