domingo, 7 de setembro de 2014

A morte de um espião internacional


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Introdução (Erick Fishuk)

Dois dos maiores jornais soviéticos, o Pravda (em russo, “Verdade”) e o Izvestia (em russo, “Notícias”), eram alvo de uma piada corrente, que vou traduzir grosseiramente: o Pravda não tinha Izvestia, e o Izvestia não era Pravda... Longe de qualquer julgamento de valor sobre a censura à imprensa imperante na antiga URSS, e lembrando que o Pravda era o órgão oficial do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), e não exatamente um periódico noticioso, é notável como boa parte da produção escrita do país possuía o claro intuito de legitimar os governantes e a ideologia oficial, chamada então de “marxismo-leninismo”.

Há uma longa discussão sobre se o cerco às liberdades na União Soviética era necessário pra evitar a destruição das conquistas revolucionárias pela oposição ocidental ou, conforme a versão oficial de nosso establishment acadêmico, jornalístico e literário, se o Estado e o Partido, na era Stalin, simplesmente se tornaram um joguete na mão de burocratas malvados que, longe de perseguir a meta da construção do comunismo, queriam na verdade se dar bem e viver às custas de um proletariado pobre e sofrido. (Pra um princípio de discussão, ver uma breve postagem com texto de Paulo Gabriel.) Mas, como em qualquer outra nação, a luta pelo poder sempre foi intensa, especialmente após a morte de Vladimir Lenin, o fundador da URSS e seu primeiro líder, quando Leon Trotsky e Iosif Stalin buscavam a prevalência nas principais decisões.

Os bons conhecedores da história mundial bem sabem o desfecho da contenda, e sabem inclusive qual foi o trágico fim de Trotsky, que buscou criar um movimento comunista alternativo ao soviético e, suspeita-se, teve a vida tirada por agentes de seu maior rival. Se os fins realmente justificavam os meios, é difícil dizer, ainda mais em nossa parcial posição de membros de uma comunidade supostamente democrática, próspera e pacífica. Mas o documento apresentado abaixo mostra que, pros comunistas soviéticos, a ação foi mais do que justificada e, além disso, extremamente louvável.

Contam os pesquisadores russos que, após o assassinato de Trotsky, a 21 de agosto de 1940, preparou-se coletivamente um editorial pro Pravda, intitulado “A morte inglória de Trotsky”, cujo original datilografado passou, certamente entre os dias 22 e 23, às mãos e ao crivo rígidos de Stalin. O líder riscou e reescreveu vários trechos, tendo lá seus motivos secretos, mas a mudança que mais chamou a atenção foi a do título: expressando sinceramente de que natureza ele julgava ser Trotsky, fez a renomeação que pode ser lida no título desta postagem. O artigo saiu anônimo no editorial de 24 de agosto, reafirmando o cânone então vigente sobre a jovem história da União Soviética, codificado na História do PC(b) da URSS: breve curso, publicado por uma comissão do Comitê Central em 1938. (A sigla é a do nome do Partido até 1952, quando se tornou o PCUS. Aliás, a leitura comparativa deste artigo e da História é de uma riqueza extrema, revelando passagens que são praticamente idênticas: consultem-se as versões online em russo e em português da obra.)

O documento por si só pode dizer coisas que não preciso adiantar. A tradução segue a versão final do Pravda, com as notas da correção manuscrita feita por Stalin sobre o original datilografado, conforme a cópia do site da Fundação Aleksandr Iakovlev (clique aqui). As notas explicativas que eu mesmo inseri são introduzidas por “N.T.”. Títulos em russo: “Smert mezhdunarodnogo shpiona” (redação final) e “Besslavnaia smert Trotskogo” (rascunho original). Originalmente publicado no site da Comunidade Josef Stalin.

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O telégrafo nos trouxe a notícia da morte de Trotsky. Segundo os jornais norte-americanos, Trotsky, que passou seus últimos anos no México, foi vítima de um atentado. Seu executor, Jacques Mornard van den Dreschd, (1) um de seus colaboradores mais próximos.

Desce à sepultura um homem cujo nome os trabalhadores de todo o mundo pronunciam com desprezo e repulsa, e que por longos anos combateu as bandeiras da classe operária e de sua vanguarda, o Partido Bolchevique. (2) As classes dominantes dos países capitalistas perderam um servo fiel, e os serviços secretos estrangeiros foram privados de um velho agente encarniçado que não escolhia os meios para alcançar seus objetivos contrarrevolucionários.

Trotsky percorreu uma longa trajetória de traição e deslealdade, de duplicidade política e hipocrisia. Não foi à toa que Lenin, ainda em 1911, dera-lhe o apelido de “Iudushka”, (3) ao qual Trotsky (4) nunca deixou de fazer jus.

Trotsky iniciou sua atividade política como um menchevique antirrevolucionário. (5) Já em 1903, no Segundo Congresso do POSDR, (6) ele atacou Lenin furiosamente, defendendo e amparando as opiniões de Martov e de outros líderes mencheviques antirrevolucionários. (7) Logo depois, no início da Guerra Russo-Japonesa, Trotsky escancarou ainda mais sua face renegada e antirrevolucionária (8) ao recair num defensismo inveterado, isto é, a defesa da “pátria” do tsar, dos latifundiários e dos capitalistas.

Trotsky (9) recebeu a revolução de 1905 com a famigerada teoria da revolução “permanente”, teoria que desarma o proletariado e desmobiliza suas forças. (10) Após a derrota da revolução de 1905, Trotsky passou a apoiar os mencheviques liquidacionistas. Vladimir Ilich Lenin escreveu então estas palavras sobre Trotsky:

“Trotsky se comportou como o mais vil carreirista e fracionista... Ele fala muito no Partido, mas se comporta pior do que qualquer outro fracionista”. (11)

Como se sabe, Trotsky foi o organizador do “bloco de agosto” antirrevolucionário, (12) reunindo todos os grupos e correntes (13) que combatiam Lenin.

Em agosto de 1914, iniciada a guerra imperialista, Trotsky, como era de se esperar, postou-se do outro lado das barricadas, nas hostes dos (14) defensores da guerra. Visando enganar a classe operária, mascarou sua traição ao proletariado com um palavreado “esquerdista” de combate à guerra. Em tudo o que concernia às mais importantes questões sobre a guerra e o socialismo, Trotsky se opunha a Lenin e ao Partido Bolchevique.

O menchevique Trotsky julgou à sua maneira a enorme popularidade das divisas de Lenin junto às massas populares e o fortalecimento da influência dos bolcheviques sobre a classe operária e as massas de soldados após a revolução democrático-burguesa de fevereiro. Ele ingressou em nosso partido em julho de 1917, junto com um grupo de correligionários, declarando estar completamente “desarmado”. (15)

Os fatos subsequentes mostraram, (16) porém, que o menchevique Trotsky não havia se desarmado, (17) nem por um minuto havia deixado de combater Lenin (18) e entrou em nosso partido para arrasá-lo a partir de dentro.

Alguns meses após a Grande Revolução de Outubro, (19) já na primavera de 1918, Trotsky, junto com um grupo de comunistas ditos “de esquerda” e de socialistas revolucionários de esquerda, organizou uma criminosa conspiração contra Lenin, Stalin e Sverdlov, líderes do proletariado, visando prendê-los e aniquilá-los fisicamente. E, como sempre, o próprio Trotsky – o provocador, o organizador dos assassinos, o intrigante e aventureiro – permaneceu nas sombras. Seu papel dirigente na preparação desse crime que felizmente fracassou só foi revelado em sua plenitude duas décadas depois, no processo do “bloco direitista-trotskista” antissoviético, em março de 1938. Somente após vinte anos foi definitivamente desembaraçado o novelo sórdido dos crimes de Trotsky e de seus cúmplices.

Nos anos da guerra civil, enquanto o País dos Sovietes rechaçava a investida de numerosas hordas de guardas-brancos e invasores, Trotsky, com suas atitudes traiçoeiras e suas ordens sabotadoras, debilitava por todos os meios o poder de resistência do Exército Vermelho, o que fez Lenin proibi-lo de frequentar os fronts leste e sul. Todos sabem que Trotsky, por causa de suas relações hostis com os velhos quadros bolcheviques, tentou fuzilar toda uma fileira de importantes combatentes comunistas dos quais não gostava, agindo, assim, de modo favorável ao inimigo.

No mesmo processo do “bloco direitista-trotskista” antissoviético, foi revelada a trajetória traiçoeira e pérfida de Trotsky: julgados nesse processo, seus colaboradores mais próximos confessaram que, junto com seu chefe, já atuavam desde 1921 como agentes dos serviços secretos estrangeiros, como espiões internacionais. Com Trotsky à frente, serviam com zelo aos serviços secretos e aos estados-maiores da Inglaterra, França, Alemanha e Japão.

Em 1929, quando o governo soviético expulsou de nossa pátria o traidor e ntrarrevolucionário Trotsky, os círculos capitalistas da Europa e da América tomaram-no em seus braços. Isso não foi casual, mas algo esperado, visto que Trotsky já havia passado há muitíssimo tempo a servir aos exploradores da classe operária. (20)

Trotsky caiu em sua própria rede, chegando ao cúmulo da degradação humana: seus próprios adeptos o mataram. Deram-lhe um fim aqueles a quem ensinou a matar pelas costas, (21) a trair e a atentar contra a classe operária e o País dos Sovietes. Tendo organizado o perverso assassinato de Kirov, de Kuibyshev e de M. Gorki, Trotsky foi vítima de suas próprias intrigas, traições, injúrias e crimes. (22)

Terminou, assim, de forma inglória a vida deste homem desprezível, que desce à sepultura com a marca de espião internacional e de assassino estampada na testa. (23)


Notas do tradutor (Erick Fishuk)
(clique no número pra voltar ao texto)

(1) N.T. ‒ Esta é a ocorrência mais frequente, nas línguas ocidentais, de um dos codinomes de Ramón Mercader, embora esteja escrito “Zhak Mortan Vandendraish” (Жак Мортан Вандендрайш) no documento, no qual essa forma parece ocorrer pela única vez.

(2) Stalin riscou do final da frase “contra Lenin e Stalin” e uniu num mesmo parágrafo as duas frases, que estavam separadas.

(3) N.T. ‒ Ver o manuscrito nomeado, em suas Obras completas, como “O kraske styda u iudushki Trotskogo” (em tradução livre, “Sobre o enrubescimento do iudushka Trotsky”). “Iudushka”, traduzido como “pequeno Judas” ou simplesmente “Judas”, era o epíteto dado, em polêmicas entre os séculos 19 e 20 na Rússia, a pessoas consideradas mesquinhas, egoístas e traiçoeiras, em referência à personagem Porfiri Golovliov, ou “Iudushka Golovliov”, do romance A família Golovliov (1880), do escritor russo Mikhail Saltykov-Schedrin.

(4) No original: “ao qual ele...”.

(5) “Antirrevolucionário”: adicionado por Stalin.

(6) N.T. – Partido Operário Social-Democrata da Rússia, de onde saíram os partidos bolchevique (futuro Partido Comunista) e menchevique. Sigla em russo: RSDRP.

(7) “Antirrevolucionários”: adicionado por Stalin.

(8) “Renegada e antirrevolucionária”: no original, “oportunista”.

(9) Stalin riscou “Não crendo nas forças do proletariado,” do início da frase.

(10) Stalin riscou “e energias” do fim da frase.

(11) Stalin separou a citação de Lenin num novo parágrafo. [N.T. – A tradução desse excerto foi feita independentemente, mas com consulta, da versão citada na tradução brasileira da história do PC(b) da URSS (Recife, Centro Cultural Manoel Lisboa, 1999), logo ao início da parte 4 do capítulo IV.]

(12) “Antirrevolucionário”: adicionado por Stalin.

(13) Stalin riscou o adjetivo “antibolcheviques” que vinha a seguir.

(14) Stalin riscou a expressão “apologistas e” que vinha a seguir.

(15) Redação original da última frase: “Ele entrou no partido dos bolcheviques em julho de 1917, junto com um grupo de correligionários, com o objetivo de arrasá-lo a partir de dentro.”

(16) No original: “mostraram com toda clareza”.

(17) “Não havia se desarmado”: adicionado por Stalin.

(18) O resto da frase foi adicionado por Stalin.

(19) No original: “Grande Revolução Socialista de Outubro”.

(20) “Aos exploradores da classe operária”: no original, “no campo dos opressores e exploradores”.

(21) “A matar pelas costas”: adicionado na redação final do Pravda.

(22) Esta última frase não está no original datilografado nem na correção manual de Stalin.

(23) Stalin substituiu com esse parágrafo o final que estava no original: “Com a morte de Trotsky, desaparece da arena política do mundo capitalista mais um velho espião e agente, inimigo mortal dos trabalhadores.” A expressão “e de assassino” foi adicionada na redação final do Pravda.



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