Esta é talvez a primeira fala na íntegra do ex-presidente da Ucrânia, Viktor Ianukovych, legendada em português. É a entrevista que ele deu para o canal de TV “112 Ukraina” na cidade de Kharkiv (Kharkov, em russo) a 22 de fevereiro de 2014, após ser deposto contra a vontade pela Rada Suprema, o parlamento ucraniano, na sequência dos protestos na capital Kyiv (Kiev, em russo), iniciados em novembro de 2013 (movimento do Euromaidan). Embora esta postagem venha quando a Ucrânia já consolidou um novo governo nacionalista, encabeçado pelo presidente Petró Poroshenko, deve-se lembrar que Ianukovych jamais renunciou formalmente à presidência, e que o governo russo sempre o considerou como seu representante legítimo.
Devo justificar uma opção quanto aos nomes próprios de cidades e pessoas. Embora Ianukovych e a âncora do jornal falem todos em suas variantes russas, coloquei-os na variante ucraniana, mesmo havendo laços maiores com as regiões de fala russa. Fiz isso simplesmente por se tratar de eventos ocorridos em território ucraniano ou serem elementos relativos ao Estado ucraniano, cuja língua primordial sempre foi, desde a independência, o ucraniano. Ver também postagem anterior, que se detém mais demoradamente sobre a questão dos nomes de cidades ucranianas.
Na entrevista, Ianukovych chama sua deposição de “golpe de Estado”, preocupa-se com o clima de intimidação que afirma ter sido criado pelos opositores e rejeita o “vandalismo” e o “banditismo” dos manifestantes antigoverno. Ainda prevendo uma possibilidade de volta ao poder e à capital – da qual havia fugido inicialmente para Kharkiv, no leste de maioria russófona, antes de entrar na Rússia –, promete buscar soluções para evitar um derramamento de sangue entre a população, descarta a possibilidade de sair do país (informação obviamente desatualizada) e contesta a legalidade das decisões tomadas em série pelo parlamento, a cujas demandas Ianukovych afirmava ter concedido todas. O político ucraniano também alude às ameaças e agressões sofridas pelos membros de seu governo, por seus partidários e pelos integrantes de seu Partido das Regiões (Partia Regionov), cujo ocaso ele nega que pudesse ocorrer futuramente, e teme pela integridade de pessoas que recusavam lealdade aos novos governantes, os quais ele compara aos nazistas dos anos 1930.
Não pensem que consegui traduzir e legendar apenas de ouvido: achei duas versões escritas da entrevista na internet, uma mais fiel aos diálogos (clique aqui) e outra mais fiel às ideias expostas (clique aqui). Esta segunda foi publicada originalmente no site da Presidência da Ucrânia, contudo, logo após a deposição de Ianukovych, a cópia no site da Presidência foi apagada, sendo preservada neste outro site. Nenhuma das duas versões é uma transcrição fiel das palavras faladas, por isso tive que ir cruzando ambas ao ouvir o áudio.
Abaixo você pode ver também a versão legendada da entrevista, na qual sempre são feitas as necessárias adaptações a esse tipo de mídia (considerar não a transliteração usada no vídeo, mas no texto, que segue o novo sistema adotado pela página):
ÂNCORA: Podemos escutar ao vivo o que diz o presidente Ianukovych em Kharkiv sobre sua demissão. Vamos ouvir.
IANUKOVYCH: Tenho toda certeza de que isto que nosso país e o mundo presenciam é a amostra de um golpe de Estado. Fiz tudo para evitar no país um banho de sangue. Aprovamos duas leis de anistia, demos todos os passos para estabilizar a situação política no país. Mas ocorreu como ocorreu. Cheguei em Kharkiv ontem, tarde da noite, desejando participar do encontro de hoje com deputados de todos os níveis e com líderes sociais, mas ocorreu que eu não podia ir, não podia perder tempo, porque tinha que estar comunicável todo o tempo. O tempo todo chegavam alertas de perseguição a pessoas. Estou buscando defender as pessoas que estão sendo perseguidas pelos bandidos em seus locais de residência e de trabalho e nas estradas. Estou fazendo de tudo para fazer cessar a matança de pessoas já próximas de mim.
Estão me intimidando o tempo todo com ultimatos, mas não penso em partir para nenhum lugar no exterior nem penso em renunciar ao cargo de presidente: fui legalmente eleito. Recebi garantias de todos os mediadores internacionais, com os quais atuo, de que me fariam estar em segurança. Observarei como eles vão desempenhar esse papel.
Tudo o que está ocorrendo hoje, obviamente, é um grau máximo de vandalismo, de banditismo, de um golpe de Estado. Essa é minha avaliação, da qual estou profundamente convencido.
O que vou fazer agora? Vou fazer tudo para proteger meu país da desordem, vou fazer tudo para cessar o banho de sangue.
REPÓRTER: De que forma?
Ainda não sei como vou fazer isso. Já me encontrei hoje com muitas pessoas, tomei conselhos – eu tive essa possibilidade. Agora percorrerei o sudeste do país, que continua sendo menos perigoso, ou mais seguro. Continuarei viajando, me encontrando com as pessoas. Primeiro, quero encontrar a resposta sobre o que faremos agora em nosso país, que rumo tomaremos e, claro, o pânico que hoje toma conta das pessoas comuns no oeste, no leste, no centro... Eu via o que se passava em Kyiv. Atiraram em meu carro, mas não estou aterrorizado. Tenho muito pesar pelo nosso país. Estou sentindo a responsabilidade. E o que vamos fazer agora: todos os dias vou falar publicamente sobre isso, todos os dias.
Vai permanecer em território ucraniano?
Vou permanecer em território ucraniano. Vou instar todos os observadores internacionais, todos os mediadores que participaram desse conflito político, a que detenham os bandidos. Não são opositores, são bandidos.
Ocorre que no parlamento, ao saírem do parlamento, os deputados são agredidos, atingidos por pedras, intimidados. As decisões que eles estão tomando são todas ilegais. E eles devem ouvir isto, ouvir de mim: não vou assinar nada com bandidos que estão aterrorizando todo o país, o povo ucraniano, e envergonhando a Ucrânia.
O senhor subscreveu todas as condições apresentadas pela oposição, cumpriu todas as promessas relativas às exigências dos opositores, e Maidan não se dispersou. O que fazer em tal situação, qual a saída?
Já disse tudo. Vou buscar saídas, observar a reação da comunidade internacional, ver como ela pode honrar seus compromissos.
Já entrou em contato com representantes da União Europeia?
Disso se ocupa o Ministro das Relações Exteriores, que ainda é o legítimo: Leonid Oleksandrovych Kozhara. Ontem ele me informou que havia conversado com os europeus, com o Ministro das Relações Exteriores da Polônia, e ontem à noite ele ligou para os Estados Unidos. Ontem tive uma conversa com o presidente Putin, da Rússia, que me disse ter conversado com o presidente Obama, dos EUA. E espero todos esses dias poder manter essas negociações.
Rybak, presidente da Rada Suprema, demitiu-se. O que o senhor diz a respeito disso?
Ele foi agredido ontem. Ele veio me ver, e no caminho atiraram no carro. Veio me ver e pediu que eu o levasse. Eu o levei e agora o despachei de carro para Donetsk.
Para tratar da saúde?
Sim, para tratar da saúde. Fiz o mesmo com Kliuiev, chefe de administração. Fizeram ameaças também aos juízes da Corte Constitucional.
Foram chamadas telefônicas, SMS?
Fazem isso de todas as formas. Mas ontem deputados do Partido das Regiões, ao saírem do parlamento, foram agredidos com pedras.
Muitos membros estão abandonando seu partido.
Algumas pessoas não resistem, temendo por suas famílias.
Fazem isso sob pressão?
Claro! E há ainda os traidores. Não quero falar disso agora, não quero citar nomes, esperando doer-lhes a consciência e a responsabilidade. O partido já passou muito por isso, sobrevivendo a 2004-2005, quando 200 mil membros o deixaram, e depois entraram mais 600 mil. Parece que a situação vai se repetir. Que saiam, digamos, meio milhão, 500 mil, embora eu não calcule tantos. Nosso partido continuará forte. Estamos vendo uma repetição do nazismo, quando nos anos 30, na Alemanha e na Áustria, os nazistas chegaram ao poder. É uma repetição. Fecharam os partidos, e agora da mesma forma fecham o Partido Comunista, o Partido das Regiões, lançam rótulos, perseguem, batem, agridem pessoas, queimam casas, escritórios. Mais de 200 escritórios do Partido das Regiões foram incendiados na Ucrânia.
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