Assim como Dmitri Medvedev, sem relevância na vida real e achando no Telegram uma válvula de escape pra seu extremismo doentio, o “guru de Putin” expôs pelo canal (literalmente!) seu brilhante lampejo pra criar uma nova disciplina acadêmica chamada “ocidentologia”, em contraste com o “orientalismo” ou os “estudos orientais” euro-americanos. Segundo o Doguim baboso, o Ocidente era o “sujeito” e o Oriente, o “objeto”, e na nova Eurásia (eufemismo pra neoimperialismo russo) é o contrário que deve se dar.
Seria um gênio se não fosse um jegue, porquanto seus raciocínios são obnubilados, entre outras coisas, pela obsessão com os “terroristas LGBT”. Mas vamos lembrar por partes algumas coisas ao Xande das Frexas. Primeiro, se ele não acompanha o debate epistemológico “daqui”, as noções de “Ocidente” e “Oriente” são criticadas pelo menos desde o opus magnum de Edward Saïd, e imagino que ele deva se arrepiar com a corrente “decolonial” (que lhe faria muito mais jus) tanto quanto um bolsotrumpista apavorado por tudo o que é “woke”. (Nota: nas melhores análises, a Rússia ainda é considerada um país colonialista, portanto, ele se veria em maus lençóis...).
Segundo, percebemos, assim, que ele não traz uma grande inovação epistemológica, mas apenas concebe um reflexo invertido do que o “Ocidente” fez por séculos. O “multilateralismo” dos eurasianos não passa de uma ratoeira armada por ditadores com intenções muito piores do que as dos “ianques malvadões”. Terceiro, estudiosos russos (sérios!) sobre o Reino Unido e os EUA, muitos deles jovens, só pra ficar em parte do “Ocidente Coletivo”, sempre existiram aos montes. Quer um exemplo brilhante? Aleksandra Filippenko, exilada na Letônia com seu pai, um famoso ator oposicionista, e que sempre comenta na TV Rain os últimos acontecimentos em Washington!
Quarto, Doguim sequer propõe o nome “ocidentologia” em russo, mas pega a versão em inglês “Westernology” e cria um monstrengo por meio da transliteração mais assimilação: “vesternológia”... Que erva ele injetou? Se confirmamos que ele não está há um bom tempo em nosso planeta, ele ignora que quase sempre Westernology tem sido usado com um sentido irônico na literatura e nas artes, e que mesmo em russo já existe a palavra “vostokovéd”, ou seja, “orientalista” (de vostók: leste, oriente), seja lá o que isso queira dizer. Portanto, se západ significa “oeste, ocidente”, bastava tacar um “zapadovéd” pra encerrar a história! Parece aquele “anticolonialismo” francófobo das juntas militares do Níger, do Mali e do Burquina-Fasso, três quengas do Kremlin que rejeitam toda a “herança do colonizador”, exceto, curiosamente... a língua, ainda usada nos hinos nacionais e nos comunicados gerais.
E quinto, tente descobrir quem foi Ivan Ilin, fascista, simpatizante de Hitler, ideólogo do Exército Branco e, segundo alguns, também o intelectual preferido de Putin. A tal “escola superior de política” existe no seio da Universidade Estatal Russa de Humanidades (RGGU) e foi tolerada pela ditadura, apesar de muitos estudantes terem protestado devido ao passado do homenageado. Enfim, se delicie com esta tradução em primeira mão de uma pérola do pensamento universal e reze pra que a hidra seja decepada sem que muitas cabeças precisem escorregar no banheiro e se arrebentar!
Publicação 1: Vamos pensar por que existem orientalistas na Rússia, mas não ocidentalistas, e essa mesma palavra nos parece desajeitada e inadequada. Porque estamos habituados a considerar o Oriente como um objeto, mas o Ocidente como um sujeito. O Ocidente não é o que se estuda, mas sim aquele que estuda. O Ocidente age através de nós, penetra em nossa consciência científica. Esforçamo-nos por ver tudo através de seus olhos, aceitamos seus métodos, critérios e ensinamentos como algo universal e geralmente vinculativo.
Obviamente, tal atitude é falha, privando a ciência russa da sua subjetividade, transformando nosso país num meio-Ocidente, um sub-Ocidente, numa identidade que está sempre por alcançar o Ocidente.
Portanto, os estudos ocidentais são necessários hoje. Talvez o termo Westernology [vesternologia] soe melhor. Mas o significado é o mesmo. Devemos estudar o Ocidente como um objeto. Simétrico ao Oriente. E nós mesmos devemos ser o sujeito. Assunto russo. E o conhecimento da Rússia e de tudo o que é russo é autoconhecimento. Enquanto o conhecimento do Ocidente e do Oriente é o conhecimento do Outro, significativo, mas ainda assim sempre o Outro. E nada alcançando.
Podemos adotar algumas coisas tanto do Ocidente como do Oriente, mas primeiro pensar cuidadosamente, estimar e correlacioná-las com os nossos próprios valores tradicionais.
Publicação 2: Desenvolvemos a primeira versão do curso de Vesternologia na Escola Superior de Política Ivan Ilin. Lemos a primeira versão de teste, levamos muito em consideração e corrigimos. O curso é absolutamente paradigmático e de vital necessidade. Aqui está um artigo sobre o programa.
É significativo que o tema tenha despertado grande interesse na China (Universidade Fudan), na Índia e nos países islâmicos. O artigo foi imediatamente traduzido para vários idiomas. Mas cada civilização deve obviamente ter a sua própria versão da vesternologia. Até o século 11, tivemos uma história cultural e religiosa com a Europa Ocidental, se não idêntica, pelo menos muito próxima. No caso da China e da Índia, este não é o caso; o encontro com o Ocidente tem inicialmente uma natureza puramente colonial; o mundo islâmico tem muitas intersecções não só com o cristianismo, mas também com o helenismo, com a cultura e a filosofia gregas – a filosofia islâmica é o neoplatonismo. Ou seja, deve ter sua própria vesternologia.
É claro que a África terá as suas e a América Latina terá as suas. Mas o princípio importante aqui é: toda civilização é um sujeito epistemológico. E cada civilização deve construir a partir de si mesma a sua própria interpretação do Ocidente, olhando para o Ocidente com os seus próprios olhos. Isto é multipolaridade epistemológica.
O vice-presidente da Universidade Nehru da Índia, Santishri Dulipudi Pandit, e o famoso professor da Universidade Fudan de Xangai, Chang Weiwei, estão preparando cursos relevantes em suas universidades. Os estudos ocidentais são uma consequência lógica da multipolaridade. A cúpula dos BRICS em Kazan dá esse novo impulso. A Grande Humanidade está determinada a acabar com a hegemonia epistemológica do Ocidente. De agora em diante, o Ocidente é apenas uma das civilizações. E a nossos olhos, um objeto.
E pra não deixarmos o humor de sempre, segue um vídeo mandado por um amigo e que não mostra nada menos do que um momento raríssimo: a fundação do Ramáz, rs!
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