sexta-feira, 6 de junho de 2025

“Mitologia soviética” (resenha)


Endereço curto: fishuk.cc/urss-mito

Prometi a amigos que ia “resenhar implacavelmente” este livro escrito (cometido, seria a palavra mais exata) por Thiago Braga, mas não tinha pensado onde ia fazer isso; mesmo aqui eu não tava pensando em publicar nada. Inclusive, você viu que tô dando uma “moratória” nas publicações, mas é pra preparar outros projetos pessoais. Na medida do possível, vou programar coisas mais robustas que vão voltar a sair diariamente a partir de 1.º de julho. Vez ou outra posso aparecer “de urgência” aqui, como é o caso de hoje, embora minha intenção inicial fosse publicar este texto nas avaliações da Amazon.

Parece que tá tendo problemas pra aparecer por lá, e dada essa finalidade original, não posso dizer que seja uma “resenha” no sentido acadêmico, mas várias opiniões e até desabafos, muitos deles acérrimos, contra o anticomunismo mal informado, bem como contra os defensores de Lenin e, sobretudo, Stalin. Não exauri todos os pontos possíveis, até porque seria humanamente impossível e os já dados aqui bastam pra convencer a não gastar seu salário em vão. Mesmo que fosse publicado no portal, não tinha por que não trazer aqui também, e segue o “descarrego”, com leves adaptações, a ser interpretado como você quiser.


Nunca avaliei um livro, e não achei que isso poderia virar uma “guerra de dislikes”. Mas vamos lá, tratando objetivamente da obra, e não da pessoa do autor. Conheci Thiago pelo canal “Brasão de Armas”, do qual vi alguns vídeos sobre o comunismo soviético, em minha opinião, bem mal estruturados. Também soube da tentativa do acadêmico Jones Manoel de chamá-lo para um debate ao vivo, até agora sem sucesso. Por um ou outro meio, soube da publicação deste livro, e sendo o primeiro lançamento do youtuber, decidi comprar logo para cravar minha avaliação.

Thiago é professor, e por isso merece minha deferência, pois a profissão deveria integrar uma espécie de elite que existe em outros países, mas infelizmente é maltratada neste restolho colonial. Thiago também merece minha deferência porque decidiu adotar uma posição de crítica e ataque à ideologia bolchevique, um dos maiores terraplanismos conceituais, políticos e administrativos já surgidos na face da Terra, um plano de engenharia social tosco e aberrante. Você não precisa defender acriticamente esse projeto fracassado (mais por culpa própria do que por ação do “imperialismo ocidental malvadão”) para se preocupar com as mazelas sociais causadas tanto pelo próprio capitalismo quanto por constantes violações de leis adotadas democraticamente.

Por “bolchevismo” entendo o marxismo tal como interpretado por Lenin e Stalin, bem como a prática do PC soviético na finada URSS; portanto, nesse rótulo incluo o que poderíamos de chamar de “leninismo”, “stalinismo” (concernente às práticas específicas de Stalin no que teve de inovador em relação a Lenin) e todos os derivados com maior ou menor reivindicação (“trotskismo”, “maoísmo”, “hoxhismo”, “castrismo”, Juche etc.). Evito “comunismo” (assim como “socialismo”), porque essa palavra é anterior ao próprio Karl Marx e foi “surrupiada” por Lenin, portanto, ela não diz nada.

Também evito “marxismo-leninismo” por duas razões: 1) é redundante, já que o “leninismo” é uma interpretação do “marxismo” (mesma coisa que dizer “cristianismo-luteranismo”, por exemplo); 2) é desobedecer ao próprio Marx e aceitar a descrição que os próprios atores históricos fazem de si mesmos, o que nos obrigaria a incluir um certo “nacional-socialismo” na família das esquerdas; 3) é uma máscara ruim para o próprio “stalinismo”, no que teve, repito, de particular tanto na teoria quanto na prática, sem juízo de valor, ao contrário do que pensam os próprios “stalinistas”, ops, “marxistas-leninistas”.

Contudo, mesmo sendo bastante crítico ante certas coisas que Thiago defendeu e várias de suas argumentações históricas, não achei que ia me impressionar tão negativamente com sua estreia editorial. Embora várias avaliações aqui feitas só tivessem o objetivo de lacrar pro lado dos webcomunistas e fossem tão “incels” quanto supostamente seriam os inscritos de Thiago, elas apontaram algumas falhas crassas: péssima redação, ortografia de ensino médio, frases truncadas, uso aleatório das aspas, traduções mal feitas (às vezes parece que ele simplesmente copiou-e-colou os autores e traduziu, porque saiu até inglês no meio!), falta de padronização na redação das citações, total negligência na transliteração de nomes próprios, palavras repetidas e aquele famoso programa de mistério: Onde está a crase? Esses pontos são de chorar e dão o maior flanco para o ataque das viúvas do KGB, embora esses “sujos falando do mal lavado” não escrevam textos melhores. Se aqui a nota mínima só pode ser “um”, infelizmente a “editora” que deve economizar com revisores e deixou essa publicação ocorrer, parecendo querer mesmo sabotar Thiago, não merece mais do que zero.

Do ponto de vista lógico (mas não que as conclusões estejam necessariamente erradas), há vários tropeços, mas vou tentar me ater aos mais importantes. O primeiro e mais evidente é o embasamento quase exclusivo em historiografia, ou seja, pesquisas já prontas, que às vezes chamamos de “fontes secundárias” porque não devem servir de material, e sim como uma introdução ao tema. Há poucas exceções, como o recurso às Obras completas de Lenin em inglês, as quais, se desconhece o russo, podia pelo menos cotejar com outras traduções. Porém, se há fontes primárias, elas são citadas pelos próprios historiadores, atrás dos quais Thiago se esconde apenas para trazê-las indiretamente (e sem jamais usar o famoso “Apud”, que indica citação indireta!), como que usando o argumento de autoridade: “Olha, se ele está citando, é porque a fonte existe, ela está aí e não preciso ir atrás!”

Sobre os autores, o defeito mais evidente de Thiago, já revelado em seus vídeos, deve advir de sua provável não especialização no tema, o que o leva a escolher autores, obras e correntes de modo acrítico e sem localizá-los em debates mais amplos, sequer entre eles mesmos. (É um defeito geral achar que só por ser “historiador”, alguém pode discorrer confortavelmente sobre todo e qualquer tópico histórico, ou que um não historiador, só por selecionar as melhores obras sobre um tema, pode fazer um “trabalho histórico”.) Além disso, parece que ele “pinça” trechos e citações das origens mais díspares, quando não resume obras ou artigos inteiros, e faz um mosaico apenas para embasar as próprias concepções prévias. Já foi apontado que Thiago faz autores dizerem o que não dizem e autores de orientações opostas dizerem as mesmas coisas. Não estou em condições de julgar, mas por curiosidade acessei a Wikipédia em russo sobre Dmitri Volkogonov e descobri que exatamente outro autor onipresente, Oleg Khlevniuk, sequer o considera um “historiador”, mas um “político”!

Um cacoete particularmente irritante e resquício de nosso bacharelismo latifundista é quando Thiago adiciona o título “professor” a praticamente todo historiador citado, como se isso fosse reforçar o argumento. Não que não sejam professores, mas para que isso? Pior, faz uma coisa que já devia ser sanada em um primeiro ano de graduação, que é a oscilação no uso dos nomes: ora vemos “o professor Dmitri”, ora “o professor Volkogonov” para designar a mesmíssima pessoa, assim como “a professora Sheila” e “a professora Fitzpatrick” parecem a mesma historiadora desmembrada em duas.

Aliás, sua limitação linguística, suponho, apenas ao inglês impediu-o de conhecer no original vários outros sovietólogos da Europa (pré e pós-abertura dos arquivos): Pierre Broué, Fernando Claudín, Arch Getty, Moshe Lewin (os quatro com várias traduções em português), Marc Ferro, Hélène Carrère-D’Encausse, Brigitte Studer (já traduzida ao inglês), Aldo Agosti, Serge Wolikow, Nicolas Werth e até Silvio Pons, já traduzido para o português. Inclusive, por sua abordagem científica, e não meramente ideológica (como um Ludo Martens, um Grover Furr ou um Domenico Losurdo da vida), vários deles já entraram para o Index do Comunistão tropical. E em várias redes sociais já cansei de indicar esses autores para direitistas e esquerdistas, mas parece que falo aos quatro ventos... Inclusive, criticados que são, os franceses Stéphane Courtois (o mesmo do “livro de cor escura”) e Annie Kriegel fazem com muito mais categoria o mesmo trabalho que Thiago faz.

Sinceramente, enquanto popularizador de conhecimento (não vou entrar no mérito de adesões partidárias), é difícil julgar Thiago por querer abordar todo e qualquer tema, mesmo sem ter com ele uma familiaridade de uns bons anos. Porém, a falta de profissionalismo se revela na referida “pinçagem” de autores que parecem sair do nada, não pertencem a uma escola, não têm suas próprias convicções que afetam direta ou indiretamente sua produção. Essa classificação dos “revisionistas”, por exemplo, é de matar, até porque os arquivos não trouxeram nada radicalmente novo, mas apenas ampliaram e refinaram o que, mais ou menos indiretamente, já se sabia sobre a natureza do inferno soviético, com a vantagem de que as moscouzetes não podiam mais alegar “falsificação estadunidense”... Seria muito melhor se Thiago se limitasse apenas aos vídeos e indicasse os autores para que seus inscritos pudessem ler e pesquisar por conta própria, e não fazer essa bricolagem porca que serviu de presente aos webcomunistas.

Webcomunistas que, aliás, parecem ter sido a única obsessão de Thiago. Ele não quer fazer o conhecimento avançar, ele não quer popularizar no Brasil a historiografia sobre a URSS, ele sequer, presumo, se preocupa sinceramente com os milhões de vítimas das várias catástrofes no antigo império. Ele se preocupa porque foram Lenin e Stalin os principais responsáveis pela matança; e se tivessem sido Denikin, Kerenski, Kornilov ou mesmo Nicolau 2.º? Eu sei que Thiago também não gosta de “história especulativa ou conjetural”, mas podíamos adicionar à lista: Malenkov, Tukhachevski, Khruschov, Brezhnev... à escolha do freguês.

Os webcomunistas invariavelmente falsificam, deturpam, incensam e sacralizam a história da URSS, parecendo uma descrição da Cidade de Deus agostiniana ou da Utopia morusiana. Eles não têm outra fonte senão o próprio cânone bolchevista, não conhecem línguas, são incultos e dogmáticos, tiram diplomas apenas como pedaço de papel. Mas é sempre mais fácil bater no mais fraco, não? Como eu disse, Thiago “se esconde” atrás das citações dos historiadores, mas por que apenas aludiu aos argumentos a combater, sem os desenvolver nem mesmo “dar nome aos bois”? (Trazer o print de um aleatório site comunista obscuro do exterior, sem sequer explicar quem é o autor, foi o fim da picada!)

Por isso, a escolha dos três temas foi igualmente aleatória. Thiago sequer se preocupou em justificá-la, só faltou dizer que “são os temas mais debatidos no YouTube, Twitter ou Instagram”. Lembra muito os vídeos tristemente célebres de Manuela D’Ávila (2016-17) desmentindo os “mitos do comunismo” com memes de gatinhos... Como alguém já disse [nas avaliações da Amazon], a história da URSS é, sim, muito mais multifacetada. Mas a mitificação não para em 1945.

Temos a tecnologia nuclear (enquanto o problema habitacional nunca foi resolvido), o homem no espaço (enquanto mesmo as famílias de militares, como o pai de Aleksei Navalny – li suas memórias póstumas –, tinham de ficar horas esperando produtos básicos em filas), a reabilitação do charlatão Trofim Lysenko (que teria “desmentido a genética racista burguesa”, mas apenas destruiu a agricultura soviética), o apoio de Reagan aos mujahedin afegãos, transmutados em “Bin Laden” e “Talibã” retrospectivos (sendo que a primeira coisa que a URSS fez ao invadir o vizinho foi matar o presidente radical do Khalq, trocando-o por um mais “moderado”)... e o onipresente “cerco capitalista”, que justificou todo tipo de desperdício, repressão e mau planejamento, quando o Ocidente sequer ligava para o que acontecia “do outro lado da cortina”. E mesmo as décadas de 1920 e 1930 têm vários aspectos que poderiam ser explorados.

No Brasil, os comunistas, webcomunistas, stalinistas, maoístas, radicais, antifascistas, como queira, estão em coro, do conforto de seus apartamentos, defendendo a agressão imperialista de Vladimir Putin contra a Ucrânia, baseados em mentiras sobre OTAN, neonazismo, russofobia, golpe de Estado e outros boatos que eles também ajudaram a espalhar. A URSS nada mais foi do que a reciclagem do arcaico império tsarista, com o expansionismo e a crueldade turbinados. Como em 1939, outros vizinhos imediatos estão em perigo, não adianta negar. O “Ocidente coletivo” finge que não vê.

Mas Thiago sequer faz uma reflexão sobre a manipulação justamente desses pontos da história pela máfia que ocupa o Kremlin desde os tempos de Ieltsin, pois se preocupa mais em caçar webcomunistas. É um objetivo mesquinho, tornando o livro ainda mais desnecessário. Ele pensa que as conquistas democráticas são algo “caído do céu”, que não foram objeto de muita luta. Luta na qual justamente o bolchevismo se embrenhou para subverter a democracia. Conquistas que hoje, mais do que nunca, estão em perigo, relativizadas inclusive por certas esquerdas que a julgam “pudor burguês”, “teatro das elites” ou “desvio eleitoralista”. Salvo quando, assim como o “antipolítico” MBL, eles se candidatam, ganham e entram na mamata...



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