quarta-feira, 25 de abril de 2018

Stalin poeta (2): “Torpe” e “Madrugada”


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Essa rima ficou supimpa! Será que eles deixam publicar na Klaxon?...

Quem acompanhou a primeira postagem sobre este assunto, verá que estou repetindo aqui muita coisa. O tema não é controverso, mas poderá espantar muita gente. Nem os mais ferrenhos comunistas, nem os mais babantes direitistas, sabem que Iosif Stalin, ditador e marechal da União Soviética, também escreveu poesia no começo de sua juventude. É realmente um assunto pouco divulgado entre quem não conhece algo da língua russa, mas alguns de seus poemas foram traduzidos no ápice de seu regime e ficaram guardados por décadas, sendo publicados há algum tempo.

A. Andreienko organizou e comentou em 2005 uma seleta de poemas e cartas escritos por Stalin na juventude, chamando-a I. V. Stalin: Poemas. Correspondência com a mãe e parentes (Сталин И. В.: Стихи. Переписка с матерью и родными), publicada em Minsk pela FUAinform. Mesmo no cenário russo, o aparecimento desse volume deve ter parecido peculiar. Andreienko introduz dizendo que a tradição poética continuou, por muito mais tempo, bem mais vigorosa na Rússia e na Ásia Oriental (mesmo entre grandes governantes) do que na Europa Ocidental, onde sua antiga relação, inclusive, com a ciência foi perdida há séculos. Para ele, o poeta não é necessariamente quem “vive no mundo da Lua”, mas até o contrário, pois saber escrever em versos revelaria um pensamento claro e sintetizador. Esse seria o caso de vários grandes líderes da atualidade (obviamente ele só cita comunistas leste-asiáticos), e com Stalin não poderia ser diferente.

Enquanto estava no seminário religioso em Tbilisi, o jovem Ioseb Dzhugashvili escreveu alguns poemas em georgiano, dos quais seis foram publicados na mesma época (meados da década de 1890). Os dois que estou postando hoje não têm título nem na coletânea citada, nem nas Obras completas de Stalin, e por isso dei-lhes títulos simples e curtos em português. Torpe saiu em 1895 no n.º 218 do jornal Iveria, dirigido pelo grande poeta e publicista georgiano Ilia Chavchavadze, hoje considerado “Pai da Pátria”. Madrugada saiu no n.º 234 da mesma revista, no mesmo ano. Stalin, que ainda não tinha adotado esse pseudônimo, assinava seus poemas como “Soso” ou “Soselo”, nome com que também era conhecido entre os íntimos.

Poemas do jovem Ioseb também apareceram numa crestomatia de textos georgianos editada em 1907 pelo ativista M. Kelendzheridze, ao lado de outros grandes poetas, e na abertura de um manual de alfabetização lançado em 1916 pelo pedagogo Yakob Gogebashvili (o poema “Utro”/“Alba”, que traduzi anteriormente). O agora Stalin não publicou poemas no período soviético, mas num arroubo extremo de puxa-saquismo, Lavrenti Beria, chefe da polícia política (ele mesmo também georgiano), convocou em segredo os melhores especialistas, entre eles Boris Pasternak e Arseni Tarkovski, para transformar em poemas as traduções literais em russo dos textos do patrão. Deveriam compor uma coletânea de luxo para os 70 anos de Stalin, em 1949, mas o poeta, por razões misteriosas, ao descobrir o plano, chutou o pau da barraca e mandou parar tudo.

A seguir na coletânea de Andreienko, narra-se outro episódio folclórico envolvendo Stalin e a poesia épica georgiana, e então aparecem os poemas, em russo. São 6 páginas, seguidas de mais 6 páginas com “poemas sobre Stalin”, e depois lembranças sobre a juventude do líder, as cartas etc. “Torpe” e “Madrugada” estão nas páginas 8 a 10, e nas Obras completas (t. 17, Tver, Companhia de Edições Científicas “Severnaia korona”, 2004), nas páginas 3 e 4. Julgou-se ainda por bem publicar na coletânea outra tradução de cada poema, feita por Lev Kotiukov, e nas Obras outra tradução de “Torpe” por Feliks Chuiev. Eu traduzi este poema confrontando as três versões, mas traduzi “Madrugada” sem considerar a de Kotiukov. Nos dois casos, procurei levar em conta o esquema rítmico e métrico do russo, mas não quis fazer rima com os mesmos sons do russo, e por vezes, como é comum na poesia em português, também traduzi palavras oxítonas no fim dos versos por palavras paroxítonas.

Eu traduzi “Torpe” em pleno 7 de novembro de 2017, aniversário da Revolução Bolchevique, tendo começado de manhã na espera de um pronto-socorro aonde tínhamos levado minha avó, e terminado em casa à tarde. Mas “Madrugada” só concluí em 9 de fevereiro de 2018, após uns dias de interrupção e uma noite de inspiração. Esses poemas apresentaram dificuldades especiais devido à comparação entre vários textos ou à presença de alguns elementos próprios da cultura georgiana. O poema “Torpe” consistiu em toda uma recriação, tendo eu acrescentado várias figuras, próprias da cultura, política e religião brasileiras, que espero que vocês adivinhem. Já “Madrugada” ficou mais próximo do texto inicial, embora a literalidade estrita tenha sido impossível, e eu tenha adicionado até alguns elementos típicos brasileiros. Nos dois textos, aparecem ainda os nomes de dois instrumentos típicos da Geórgia, que mantiveram o nome original em russo: respectivamente, o panduri, um instrumento de três cordas tocadas com palheta e levemente aparentado ao bandolim, e o salamuri, um instrumento de sopro semelhante à flauta. Em “Torpe”, imaginando uma folia de Reis que passeia de casa em casa, unifiquei os conteúdos semântico e fonético em pandeiros e violas, e em “Madrugada”, não teve jeito, ficou flauta mesmo.

Lembro que as traduções são poéticas, e não literais, mas procurei manter ao máximo as mesmas informações passadas. Nem todas as palavras dos meus textos são de uso corrente, portanto, se surgir alguma dúvida, recomendo que procurem um dicionário, sendo talvez o Priberam, pro português europeu e brasileiro, o melhor acessível na rede. Conforme meu tempo disponível, vou traduzir os outros poucos poemas que faltam e postá-los aqui no blog. Infelizmente, eu traduzo a partir das versões russas, e não georgianas, idioma este que não conheço, mas acredito que isso não lhes tira a qualidade artística e o valor histórico. Boa leitura!

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(tradução anônima)

Ходил он от дома к дому,
Стучась у чужих дверей,
Со старым дубовым пандури,
С нехитрою песней своей.

А в песне его, а в песне –
Как солнечный блеск чиста,
Звучала великая правда,
Возвышенная мечта.

Сердца, превращённые в камень,
Заставить биться сумел,
У многих будил он разум,
Дремавший в глубокой тьме.

Но вместо величья славы
Люди его земли
Отверженному отраву
В чаше преподнесли.

Сказали ему: “Проклятый,
Пей, осуши до дна...
И песня твоя чужда нам,
И правда твоя не нужна!”

(tradução de F. Chuiev)

Он бродил от дома к дому,
словно демон отрешённый,
и в задумчивом напеве
правду вещую берёг.
Многим разум осенила
эта песня золотая,
и оттаивали люди,
благодарствуя певца.

Но очнулись, пошатнулись,
переполнились испугом,
чашу, ядом налитую,
приподняли над землёй
и сказали: – Пей, проклятый,
неразбавленную участь,
не хотим небесной правды,
легче нам земная ложь.







(tradução de L. Kotiukov)

Шёл он от дома к дому,
В двери чужие стучал.
Под старый дубовый пандури
Нехитрый мотив звучал.

В напеве его и в песне,
Как солнечный луч, чиста,
Жила великая правда –
Божественная мечта.

Сердца, превращённые в камень,
Будил одинокий напев.
Дремавший в потёмках пламень
Взметался выше дерев.

Но люди, забывшие Бога,
Хранящие в сердце тьму,
Вместо вина отраву
Налили в чашу ему.

Сказали ему: “Будь проклят!
Чашу испей до дна!..
И песня твоя чужда нам,
И правда твоя не нужна!”


Torpe

Batendo em porteiras estranhas,
Pandeiros, violas ferozes
Das doces e humildes entranhas
Cantavam futuros com vozes.

A música, o canto luziam
Qual ouro, qual sol no pensar.
A graça e o transe traziam
Verdade celeste sem par.

Queimavam os peitos ouvintes,
Fogueiras queimavam as trevas,
Pedreiras ruíam, requintes
Alçavam de noites longevas.

Num susto, varridas as nuvens,
Caíram no chão agitados
E humanos, de alma em ferrugem,
Praguearam aos vates sagrados:

“O duro labor, se os vampiros
Não pagam, que fira o que é teu;
Mas reis se derrubam com tiros
Enquanto gozamos no breu”.

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(tradução anônima)

Когда луна своим сияньем
Вдруг озаряет мир земной
И свет её над дальней гранью
Играет бледной синевой,

Когда над рощею в лазури
Рокочут трели соловья
И нежный голос саламури
Звучит свободно, не таясь,

Когда, утихнув на мгновенье,
Вновь зазвенят в горах ключи
И ветра нежным дуновеньем
Разбужен тёмный лес в ночи,

Когда беглец, врагом гонимый,
Вновь попадет в свой скорбный край,
Когда, кромешной тьмой томимый,
Увидит солнце невзначай, –

Тогда гнетущей душу тучи
Развеют сумрачный покров,
Надежда голосом могучим
Мне сердце пробуждает вновь.

Стремится ввысь душа поэта,
И сердце бьется неспроста:
Я знаю, что надежда эта
Благословенна и чиста!

(tradução de L. Kotiukov)

Когда луна своим сияньем
Вдруг озаряет дальний мир,
И тень её за дальней далью
Исходит синевой в эфир,

Когда над рощей безмятежной
Взмывает с песней соловей
И саламури голос нежный
Звучит всю ночь в душе моей,

Когда, переведя дыханье,
Вновь родниковый ключ звенит,
Когда в тревожном ожиданье
Бессонный лес в ночи молчит,

Когда герой, гонимый тьмою,
Вновь навестит свой скорбный край
И в час ненастный над собою
Увидит солнце невзначай, –

Тогда гнетущий сумрак бездны
Развеется в родном краю.
И сердцу голосом небесным
Подаст надежда весть свою.

Я знаю, что надежда эта
В моей душе навек чиста.
Стремится ввысь душа поэта –
И в сердце зреет красота.


Madrugada

A Lua, com seu brilho forte,
A Terra vem iluminar,
E a luz, do sul até o norte,
No azul branqueia o estrelar.

A mata, presa ao firmamento,
Vislumbra o rouxinol aos pios,
E o som da flauta, num lamento,
Percorre insone os senhorios.

Após parar rapidamente,
Os montes jorram seus grotões,
E o vento, manso na corrente,
Retira o sono dos varjões.

O fugitivo, sem saída,
De novo está em grades vis,
E numa escura, opressa vida,
O Sol transpassa por funis.

E então as nuvens despedaçam
A escuridão do mau humor,
Os vozeirões da fé abraçam
Meu coração com novo amor.

O bom poeta sonha alto
E o peito bate com razão:
Tal fé, eu sei, não sou incauto,
Bondades traz que bendirão!



“Pai, você foi meu herói, meu...” Ah, sabe, deixa pra lá!