segunda-feira, 2 de julho de 2018

Fazer histórico e sofrimento humano


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Clio, a deusa/musa grega da história.


Por Erick Fishuk

NOTA: Inicialmente chamado “O fazer histórico diante do sofrimento humano”, este é mais um de meus textos reflexivos inéditos que decidi publicar. Antes, acredito que eu já o tinha dado a alguma iniciativa da faculdade, que não deve, porém, ter ido pra frente. Há alguns meses, tendo o carregado em PDF num antigo perfil do Academia.edu, ele chegou a ser relativamente lido e curtido. Agora, estou o dando a público numa forma definitiva, embora eu não tenha feito nenhuma alteração no conteúdo. O texto deve ser entendido no contexto de dois tipos de leitura: o livro
As ideias conservadoras, de João Pereira Coutinho, principal fonte das preocupações aí presentes, e os compêndios A bandeira vermelha, de David Priestland, e Ascensão e queda do comunismo, de Archie Brown. Como se nota, pois, está permeado por uma retórica conservadora um tanto simplista, embora eu não tenha renunciado a nenhum de seus argumentos. Obviamente, minha instrução posterior amadureceu bastante a reflexão intelectual, mas este texto foi uma de suas etapas necessárias. Sobre o que entendo por “ideologia”, aproxima-se mais de “visão de mundo”, em todo caso sem qualquer relação com a conceituação liberal de discurso falso ou anticientífico. Para a visão marxista da ideologia como discurso falseador, mas nem sempre falso, tenho me referido ultimamente ao Nicos Poulantzas de Poder político e classes sociais.

A grande questão filosófica que permeou a humanidade na era cristã deve ter sido: vale a pena sacrificar o presente em prol de um futuro melhor? Nesse sentido, cristianismos e socialismos se assemelham: o primeiro sacrifica a vida terrena em prol da “vida eterna”, e o segundo, o conforto individual agora em troca do bem-estar geral depois. Grosso modo, o bolchevismo foi apenas a execução mais extrema desse princípio socialista.

Por mais que o objeto do historiador seja apenas e tão somente o passado, como profissional que reflete sobre o que faz, deve ter sempre em mente essa questão relativa ao presente e ao futuro. Porque não é ela que vai explicar a trama histórica, mas justificar a escolha do intelectual. A explicação é uma só, é objetiva, inelutável, mostra por que a história foi assim, e não de outra forma; mesmo a imaginação por vezes interveniente para compor a trama deve ser verossímil, lógica, objetiva, não incorrer em disparate. Já a justificação se encontra no plano político-ideológico, mas é inseparável desse trabalho científico: não se escolhe lidar com Humanas sem ter uma motivação subjetiva clara, porque ela é intrínseca à atividade, e não extrínseca, como em Exatas e Biológicas. Justificar não é mostrar por que foi assim, e não de outro jeito, mas dizer qual foi o valor humano de certas opções, e é nesse aspecto que a história é tão multifacetada.

Ilustro essa questão com o exemplo da construção do socialismo na União Soviética sob o mando de Iosif Stalin. Em geral, no plano da justificação, os admiradores do líder defendem quatro eventos tendo como telos (finalidade) a vitória aliada na Segunda Guerra Mundial: a industrialização acelerada e a coletivização do campo; os expurgos políticos de 1936-1938; diretivas aos comunistas estrangeiros que os deixaram mais vulneráveis à perseguição política; escolhas antes e durante a guerra que geraram altos sacrifícios humanos e materiais. Está fora de dúvida que os sofrimentos, as perdas e as mortes, tanto de soviéticos quanto de comunistas estrangeiros, foram imensos nesse período: é um dado empírico. O que diferencia os defensores dos críticos do regime é que os primeiros invocam o mal maior que poderia ter significado a vitória do nazifascismo, enquanto os segundos rotulam como inaceitáveis as agruras causadas pelas escolhas bolcheviques.

Uma questão de perspectiva: justificar o período staliniano pela derrota de Hitler e Mussolini, ou desautorizá-lo pelo descolamento que causou entre governo e massas, entre propaganda e realidade? Não se trata de uma oposição entre intelectuais progressistas e reacionários, pois pode-se muito bem achar uma lógica nas políticas de então, sem aceitar que pudessem ser avaliadas de forma positiva no geral. Será que cada prisão, cada tortura, cada fuzilamento, cada confisco, cada padecimento por fome, cada transferência residencial forçada, vivida presente e individualmente, era lícita diante da busca por uma satisfação coletiva e incerta? Penso que não. Nem mesmo durante a acumulação capitalista, que poluiu paisagens, destruiu saúdes, exterminou povos em quatro continentes, separou famílias, arrasou antigos modos de vida, expropriou terras e bens comuns, justificou tiranias e governos arbitrários.

No plano historiográfico, na trilha de diversos pensadores da segunda metade do século 20, isso exige virar a história da União Soviética de cabeça para baixo, ou do avesso, ou como queiram, fazer a apostasia dos grandes relatos triunfalistas ruminados pelos intelectuais oficiosos e por politiqueiros ainda hoje saudosistas, e criar aí também, na pátria do socialismo, no baluarte da paz e da liberdade, uma história dos vencidos, e não apenas uma história dos vencedores, que os Aliados também alimentaram para Stalin logo após a Segunda Guerra. Deve-se mostrar como as pessoas também sofreram, como subjetividades e personalidades foram esmagadas, destruídas, que as vivências urgentes também tinham valor humano, e não apenas deviam se apagar diante de uma vitória da qual só nós hoje temos certeza. Ao contrário da típica polêmica liberal, que vê a política bolchevique como simples tiro no escuro, fruto de impulsos e gostos sanguinários, a literatura moderna, dotada da documentação que tanto lhe faltava, encontra explicações para essas escolhas. Mas a velha paixão política, que antes predominava nos debates, não foi descartada, apenas recalibrada conforme as novas vivências e exigências do presente. Diante de um sucessor do Poder Soviético que busca contestar a hegemonia norte-americana com uma nova forma de autoritarismo, e diante da crise da democracia representativa, das instituições que medeiam governantes e sociedade no Brasil e no mundo, fazer as escolhas ideológicas certas é fundamental, e a primeira preocupação delas deve ser com as penúrias microscópicas encobertas pelo fascínio do fazer político macroscópico.

Minha visão pessoal de mundo é esta, e ela orienta meu trabalho, minhas atitudes, meus pensamentos e minhas diversões: evitar ao máximo o desperdício e o sofrimento, porque o “bem puro” não existe, é um mero conceito ideal. Só as dores são reais. A humanidade cristã e socialista tem forçado esse “bem puro” e, subestimando os recursos e possibilidades/limites que estavam disponíveis, causou ainda mais tormentos. Desde o século 18, uma revolução no pensamento tem contestado a ideia de telos e proclamado a supremacia do presente e a necessidade do prazer, o que, infelizmente, também levou a práticas políticas e modos de vida esbanjadores, excessivamente hedonistas e nada previdentes. Penso que o meio-termo é a solução: preocupar-se ao máximo tanto com o presente quanto com o futuro, o que implica certos sacrifícios de ambos, ou seja, privar-se de algumas coisas agora para garantir a permanência de vantagens, e não se angustiar com o depois para evitar a paralisia das atividades prementes.

O historiador, como formador de opinião e profissional que lida com dilemas e problemas humanos, não pode se esquivar aos chamados do presente e do futuro para justificar ideológica e politicamente suas descobertas e raciocínios empíricos, dando corpo, assim, à disciplina histórica, pois o resultado de seu trabalho é inseparável do uso que se faz dele. Ao contrário da atomística, que fundamenta tanto geração de energia quanto bombas. É indispensável que escolhamos, na academia e na vida, entre sofrer agora para duvidosamente desfrutar depois, gastar tudo já para no futuro não termos nada ou equilibrar satisfação e espera para levarmos tranquilamente nossa vida necessária e imperfeita.


Bragança Paulista, 4 de abril de 2015