segunda-feira, 6 de maio de 2024

Queriam que redes fossem atóxicas?


Link curto pra esta publicação: fishuk.cc/sidechat

Nova crônica de Ronaldo Lemos publicada na Folha de S. Paulo do último domingo, 5 de maio, e cujo conteúdo fiz questão de piratear, se chama “O aplicativo que incendiou as universidades nos EUA”. Ele afirma que o utilitário SideChat, uma espécie de Équis disponível apenas pra quem tem um endereço de e-mail universitário e cujos usuários permanecem anônimos, tem sido um espaço de crescente cultivo dos ódios e preconceitos que levaram à radicalização da Revolução da Melancia dos protestos pró-Palestina nas universidades americanas, especialmente a de Columbia. Lemos não esclarece se o app, lançado em fevereiro de 2022, também está disponível fora dos EUA, e eu acrescento que ele é a continuação de um certo Yik Yak (o nome soa familiar...), lançado ainda em 2013 e que faliu justamente por acusações de não prevenir discursos de ódio.

Felizmente, os brasileiros não tiveram tempo de engolir essa modinha, e realmente quase ninguém aqui (inclusive eu) os conhecia; e espero que ninguém resolva fazer a experiência! Deixo que você leia o resto no texto, mas já me pergunto: como os inventores do aplicativo não se deram conta de que um recurso com anonimato garantido ia se transformar de um espaço de desabafo numa rinha de galo? Não atinaram a que na mão de maluco, toda invenção prática pode virar arma? Ou Santos Dumont criou o 14-bis pra ficar se atirando em arranha-céus? Mas trágico é ver como a geração do finzinho dos 90, começo dos 2000, cresceu achando que no Google Store sempre ia ter um app disponível pra resolver qualquer problema da vida, fosse prático ou humano. Queriam curar a solidão e o deslocamento sem bater de frente com a sociedade e repensar seu próprio jeito de agir!

Pra além da falsa inocência, cabe notar que você precisa ter um correio institucional, ou seja, fornecido a estudantes, professores e funcionários por uma universidade, espaço que o próprio Trump detratou como “a nata da nata” da sociedade ianque. E se “a nata da nata” da sociedade se comporta do jeito como vimos na TV e tem difundido ideias como as que já se espalham pela Banânia há uns anos: 1) o que será então do resto da sociedade, que ainda pensa que na USP os alunos andam pelados e participam drogados de orgias? 2) como essas elites podem servir de modelo pra sociedade ao se portarem assim? É pra fazer Vilfredo Pareto se revirar na tumba!



O Yik Yak era coisa de corno, e o SideChat... é de chorar mesmo!


A culpa dos protestos que estão ocorrendo nas universidades dos EUA obviamente não é do aplicativo SideChat. No entanto, ele tem tido um papel na radicalização dos embates. Para quem nunca ouviu falar, o SideChat é um aplicativo para postagens anônimas. Uma espécie de Twitter, que fala de acontecimentos em tempo real por meio de mensagens curtas, vídeos e fotos.

Só que tudo é anônimo. A única informação é a universidade onde o conteúdo foi postado, mas não quem postou. Para se inscrever no SideChat é preciso ter uma conta de e-mail de uma universidade. Com isso o app esperava assegurar que as conversas acontecessem só entre estudantes e, por isso, fossem cordiais.

Não foi o que aconteceu. Relatos em toda a parte mostram que o SideChat se tornou uma espécie de porta do inferno. Em depoimento para a revista Wired, um estudante chamou o aplicativo de “esgoto”. A razão é a quantidade de conteúdo problemático postado, incluindo ataques racistas, incitação à violência, e conteúdo degradante, direcionado a israelenses e palestinos.

O resultado é visível em praticamente todas as universidades dos EUA, da costa leste à costa oeste. Este colunista foi professor da universidade de Columbia, epicentro dos protestos e tem acompanhado com preocupação a situação. Várias universidades cogitaram bloquear o aplicativo. No entanto, a ideia teve pernas curtas. Tanto por conta das proteções constitucionais à liberdade de expressão nos EUA, quanto por causa da impossibilidade técnica do bloqueio.

A solução foi então convocar reuniões com os representantes da empresa. A demanda em comum é o aumento na moderação do conteúdo do aplicativo. Pelo menos para reduzir o conteúdo claramente ilegal (racismo, incitação à violência etc.). A empresa afirma já fazer isso, e alega ter um time de “30 funcionários”, além de usar ferramentas de inteligência artificial. No entanto, os relatos apontam para um ambiente que na prática se torna cada vez mais tóxico.

O SideChat pode ser visto como o símbolo mais recente da crise profunda que tomou conta das universidades dos EUA. Originalmente instituídas como um farol da liberdade acadêmica, nos últimos anos foram se tornando incapazes de lidar com temas controversos. Ao se tornarem território de “guerras culturais”, a universidade foi se transformando em um campo minado, onde vários temas foram sendo suprimidos.

O SideChat se aproveitou disso. Como não era mais possível falar em voz alta sobre vários temas difíceis, o aplicativo criou um espaço virtual onde tudo poderia ser dito. Capitalizou a frustração de quem se sentia silenciado. Só que apostou no anonimato, caminho fácil e perigoso, que destrói os laços comunitários em vez de reconstruí-los. Com isso, abdicou do esforço de reconstruir um espaço baseado no respeito mútuo, para se tornar parte do problema.

Dá para aprender muitas lições com esse caso. A primeira é que discursos que são suprimidos não desaparecem. Ao contrário, eles se radicalizam ainda mais e vão migrando para canais mais opacos. Seja o SideChat, o Discord, o WhatsApp, o Telegram e outros. A tarefa que temos como sociedade é reconstruir espaços para lidar com temas difíceis. E não suprimi-los, ou tocar fogo neles.



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