Este artigo foi um dos mais interessantes cuja tradução eu já tinha publicado em meados dos anos 2000, mas que, devido à falta de acesso ao “verdadeiro original”, receei por muitos anos em republicar nesta página. Trata-se do artigo “Links Between Russian and Sanskrit” (Ligações entre o russo e o sânscrito), escrito pelo professor Durga Prasad Shastri e publicado pela primeira vez em fevereiro de 1964. Ele também circula pelas redes com o título em russo “Связь между русским языком и санскритом”, mas a primeira versão que li foi em esperanto (“Ligoj inter rusa lingvo kaj sanskrito”), traduzida por D. Brechalov, num site russo sobre a pouco conhecida filosofia “homaranista” esboçada por L. L. Zamenhof, iniciador do esperanto.
Meu interesse pelo artigo e por minha própria tradução (feita na adolescência!) ressurgiu quando recentemente retomei o contato com Thiago Gastaldello, que fez na década de 2000 uma graduação em linguística, se debruçou longamente sobre o sânscrito e também fala esperanto. Na época, ele mantinha um blog bilíngue chamado “Se oriente, rapaz!”, hoje não mais atualizado, mais ainda acessável, e talvez nos tenhamos conhecido devido a meu extinto “Sites Sobre Idiomas” (ou SSI), que mantive de 2002 a 2009 e não era mais do que uma coleção de links pra outras páginas com recursos de aprendizado. (Lembrando que as ferramentas modernas, especialmente os apps, inexistiam, e YouTube já havia, mas quase ninguém usava.)
Revendo o blog do Thiago, me deparei com uma reprodução de minha tradução, ela mesma também disponível de forma arquivada, a partir de outro site desativado meu, mas integralmente dedicado ao esperanto. Usando essa última cópia, decidi enfim trazer hoje uma “reciclagem” de minha tradução, embora não a tivesse confrontado com uma reprodução do inglês que terminei achando (reitero que traduzi do esperanto, portanto, me abstive de publicar justamente por ser uma tradução indireta).
Após uma nova rodada de pesquisas, inclusive em fóruns de falantes de russo, descobri que Durga Prasad Shastri (às vezes transcrito Durgaprasad Shastri, ou ainda Durgaprasad Khatri) foi um famoso romancista indiano que escrevia em hindi, nasceu em 1895 em Varanasi – filho de outro célebre romancista – e morreu em 1974. Na Wikipédia em hindi não há nenhuma referência nesse sentido, mas várias fontes o descrevem como professor de sânscrito ou mesmo “sanscritólogo”, que teria viajado à Rússia em 1963 e se espantado com a semelhança dessa língua com o russo, cujo intérprete, portanto, ele teria dispensado. Muito da narração beira a lenda, e mesmo sendo verdade que, enquanto escritor, Shastri pudesse ter algum conhecimento de sânscrito (a fonte de neologismos cultos em hindi, como o grego e o latim pra Europa Ocidental), certamente ele não era acadêmico nem pesquisador: o artigo foi publicado na sequência de uma conferência a uma sociedade cultural indo-soviética e só apareceu em russo em 1996.
Pra quem é linguista de profissão, suas comparações limitadas a um vocabulário superficial chegam a parecer pueris, atitude semelhante à de listas comparando palavras em sânscrito e russo que às vezes aparecem junto com versões do artigo na internet. Além disso, eu mesmo, tendo aprendido em anos mais recentes o básico da escrita devanágari e um pouco de hindi e estando, portanto, mais ou menos habilitado pra fazer pesquisas comprovando suas comparações, nem sempre consegui reconstituir os exemplos que ele cita. Nesta nova edição, que também revê problemas da transcrição do russo que eu tinha deixado de lado, trouxe as versões em cirílico e, sempre que pude, também em devanágari pro sânscrito.
Desta forma, à guisa de notas minhas, coloquei as versões nas escritas originais e as traduções entre colchetes, podendo dispensar a maior parte das notas do tradutor pro esperanto, que em grande parte não fez justamente senão trazer as frases em russo, mas escritas na ortografia esperantista. Por isso, embora conservasse o conteúdo e a posição dessas notas no texto principal, mantive o número original com que elas apareciam (e, assim, a numeração parece “banguela”). Não fiz mudanças em minha própria tradução, mas apenas a atualização ortográfica (o texto é anterior a 2009) e algumas correções de estilo. Sugestões são sempre bem-vindas!

Se me perguntassem sobre duas línguas no mundo parecidas uma com a outra, eu responderia sem qualquer hesitação: “russo e sânscrito”. Isso não é porque algumas palavras de ambas as línguas se parecem, como também é o caso de muitas línguas que pertencem à mesma família. Por exemplo, palavras comuns são encontradas no latim, no alemão, no sânscrito, no persa e no russo, que são originados do grupo indo-europeu de línguas. É admirável que se pareçam a estrutura das palavras, o estilo e a sintaxe, também havendo relações mais próximas entre as regras gramaticais de nossas duas línguas – isso causa a séria atenção de todo o conhecedor de linguística que deseje saber muito mais sobre as ligações próximas que apareceram já em um passado remoto entre os povos da URSS e da Índia.
Palavra universal – Pegue, por exemplo, a mais famosa palavra russa deste século: “sputnik” [спутник]. Ela consiste de três partes: (a) o prefixo “s” [с], (b) o radical substantivo “put” [путь; caminho] e (c) o sufixo “nik” [ник]. A palavra russa “put” [путь] é comum a muitas outras línguas da família indo-europeia, nomeadamente a palavra inglesa “path” e a palavra sanscrítica “path” [पथ्]. E totalmente! A similaridade entre o russo e o sânscrito continua, até o último grau. A palavra sanscrítica “pathik” [पथिक्] significa “pessoa que vem seguindo um caminho”, isto é, “viajante”. A língua russa pode formar também as palavras “putik” [путик] (2) e “putnik” [путник]. E a parte espantosa da história da palavra “sputnik” é que “sa” ou “s” deve ser adicionado como prefixo em sânscrito e em russo para formar as palavras “sapathik” [सपथिक्] em sânscrito e “sputnik” em russo. Ambas as línguas têm o mesmo significado lógico para suas palavras: “pessoa que vem pelo mesmo caminho”. (3) Tenho que agradecer ao povo soviético pela escolha de palavra tão internacional e universal.
Quando vim para Moscou, a empregada de meu hotel deu-me a chave do quarto n.º 234 e disse: “Dvesti tridtsat chetyre” [Двести тридцать четыре]. Naquele momento não pude decidir se eu estava de pé diante de uma senhorita bonita em Moscou, ou na Benares ou na Ujjain de nosso período clássico mais de 2000 anos atrás. Em sânscrito, 234 é “Dvishat tridasha chatvari” [não se sabe ao certo de onde ele tirou essa forma; segundo pesquisa, uma das formas alternativas mais próximas para expressar o número seria “dviśatcatustriṃśat”]. Pode, em algum lugar, existir relação mais próxima? É duvidoso que ainda existam duas línguas diversas que conservaram uma antiga herança e se assemelhem tanto na pronúncia até os dias de hoje. Tive a oportunidade de visitar a vila de Kachalov, a cerca de 25 quilômetros de Moscou, e fui convidado para almoçar junto a uma família russa de agrônomos. A velha senhora apresentou-me um jovem casal, dizendo em russo: “On moi syn i oná moiá snokhá” [Он мой сын и она моя сноха; Ele é meu filho e ela é minha nora].
Quão fortemente eu desejei que Panini, o grande gramático hindu que viveu cerca de 2 600 anos atrás, pudesse estar junto de mim e ouvisse a língua de seu próprio tempo, tão admiravelmente conservada com todas as suas nuanças possíveis nessa parte do mundo. A palavra russa “syn” [filho] é “son” em inglês e “sūnu” [सूनु] em sânscrito. Também a palavra “madīy” [मदीय्] do sânscrito pode ser comparada a “moi” [meu] do russo e a “my” da língua inglesa. Mas somente em russo e em sânscrito o pronome possessivo “moy” e “madīy” deve transformar-se em “moiá” e “madīyā” [मदीया], pois trata-se da palavra “snokhá”, que é feminina. A palavra russa “snokhá” é “snukha” em sânscrito [na pesquisa só apareceu स्नुषा, snuṣā] e pode ser pronunciada da mesma forma. As relações entre o filho e a esposa do filho definem-se por palavras similares em ambas as línguas.
Perfeitamente correto – Eis outra frase russa: “Tot vash dom, etot nash dom” [Тот ваш дом, этот наш дом; Aquela é vossa casa/a casa de vocês, esta é nossa casa]. Em sânscrito ela fica: “Tat vas dham, etat nas dham” [não consegui confirmar nada parecido]. “Tot” e “tat” [तत्] são pronomes demonstrativos, singulares em ambas as línguas e que mostram o objeto da distância. É sempre o mesmo princípio em russo e em sânscrito. “Dhām” [धाम्] em sânscrito é “dom” em russo, possivelmente porque o “h” aspirado não existe em russo.
As línguas modernas do grupo indo-europeu, como o inglês, o francês, o alemão e até mesmo o hindi, que provém diretamente do sânscrito, devem usar a palavra “ser” na referida frase, sem a qual ela não pode existir como proposição correta em todas essas línguas. Somente a língua russa e o sânscrito estão perfeitamente corretos gramaticalmente e também idiomaticamente sem “ser” na referida frase. A própria palavra “ser” (9) se parece muito à russa “iest” [есть] e à sanscrítica “asti” [अस्ति], ou ainda “iestestvó” [естество] em russo e “astitva” [अस्तित्व] em sânscrito, ambas significando “existência” (10). Isso deixa claro que não somente a sintaxe e a ordem das palavras são semelhantes, mas a própria plenitude de expressão e o espírito foram conservados em ambas as línguas em uma forma original sem modificações.
Permitam-me dar, no fim do artigo, uma regra simples e muito útil da gramática de Panini para mostrar o quão profundamente ela é aplicável para a formação de palavras no russo. Panini mostrou de que maneira seis pronomes transformam-se em advérbios de tempo pela simples adição de “-da”. Atualmente, a língua russa tem apenas três das seis palavras do sânscrito de Panini, mas elas seguem a mesma regra de 2 600 anos para receberem seus advérbios de tempo. Ei-las:
Pronomes | Significados |
kim [किम्] | quem |
tat | esse |
sarva [सर्व] | todo |
Advérbios:
Sânscrito | Russo | Significado |
kadā [कदा] | kogdá [когда] | quando |
tadā [तदा] | togdá [тогда] | então |
sadā [सदा] | vsegdá [всегда] | sempre |
A letra “g”, nas palavras russas, usualmente é usada para mostrar a união, em um todo, de coisas que existem separadamente. Nenhuma língua indiana ou europeia mostra essa capacidade de conservar o antigo sistema de nossas línguas, apenas o russo o faz. Já é tempo de fortalecer a investigação de ambos os ramos, importantíssimos, da família indo-europeia, e alguns capítulos fechados da história antiga do mundo devem ser abertos para o bem de todos os povos.
Notas do tradutor esperantista
(2) Conforme a gramática russa, esta palavra significa “pequeno caminho”, “caminhozinho”, mas ela nunca é usada.
(3) Em esperanto, “samvojano”. [Esta palavra, em português, não tem uma tradução exata, podendo ser toscamente transliterada por “companheiro de jornada”.]
(10) A palavra russa “iestestvó” significa “essência”, “natureza”.
