segunda-feira, 1 de maio de 2023

“Mavka” (conto de Ivan Frankó)


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Novamente meu amigo Tiago Rocha Gonçalves fez uma generosa contribuição ao traduzir diretamente do ucraniano o conto Mavka, escrito e publicado pelo famoso literato Ivan Frankó em 1905. Iván Iákovych Frankó (que o Tiago transliterou originalmente como Iván Yákovytch Frankó), nascido em 1856 e falecido em 1916, foi também um poeta, crítico literário e social, jornalista, intérprete, economista, ativista político, doutor em filosofia, etnógrafo e o autor dos primeiros romances policiais e da poesia moderna na língua ucraniana... ufa! Ele era um radical político e fundou o movimento socialista e nacionalista na Ucrânia ocidental, tendo traduzido pro ucraniano muitos escritores europeus célebres. Lembremos que os lugares onde ele nasceu (Nahuiévychi) e morreu (Lviv, chamada “Lemberg” em alemão) pertenciam ao Império Austro-Húngaro, e após a 1.ª Guerra Mundial, a outros países que ocuparam o território da finada potência, até serem anexados à RSS da Ucrânia pelos soviéticos durante a 2.ª Guerra Mundial. Junto com Tarás Shevchenko (1814-1861), Frankó foi o maior influenciador do pensamento político e da literatura moderna na Ucrânia independente, por meio da obra legada.

Na mitologia e folclore ucranianos, em especial da região dos Cárpatos, a mavka (plural ucraniano: mávky), também chamada navka ou niavka, é uma entidade feminina representada com cabelos longos e às vezes nua, geralmente descrita como uma tentação que levaria os homens à morte. As mavkas seriam espíritos de meninas mortas de forma não natural, trágica ou prematura, em especial bebês não batizados. Comparáveis às rusalkas russas, não exibem, porém, reflexo na água nem sombra no chão, e por vezes são reputadas por ajudarem fazendeiros a cuidar do rebanho e espantar animais selvagens. A escritora Lésia Ukraínka (1871-1913) também incluiu as mavkas em seus textos, sobretudo na peça poética Lisová písnia (A canção da floresta, 1911), e a banda ucraniana Mavka, formada em 2015, mistura temas étnicos e folclóricos com música eletrônica e ajudou a popularizar a figura. Além disso, um filme de animação com 90 minutos, inspirado naquele livro de Ukraínka, foi lançado nos cinemas da Ucrânia no último 2 de março, em plena guerra. Originalmente gravado em inglês, também saiu ao mesmo tempo em ucraniano e está sendo dublado e lançado em vários países.

Como bem observou o Tiago no manuscrito original, “Hándzia”, o nome da menininha principal, se pronuncia com o “h” aspirado, o “an” aberto e não nasal (ánn) e a sílaba “dzia” pronunciada de uma só vez, com o “i” breve. Esse “h” aspirado é o mesmo do inglês ou do “g” espanhol na palavra “amigo”, ou um tanto próximo com algumas pronúncias mais suaves do “rr” português, sobretudo no Brasil. A revisão na tradução foi mínima, então, boa diversão!



(Conto de verão)

– Handzia! Handzinha! Pelo amor de Deus, fique em casa, porque eu vou à floresta, pegar cogumelos!

– Me leva contigo, mamãe, por favor! – falou a pequena Handzia, contorcendo seus grossos lábios – Em casa é onde tenho mais medo!

– Ah, vá lá! Já está uma menina tão crescidinha e ainda tem medo de ficar em casa em um dia claro! Continua de caprichos, mas tem medo até dentro de casa! Que vergonha! E como é que eu te deixaria na floresta? Você consegue mesmo andar lá?

– Consigo, mamãe, consigo, não se preocupe – fala Handzia, já se alegrando.

– Não, não, fique em casa! Lá na floresta tem mavkas, – sabe, aquelas com cabelos verdes! Elas levam menininhas embora.

– Oh! Eu não tenho medo de mavkas, mamãe! Eu sonhei com uma num lugar bem longe, – foi tão legal brincar com ela! E ela ria para mim, muito, muito alto! – E fala: “Handzia, u-u!” E eu falo: “Estou aqui!” E ela fala: “Venha, Handzia, na floresta, tem muitos balanços pra nós, hihi hihi!” Me leva, mamãe, me leva, pode ser que a gente a veja! Eu queria tanto balançar com ela!...

– Ah, vá lá, burra! Fica falando baboseira! Pois fique quieta em casa, que eu tranco a porta e ninguém entra. Eu volto daqui a pouco, não fique com medo!

A mãe foi. Girou a chave de ferro na fechadura e deslizou a trava de madeira. A menina chorava em casa.

– Por que a mamãe não quis me levar? Eu teria visto a mavka! E na floresta é tão bonito, quieto, verde, tão quentinho! Ah, essa mamãe! Me trancou em casa! E elas estão sozinhas na floresta, sozinhas...

A casa onde viva a mãe de Handzia ficava no ponto mais à beira da vila. De três direções, podia se ver, não muito longe, uma floresta espessa, escura, e eternamente melancólica, que fazia barulho de vez em quando, e produzia uma canção com um quê de segredos. Estranha, aquela canção. Algumas notas beliscavam o coração como uma ferida já quase curada; outras rugiam o pensamento consigo mesmas no odor sombrio da obscuridade, num espaço um tanto indeterminado e opaco; outras violam as mais profundas e fortes cordas da alma humana, e criam desejo de vida, energia, ânsia ao trabalho incansável, ao futuro brilhante, e ainda inspiram uma tristeza profunda no coração.

Handzya nascera em meio ao barulho daquela canção. Desde quando era capaz de ouvir tons, ouvia, mais que tudo, aqueles, e não é de admirar que aquela canção encantava a criaturinha nervosa por inteiro. Nos sonhos, e na realidade, a escutava em noites de inverno, quando rugia a tempestade, e a floresta gemia, como mil feridos no campo de batalha. Mais lhe agradava a primavera, quando o vento morno agitava devagarinho os galhos úmidos e sem folhas, mas já pingando a sua seiva fresca. Escutava ela no meio-dia de verão escaldante, quando o vento ainda não se ouvia, e, mesmo assim no topo das árvores esfolheadas corria um sussurro misterioso, como que um suspiro, ou como uma tagarelice sonolenta de árvores dorminhocas no calor do sol. A imaginação infantil dia e noite perambulava pela floresta. Achava naquelas vozes, o eco de suas minúsculas, e ainda assim, para a menina, tão pesadas e imensas alegrias e sofrimentos. Logo, não é de se espantar que aquela canção verdejante encantava a criatura delicada e ansiosa. Nos sonhos e na realidade, havia somente um pensamento único. A floresta e seus esconderijos. O que ela melhor e mais carinhosamente recordava na sua curtíssima vida (ela tinha apenas cinco anos!) era tudo o que estava indissociavelmente relacionado à floresta.

Ah, com que alegria, com que satisfação ela ouvia histórias sobre os espíritos da floresta, sobre essas criações da fantasia humana, metade assustadoras, metade atraentes, e principalmente sobre mavkas, com a cara branca como a casca de bétula, e com longos cabelos verdes. Ela não conseguia entender por que as outras crianças tinham medo das mavkas. Afinal, elas são tão lindas, tão boas para boas crianças, brincam tão alegremente com elas entre as vegetações da floresta, balançam em galhos longos e finos de bétula (ah, Handzia adorava tanto balançar!) e riem tão alegremente, cantam tão maravilhosamente! Suas vozes, como sinos de prata, soaram mais de uma vez nos sonhos de Handzia, e ela ficou tão feliz em ouvi-los de longe... Mas ela nunca tinha visto com seus próprios olhos. Que tristeza que a mãe não quis levá-la com ela para a floresta hoje! Hoje com certeza veria uma mavka, ah, com certeza!

Afinal, não foi à toa que ela sonhou com mavkas por várias noites, elas cantavam, riam alto, se balançavam nos galhos e o tempo todo a chamavam para elas, para a floresta... – Handzia, u-u! Handzia, u-u! – elas chamaram, atraindo-a para eles com suas mãos brancas. – Venha até nós na floresta! Conosco é tão quentinho, tão divertido, tão amável! Veja que tranças nós temos! – e você terá uma igual! Veja, que balanço nós temos! – e você vai balançar em um! Uau! Uau! Venha, venha!... Handzia chorou. Ela olhou ao redor da casa. Quão carente, úmida, sombria ela é! Os avós estão parados nos cantos – é assustador! Ela se lembrou de um ditado com que costumavam confortá-la quando às vezes ela chorava:

Corre cotia
Na casa da tia
Corre cipó
Na casa da avó
Lencinho na mão
Caiu no chão
Moça bonita do meu coração.

Ela estremeceu e olhou ansiosamente para o teto, no qual um gancho de madeira preto e tosco, estranhamente cravejado, o segurava. Este gancho era um “cipó” em sua imaginação. Ela, deitada na cama, encarou-o mais de uma vez por muito tempo e sempre sentiu um medo secreto; todas as histórias assustadoras que a velha lhe contava, ela entrelaçava com aquele gancho. E agora, numa ansiedade muda, ela começou a olhar para aquele cipó, e quanto mais olhava, mais expressivamente parecia que o cipó estava vivo, que era aquela velha, malvada, e enrugada mulher com um enorme saco, com o qual sequestrava crianças pequenas. Via ela se endireitando, e batendo com suas pernas de pau, se esgueirando e esgueirando cada vez mais chegando mais perto de Handzia!... Handzia gritou assustada e pulou da lareira até o chão. De lá escalou um banco até a janela, onde era mais claro. Ela olhou ao redor na casa – não havia nada. Timidamente, olhou de relance o cipó. Ele não se movia, mas era assustadora a corcunda preta que avançava nele. Mas lá fora, ah, era tanta claridade, tanto calor! Da janela se via a floresta – Ah, lá com certeza as mavkas se balançavam, esperando por ela! Não, ela não vai ficar dentro daquela casa ruim, com aquele cipó malvado! Ela escala pela janela, para fora, e corre para a floresta, por um minutinho, enquanto a mamãe não volta, pra brincar com as mavkas. Mas e se não voltar? Se a mamãe voltar antes, ela vai levar uma surra. Não, a mamãe não vai voltar antes, afinal é só ela ficar pertinho de casa, numa das valas, que vai ver quando a mãe voltar da floresta com cogumelos.

Handzia saiu de casa pela janela. A leve brisa de verão a envolvia em calor, e bagunçava seus cabelos curtos e brancos, como linho, e trazia uma cor viva àquela cara pálida, somente com os olhos queimando com algum fogo febril enquanto corria adiante pelo curral, em direção à floresta. Se ouvia um leve, porém forte, vento fresco em meio a tal calor, e um cheiro inspirador do campo em flor. A cerca estava um pouco inclinada. Handzia não conseguiria tê-la aberto, pois, como suas mãozinhas fracas aguentariam tal fardo! Ela, como um camundongo, escalou através da estreita abertura, que até um gato poderia escalar com sucesso, e, com um sorriso no rosto, e o corpo tremendo, encontrou-se no pasto oposto ao campo. O vento soprava mais afiado em seu rosto. Handzia só estava de camisa, que ia até o quadril e presa com um cinto vermelho. Nos primeiros minutos ela sentia algo similar ao frio. Mas não, era só impressão, pois o Sol aquece, como estaria frio?!...

A meio caminho do campo, segue-se uma trilhazinha estreita até a floresta. Handzia conhece bem essa trilha, nela ela é mais feliz, adora correr. Dela, se vê claramente a floresta! Lá está, grande, sombria e ruidosa! A alma se cativa com a felicidade, que só mais um minutinho correndo, e ela estará na floresta, sozinha!

Ela corre, só que não consegue correr tão rápido quanto antes. O centeio solenemente balança as orelhas, quando ela passa as mãos nas hastes ao correr. Como ela ama aquele centeio, aqueles ancianos, aquela candelária, que vão de pouco em pouco se aproximando, como estrelas roxas e acinzentadas, numa floresta de hastes douradas!...

– Mavka! Mavka! – grita Handzia feliz, correndo pela trilha. – Eu já estou indo, veja só que rápido! Vamos brincar!

Cada vez mais alto e mais expressivo soa a eterna canção da floresta. Handzia a captura com as orelhas, e se entontece com ela. Entre os barulhos e o som das folhas, ela claramente escuta o som de espirros de peixes na água limpa e cristalina: o riso e grito alegre das mavkas. Escuta também como elas a chamam para si.

– Handzia, u-u! Handzia, u-u

Como elas estão próximas! Estão atrás dos barrancos, é claro! As queridas mavkas com certeza foram até ali me procurar! Mas tinham que ter cuidado! Porque se as pessoas as capturassem, colocariam elas num saco, é claro! Deveriam colocar aquele cipó malvado num saco. Mas não, não seria tão bom quanto as mavkas, elas são tão boazinhas, tão bonitas!...

Mavka! Mavka! – grita Handzia, com todas as forças – Eu já estou aqui, já estou indo, espere só mais um pouquinho!

Ah, aqui está a floresta! Que quieta, gigante e sombria! As bétulas se esquentam no Sol, com suas cascas brancas brilhando de longe. Suas vinhas longas pendiam para baixo, como tranças verdes, se balançando com o vento. Aqui, em algum lugar estão as mavkas. A-ha! Com certeza se esconderam de Handzya, mas ela as chama, que correram, e estão rindo em seus esconderijos...

Mavka! Mavka! Eu já estou aqui! Venha, vamos brincar!

Um bosque! Ela ria sozinha, mas como era longe! E viu o segundo, o terceiro! Mas a Handzia sabia que elas não aguentariam muito no esconderijo. Mas que maravilhoso e sonoro era o riso delas! Amavelmente chamam Handzia para si! Aqui é escuro, mas ali é tão claro, tão cheio de ervas, tão bonito, cheiroso!... Lá os balanços são tão leves. Handzia vai encontra-las, afinal não estão tão longe!

* * *

Já anoitecera. A mãe de Handzia já havia há muito voltado para casa depois dos cogumelos e andara pela vila o dia inteiro perguntando por ela. Ninguém a tinha visto. A pobre da mãe, quanto mais perto da noite, mais alarmada ia de casa em casa, mas não havia nem sinal.

– Vejam o meu infortúnio! Quando nasceu era tão mísera e fraquinha, e agora com cada mês que passa, fica com febre um par de vezes! Umas velhas idiotas fizeram a cabeça dela com essas mavkas, e ela fala delas toda a vez, e nos sonhos só mavkas e mavkas! Agora é minha vez de sofrer! Só Deus sabe onde ela foi parar! Ela nunca se acostumou a correr longe, nunca a deixo sair da minha vista...

Mas a Handzia não aparecia de jeito nenhum. À noite, a mãe pediu chorando a algumas pessoas que fossem à floresta procurar. E passou a noite, e não se pôde achar nada. Passou o segundo dia, e Handzia não fora achada. O quanto se esforçava e por onde andava aquela mãe, nem era preciso dizer. Até que no terceiro dia, cortando lenha na floresta, pessoas acharam uma menininha debaixo de uma bétula. Ela deitara, abraçando a bétula com as mãos entrelaçadas. Os olhos abertos já não brilhavam mais, apenas sobrando um sorriso congelado nos lábios. Pelo visto, Handzia tinha acabado de terminar de brincar com a mavka.