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(Este pequeno ensaio de Bernard Golden, primeiramente escrito em esperanto, trata do interessante assunto das palavras dessa língua que são parecidas com palavrões ou termos semelhantes de línguas étnicas, o que gera muito constrangimento entre vários esperantistas. O texto lança uma luz sobre o desafio com que se deparam os planejadores de línguas auxiliares ‒ Ludwik Zamenhof (1859-1914), no caso do esperanto ‒ ao querer agradar a todo o seu presumido público, o que quase sempre resulta em fiasco. O ensaio foi publicado originalmente na revista La Ondo de Esperanto, n. 1 (26), 1996, e o original pode ser lido aqui. As traduções explicativas mais breves estão entre chaves, e as notas mais complexas estão ao final.)
Os morfemas não internacionais do esperanto
No terceiro volume do Etimologia vortaro de Esperanto (EVE) [Dicionário etimológico de esperanto], no artigo sobre a palavra kurba [curvo], Ebbe Vilborg afirma que esse morfema do esperanto se baseia no francês courbe (pron. “cúrrb”) e comenta: “Não está claro por que Zamenhof preferiu a letra -b- à letra -v-, o que tornaria a palavra mais internacional”. Realmente, não resta qualquer dúvida sobre a maior internacionalidade da ortografia kurva, pois existem palavras similares ou aparentadas em línguas como o inglês (curved), o alemão (Kurve), o espanhol, o italiano e o português (curvo) e o latim (curvus). Além disso, a forma anômala courbe do francês convive com as formas curviligne (curvilíneo) e curvimètre (curvímetro), ambas com v, e não com b. Por que Zamenhof não escolheu o modelo mais internacional? Como responder a essa pergunta que deixou perplexo o Dr. Vilborg?
Outras palavras do esperanto com formas não internacionais
A palavra kurba não é a única do esperanto que não tem uma forma internacional. O autor do EVE observa com razão que ingredienco é baseada apenas no alemão Ingredienz (pron. “ingredients”) (?), devendo ser ingrediento, conforme o inglês ingredient, o francês ingrédient e o espanhol, italiano e português ingrediente. Um terceiro desvio da internacionalidade se encontra na palavra ĉevalo, que deveria ser kavalo dada a maior ocorrência do radical kaval-, como no francês cavale (égua), (1) no italiano cavallo, no português cavalo e também no inglês cavalcade, cavalry e no francês cavalerie. Suponho que Zamenhof foi influenciado pela palavra jeval (pron. “cheval”) do volapuque, que retransmite a pronúncia do francês cheval (pron. “ch(e)val”).
É evidente, portanto, no caso das três palavras mencionadas acima, que Zamenhof desobedeceu ao princípio da máxima internacionalidade que ele mesmo define na seção II do Primeiro Livro (2):
[…] quando as palavras tinham formas diferentes em várias línguas, escolhi aquelas comuns a duas ou três das principais línguas europeias ou aquelas que pertencem a uma só língua, mas também são utilizadas por outros povos [...]
A maldosa eficácia dos tabus linguísticos
De fato, estou lidando aqui com uma espécie de ovo de Colombo linguístico. Há muitos anos já havia descoberto por que Zamenhof voluntariamente evitou a forma internacional kurva e escolheu kurba. Trata-se de um tabu linguístico. De tempos em tempos, esperantistas de diversas origens atentam para algumas palavras do esperanto cuja pronúncia as faz lembrarem palavras que em suas línguas maternas têm um significado negativo ou até obsceno. Tais palavrões são usualmente evitados em conversas comuns. Um exemplo na língua russa é dado por Aleksei Biriulin em seu artigo Kial oni nin ne ŝatas [Por que não gostam da gente] (La Ondo de Esperanto, 1992, n. 4, pp. 17-21). Na página 21, o autor descreve uma situação numa lanchonete em que algumas mulheres bebiam suco e várias vezes “diziam alegres: ‘Ah, suco, bom suco, suco de maçã, suco, suco, suco... suco, ah, que suco”. (3) O problema estava na similaridade do som da palavra em esperanto [“suko”, que significa “suco”] com o substantivo russo suka, que significa “cadela, vadia”. Ora, neste e em outros casos, Zamenhof não teve tanta sensibilidade para prever homofonias acidentais entre palavras do esperanto e palavras de baixo calão das línguas étnicas. Ele certamente conhecia a palavra russa suka, mas isso não o incomodou. Porém, ele não sabia inglês a fundo, por isso deixou passar a homofonia entre farti [passar, estar de saúde] e a palavra inglesa fart (peidar). Da mesma forma, ele não viu que peti [pedir] se parece com o verbo francês péter (também “peidar”). Quando esperantistas britânicos alertaram o autor da língua sobre a palavra farti, ele escreveu à revista The British Esperantist em 1907:
Já que o verbo farti é tão desagradável aos ouvidos ingleses, aconselho então que em seu lugar usemos (principalmente na Inglaterra) a palavra stati, que se encontra no Universala Vortaro [Dicionário Universal] e pode muito bem substituí-la.Por exemplo: “Kiel vi statas” (no lugar de “Kiel vi fartas” [“Como vai você?”]). Quando o sentido não ficar totalmente claro, pode-se usar também a palavra mais precisa “sanstati” [estar de saúde].
Nos primeiros tempos, alguns francófonos propuseram a substituição de peti por rogi (do latim rogare). No final, nenhuma das duas propostas foi acolhida pelo público esperantista, e assim britânicos e franceses fartas e petas sem problemas! (5)
A palavra polonesa “kurwa”
Durante sua infância em Białystok e em Varsóvia, o jovem Ludwik Zamenhof certamente ouviu muitas vezes da boca dos poloneses a palavra kurwa (pron. “kurva”), que significa “prostituta, puta”. Com o pudor típico da sociedade oitocentista em que nasceu e cresceu, Zamenhof cedo percebeu que kurwa era uma palavra obscena em polonês. Sua sensibilidade o fez evitar o adjetivo homófono kurva e substituí-lo pela forma kurba. Note que kurva é quase uma palavra pan-eslava, existindo no tcheco, no servo-croata e no búlgaro, e também como um empréstimo ao húngaro, uma língua fino-úgrica.
Eis a simples e irrefutável explicação da existência de kurba, e não kurva, no léxico do esperanto. Porém, após alguns anos, Zamenhof percebeu seu engano: em 1896, quando propôs algumas revisões na língua, mudou a ortografia para kurva, mas a proposta fracassou, e kurba permaneceu.
Como lidar com homofonias de baixo calão em esperanto
Zamenhof não tinha como fazer com que nenhum morfema de sua língua soasse como uma palavra de baixo calão de outra língua. Para mostrar como é inútil tentar livrar o esperanto de todas as palavras ofensivas possíveis, vejamos dois exemplos que às vezes fazem os hispanófonos protestarem: kulo [mosquito] e puto [poço, cisterna], que têm a mesma pronúncia das palavras espanholas culo (bunda, cu) e puto (prostituta, homossexual). Em sua Clave de Esperanto (Chave de Esperanto), editada no México em 1968, Alberto Gómez Cruz muda kulo e puto respectivamente por kuslo e pulto.
Só existe uma resposta aos que querem modificar o léxico do esperanto para evitar a semelhança com palavras de baixo calão das línguas étnicas: se as palavras são ofensivas nessas línguas, elas é que devem ser modificadas, e não o esperanto, onde não o são, por isso ele deve ser deixado em paz.
Notas do tradutor
(clique no número pra voltar ao texto)
(1) O autor simplesmente traduz a palavra como “égua”, quando na verdade, segundo os dicionários, cavale é uma forma literária ou poética de jument, que é mais corrente.
(2) Primeiro Livro (em esperanto, Unua Libro): referência ao primeiro manual de esperanto que Zamenhof publicou em 1887, em língua russa.
(3) No original em esperanto: «gaje ekpepis: “Aĥ, suko, bona suko, poma suko, suko, suko, suko... suko, aĥ, kia suko”».
(4) A referência é às Lingvaj Respondoj (Respostas Linguísticas), uma coletânea de perguntas sobre vários aspectos do esperanto que eram feitas a Zamenhof e respondidas por escrito em diversas revistas.
(5) A terminação -i dos verbos em esperanto corresponde ao -ar, -er, -ir e -ôr (verbo “pôr”) do nosso infinitivo. A terminação -as indica tempo presente e é usada pra todas as pessoas (“eu”, “tu”, “ele” etc.).
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