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Introdução - A luta atual entre religião e antirreligião - O dogmatismo da religião - O dogmatismo da antirreligião - A experiência erótico-estética - Irreligião e laicismo - O vir a ser da irreligião - Da diferença entre laicidade e laicismo - A importância do Estado laico - É possível haver sociedade laica? - A questão religiosa na luta política - Considerações finais
Se o século 19 foi marcado pela oposição entre monarquismo e republicanismo, e se o século 20 destacou-se pela contenda entre capitalismo e comunismo, os conflitos do século 21, nascido de fato dos atentados de 11 de setembro de 2001, imbuem-se de uma linguagem absolutamente religiosa (no sentido de referir-se às religiões). Os motivos centrais podem até ser políticos e econômicos, mas o uso da religião como pano de fundo cultural não pode ser desprezado, e isso parece implicar na criação de novos paradigmas para a explicação das relações entre grandes ou pequenos grupos humanos. A nível global, a civilização judaico-cristã, dita livre e diversa, embate-se com o mundo muçulmano, tendente ao centralismo e à uniformização. Dentro do mundo ocidentalizado, coletivos antirreligiosos denunciam toda crença institucionalizada como perniciosa e causadora de conflitos, além de sublinhar frequentes conúbios entre cristianismo e Estado.
No caso da luta atual entre religião e antirreligião, não se pode dizer que ela se dá uniformemente em todos os lugares ou nas penas de cada um de seus próceres. O que se sabe é que mostra ser uma consequência direta dos choques entre os progressos sociais, éticos, tecnológicos e científicos obtidos numa esfera laica e a moral e os preceitos atávicos e fixistas das grandes religiões monoteístas, sobretudo os cristianismos e os islãs. Líderes religiosos proeminentes pelejam contra o que, sob a “máscara” do progresso e do bem-estar, dizem ser atentados à “ordem”, à “família”, à “lei natural de Deus”, à “propriedade” e à “vida humana”. Por seu turno, entidades secularistas, ateístas ou não, cujos intelectuais orgânicos mais destacados representam-se sob o atribuído título de “novos ateus”, fazem face aos primeiros, depreciando o pensamento religioso e seus “obstáculos” à modernidade como “dogmáticos”, “atrasados”, “genocidas”, “anti-intelectuais” e “irracionais”.
Nessa batalha, não há mocinhos e bandidos, e cada lado, junto a seus motivos sócio-culturais, guarda seus vícios conceituais e compromissos com interesses ocultos. No caso dos religiosos, eles acertam em considerar-se uma força de coesão social e um aparelho privado de hegemonia que defende interesses coletivos contra os abusos e falhas das camadas dominantes. Porém, como parte de um status quo organicamente formado juntamente com o mesmo Estado e o capitalismo, não podem ser mais do que uma “oposição doméstica” a seus dois companheiros, atuando, assim, como elemento ideológico de conservação da submissão operária e pauperista. Tal poder atua por meio da sonegação do conhecimento em troca da crença em mitos consoladores e lega, a longo prazo, uma sociedade atrasada e ‒ exigindo a crença cega no lugar da investigação ‒ sem o ideal da curiosidade, do debate, da tolerância e da rejeição do erro.
Quem pensa que os antirreligiosos são o ápice de toda a inteligência e sabedoria verdadeiras não deve iludir-se. Obviamente a luta contra o preconceito aos ateus no mundo ocidentalizado atingiu uma dimensão jamais vista, obteve bons resultados e ofereceu uma alternativa nova de pensamento às pessoas bitoladas pela religião. Contudo, os escritos mais militantes, devedores do ideal positivista que hoje retorna sorrateiramente às ciências, demonstram reducionismos extremos, e não são raros aqueles que pensam poder analisar o fenômeno religioso com o mesmo instrumental das Ciências Exatas; como fenômeno humano, na verdade, é cheio de contradições, exceções e matizações dependentes do espaço e do tempo. Os movimentos brasileiros, decalcando problemáticas e fórmulas do estrangeiro, não enxergam as particularidades da religião na América Latina e caracterizam-se pela considerável debilidade e ausência de criatividade na produção teórica. (1)
Na detração das religiões instituídas, além do maniqueísmo e da desconsideração de várias faces de sua história, esquece-se, com raras exceções, da “experiência religiosa” pura e informal. Não é o caso de olvidar, claro, que ela em geral é condicionada biológica, histórica e culturalmente, em sua intensidade, provocadores e duração. Todavia, deve-se ressaltar que sua natureza é erótico-estética, ou seja, tem a ver com os mais simples prazeres e fruições: pode aparecer no coito, no uso de drogas, na meditação, na contemplação da natureza e no consumo de obras artísticas. É a transcendência do real, a fuga momentânea da necessidade de explicá-lo, um sentimento que prescinde de explicação verbal. O adjetivo “religiosa” parece inapropriado, pois remete às religiões instituídas (talvez uma redundância), que podem gerar belas experiências estéticas, mas têm um regulamento de vida que impede de se levá-las além de certos limites.
Quando se toma, entretanto, a religião como objeto de um estudo materialista, não são seus efeitos neurais o foco principal (ao menos em se tratando de Ciências Humanas, e não Médicas); procuram-se suas consequências na vida das pessoas, na cultura dos povos, na circulação econômica e na produção científica e tecnológica. Deste modo, é tomada como um condicionado da produção material do local e época em que aparece ou é praticada, pela análise de seus adornos, templos, idiomas litúrgicos, consumos alimentares ritualísticos etc. Isso é que deve ser tomado em conta quando se fala de irreligião e laicismo: a religião como uma instituição organizada e complexa, com ramificações em todo o corpo social e que, embora se considere monopolizadora da verdade e do modo de atingir-se uma experiência espiritual, é passível de estudo, crítica e até mesmo refutação, perdendo sua cadeira cativa no mundo ocidentalizado contemporâneo.
Num mundo que prescinde das explicações religiosas, o pensamento irreligioso ganha qualidade, força e fertilidade. Tudo o que foge daquelas pode abrigar-se sob a sombra deste: o ateísmo, o agnosticismo, o teísmo livre, o não teísmo e qualquer discurso a respeito do sobrenatural sem institucionalização ou codificação dogmática. Não obstante, certas formas desse pensamento, como o chamado “novo ateísmo”, especialmente nas suas vulgarizações brasileiras, ainda são reféns do condicionamento hermetista e da criação de ídolos e hierarquias e padecem de generalização e falta de ação e consciência políticas. (2) Não havendo pensamento irreligioso puro (o purismo é típico da religião), é difícil defini-lo, mas pode-se atribuir-lhe uma visão dialética da realidade, uma extrema crítica dos imperativos categóricos, a estima pela liberdade de consciência individual e o uso do saber para transformações sociais radicais ‒ e não apenas a mitigação das mazelas.
Mas a realidade é outra: nem todos querem abandonar a religião, e por isso os conflitos gerados pelas diferenças persistem. Como remédio parcial, criou-se a doutrina do laicismo para as esferas públicas, em especial o Estado, ou seja, essas entidades não estariam ligadas organicamente a nenhuma Igreja nem professariam ou apoiariam qualquer doutrina religiosa; igualmente, sequer as perseguiriam, enfim, deveria haver neutralidade nessa matéria. Podemos facilmente estender essa restrição a outras ideologias e filosofias particulares; o que interessa é o resultado igual, a laicidade, a aplicação prática da doutrina laicista, a “qualidade de laico ou leigo” (Dicionário Aurélio). Assim, diz-se que, conforme o “laicismo”, promove-se a “laicidade” das esferas públicas; não tem fundamento semântico a distinção que os católicos fazem entre a laicidade “positiva”, “diversa”, “tolerante” e o laicismo “negativo”, “totalitário”, “intolerante”. (3)
Todo Estado livre e democrático contemporâneo deve ser laico (professar o laicismo e praticar a laicidade), pois o apoio oficial a qualquer ideologia pode gerar privilégios que caminhem à criação de grupos beneficiados, majoritários ou não, e à tirania destes sobre os demais. Por ser livre e democrática, a sociedade deve dar direitos, oportunidades e deveres iguais a todos. E isso não se traduz necessariamente na retirada de símbolos religiosos das repartições públicas (fruto, aliás, da tradição cultural, da qual falarei adiante) ou da extinção de capelas de hospitais ou quartéis (embora o serviço religioso seja uma forma de privilégio): os antirreligiosos terminam por dar o mesmo valor sobrenatural aos objetos do que dão os crentes. Trata-se de criar hábitos de conhecimento pluralizado, de tolerância, de paridade, de respeito mútuo e de evitação de prerrogativas, o mesmo valendo para negros, homoafetivos e outros grupos historicamente oprimidos.
Algo importante deve ser lembrado: certas definições de “laicismo” e “laicidade” abrangem também a cultura e a sociedade em geral, e não apenas o Estado e outras instituições públicas. Mas creio ser isso quase impossível, pois as religiões fazem parte do imaginário e da tradição popular, dizendo respeito a formas de vida inalienáveis em países declaradamente livres e democráticos. Como forma de linguagem, identidade e arte, e não como instrumento de controle de uma minoria sobre o restante da população nem como forma de intrusão de esferas privadas no meio público, as religiões são um patrimônio da humanidade, e só poderiam extinguir-se se a educação fosse completamente permeada por valores científicos e racionais. (4) Contudo, a extinção de um mito sempre leva à criação de outro, devido à necessidade humana da transcendência, e mesmo que o velho perca valor, seu estudo constitui útil ferramenta antropológica.
Um último problema veio à tona, aparentemente com mais força, nas eleições presidenciais brasileiras de 2010. Se nossa sociedade não é laica, então a “competência religiosa” é mais um fator que o eleitor busca no candidato para lhe conceder sua confiança, já que, no senso comum, a religião é a fonte mais segura da moralidade. Pensando nisso, os contendores, mesmo não imbuídos de qualquer sinceridade, usam e abusam do nome de Deus, de referências aos Evangelhos e de apelos à “família”, à “ordem” e à “moral”, tudo para afastar o infame rótulo de “ateu/ateia”. Nada mais teatral: a maioria dos políticos até hoje foi e é religiosa, e somos ainda famosos pela onipresença da corrupção e do autoritarismo; a religião torna-se um escape para expiar os “pecados” terrenos. Só não mais se precisarão de máscaras quando os valores culturais mudarem em prol da honestidade, da solidariedade e do senso de coletividade desinteressados.
A ciência, em seu atual estágio, dispensou as explicações mágicas, sobrenaturais e divinas. Contudo, as sociedades são bem mais complexas do que se fossem constituídas apenas por elementos traçados em laboratório: sentimentos, gostos, emoções, impulsos e paixões parecem escorregar dos tubos de ensaio e calculadoras. Em contrapartida, isso não garante que as religiões permaneçam com a mesma deferência de milênios atrás, e faz com que, em um mundo estressado, bélico e poluído, elas devam retornar à sua função original para sobreviverem: consolar e unir as pessoas, e não formatá-las e desuni-las. O laicismo ameniza os conflitos, mas a irreligião, como campo alternativo, e não substitutivo, é o campo mais fértil em que pode florescer, em toda a sua pluralidade, o pensamento crítico, transformador, pacifista, revolucionário e honesto que renovará a mente e o coração dos seres humanos.
Notas de 2013
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(1) Nos mais de dois anos que se passaram desde a primeira publicação deste texto, ocorreram no Brasil diversas polêmicas relativas aos abusos das religiões e ao preconceito contra irreligiosos, grupos minoritários e pessoas de outras crenças, o que motivou reflexões interessantes no seio de entidades secularistas então surgidas, como a Sociedade Racionalista e a Liga Humanista Secular do Brasil, entre outras que agora me fogem à mente. A tudo isso devemos um salto na qualidade e na produtividade do debate ‒ ampliado ainda mais com a popularização de redes sociais mais modernas ‒, especialmente entre jovens que se conscientizam dos problemas sociais cada vez mais cedo.
(2) Mesmas observações da nota 1, ressaltando-se ainda que a questão da hierarquia referia-se a problemas disciplinares e internos de que padecia a ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos) em seus primeiros tempos, havendo agora, com a criação de novas iniciativas presenciais e online não centradas exclusivamente no ateísmo ‒ e muito menos na cópia dos modelos importados do mundo anglo-saxão ‒, experiências bastante democráticas e coletivizadas de discussões, gestão humana e organização de eventos.
(3) Ao falar da distinção entre “laicidade” e “laicismo”, referia-me especialmente aos escritos do apologista católico Felipe Aquino, da Canção Nova, e do jurista católico Ives Gandra Martins, com os quais tinha mais contato naquele momento. Obviamente eles legislam em causa própria, e escondem sob o rótulo de “laicidade” a manutenção dos resquícios de influência católica sobre o Estado brasileiro. Hoje não percebo o debate como exterior a esse meio, e parece ausente entre os evangélicos, os quais, certamente, não pensam em qualquer tipo de separação, aproveitando o aumento da influência sobre as decisões políticas que seu crescimento numérico e financeiro tem proporcionado. Lembre-se que o rebanho católico reduz-se a cada ano, e que é nesse contexto da perda de seu poder, apenas nele, que lhe interessa alguma separação entre religião e Estado, na perspectiva de que uma virada demográfica possa transformar seu papel histórico de perseguidores em condição de perseguidos. Por um acaso acabei de achar este texto português de Palmira F. Silva, “Laicidade e laicismo”, que ratifica minha definição, baseando-se numa análise de caso.
(4) Parece que aqui cometo uma incoerência, ou uma confusão conceitual: qual seria a desvantagem da educação e do ensino serem permeados por valores científicos e racionais? Não seria justamente o instrumento mais eficaz contra a confusão religiosa das massas? Ora, talvez eu quisesse dizer que o ser humano não pode ser comparado a uma máquina, que funciona apenas com base em lógica e dados, mas que também tem a necessidade de pensar além de sua realidade, de experimentar novas sensações extáticas para alcançar a satisfação e a felicidade (a “experiência erótico-estética” que citei acima). Em seu livro Como vejo o mundo, Albert Einstein tem uma frase que passa ideia semelhante: “Os resultados da pesquisa não exaltam nem apaixonam. Mas o esforço tenaz para compreender e o trabalho intelectual para receber e para traduzir transformam o homem.”
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