sexta-feira, 6 de setembro de 2019

A identidade nagô e iorubá (rascunho)


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Com esta postagem, estou continuando a publicação de trabalhos de mestrado e doutorado meus, entregues no final de cada matéria cursada. São textos importantes, pois não publiquei nenhum ainda aqui no blog, e consistem nas minhas formas mais elaboradas e avançadas de textos acadêmicos antes que eu defenda minha tese. Eles me levaram a pensar minha própria pesquisa ou matriz teórica, relacionando os autores lidos em cada semestre com meu objeto de investigação. Uns dois meses antes do texto anterior, que foi o trabalho final definitivo, escrevi um projeto prévio a pedido do Aldair, procedimento muito didático adotado também por outros professores do IFCH, na graduação e na pós. O rascunho se chama Língua e tradutibilidade: o papel dos idiomas africanos na história material da África e em suas relações com a Europa colonial, e originalmente previa uma abordagem de mais povos, mais línguas e mais regiões da África, num espaço de tempo maior, e não apenas dos iorubás, como acabei me limitando. Porém, mesmo reduzindo o escopo da pesquisa, mantive o exercício analítico original e as mesmas matrizes teóricas.

Todo idioma é fruto da interação entre as capacidades e limitações comunicativas de um determinado grupo humano e a realidade material, natural e social que ele encontra diante de si e que deve circunscrever dentro de certas categorias explicativas e expositivas, para melhor dominá-la e manejá-la. (1) A habilidade de nomear e classificar as coisas, no imaginário dos povos, está relacionada à capacidade de controlar e transformar, num sentido antropocêntrico, o mundo a seu redor: no relato bíblico sobre a criação da Terra (Gênesis, cap. 2), a primeira missão que Deus dá a Adão, homem feito “à nossa imagem e semelhança” para que “domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra” (Gn 1, 26), é justamente a de dar nomes a esses novos seres. Como que exercendo diretamente um mandato divino para reger o planeta, o lendário primeiro homem foi apresentado a “todas as feras e todas as aves do céu” para que Deus visse “com que nome ele as chamaria: cada ser vivo levaria o nome que o homem lhe desse. O homem deu então nome a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras” (Gn 2, 19-20). (2) Não se devem confundir aqui os conceitos de linguagem, que indica determinado meio de expressão de ideias ou sentimentos, nem sempre racional (linguagem de sinais, linguagem das cores, linguagem gestual, linguagem musical, linguagem onomatopeica, de gritos etc.), e de língua ou idioma (estritamente, a linguagem falada e escrita), códigos padronizados, presumidamente racionais e que exigem um seguimento linear. (3) Em todo caso, como se percebe, a impressão de haver uma origem divina em algo que no passado parecia tão inextricável ilustra uma tendência analítica que começaria a desfazer-se apenas no início da Modernidade, com a dessacralização do núcleo que constituiria as futuras ciências.

Um idioma, ao contrário do que se pensaria numa conceituação estritamente positivista da linguagem, não é o reflexo da empiria ou do meio a ser classificado, em que cada coisa ou fenômeno só estaria aguardando uma palavra para distingui-lo; pelo contrário, é uma espécie de mediação em que concorrem os sentimentos, convicções e vivências de um emissor, já inexprimíveis de forma límpida por ele, e o entendimento de um receptor com sentimentos, convicções e vivências muito diferentes, por vezes de natureza oposta ou conflitante. A língua, pois, não se assemelha a um conjunto imutável de códigos escritos e falados que podem comportar cada expressão de uma ideia pessoal ou grupal, mas antes a um campo em que mensagem, instrumento e codificação estão em interação e concessões constantes, de modo a formar um todo conceitual válido apenas num determinado recorte temporal e espacial e que se pode chamar de comunicação. (4) Em outras palavras, por mais que um idioma possa ser sistematizado e padronizado até certo grau (desde as iniciativas de reconstruir línguas nacionais nos novos Estados-nação do século 20 até, por exemplo, as conhecidas “gramáticas do português falado”), ele sempre estará sujeito à “deturpação” da parte de quem o usa (com influências da fisiologia, da psicologia, do humor, da condição social, da instrução e dos textos com que teve contato), à limitação do próprio código linguístico (que não esgota todos os fenômenos da natureza, da sociedade e do pensamento, muito pelo contrário, limita-os e pode até mesmo os enquadrar) e à “peneira” ou “filtro” de quem procura entender a mensagem (formado pelos mesmos fatores citados, mas sempre com modelamentos discrepantes). Com tudo isso em conta, poderia ser dito inclusive que o ruído, como é definido pela linguística, não consiste em empecilho à comunicação, mas consiste na própria comunicação como espaço de disputas, trocas e (auto)definições. (5)

Não há a rigor uma “teoria materialista da tradução”, sequer de cariz marxista, por mais que não tenham sido poucas as tentativas de pensar a comunicação e a linguagem com base em afirmações pinçadas de Karl Marx e Friedrich Engels. Porém, entendendo-se que a produção material e a elaboração ideológica, como afirmam seus melhores continuadores no século 20, não estão nem separadas nem opostas, e muito menos prevalece uma sobre a outra, e sim interagem e interpenetram-se dialeticamente, uma ganhando ou perdendo sucessivamente algo de outra, é fácil concluir como as mais recentes reflexões sobre a tradução têm coisas a dizer sobre as trocas humanas e a construção e compartilhamento de símbolos e significados. Dizer que poderia ser feita uma “teoria materialista/marxista da tradução” implica considerar que certos autores demiurgos, julgados detentores iluminados da verdade, sempre teriam algo a comentar sobre os mais distintos aspectos da vida, o que resulta no máximo em interpretações parciais e de aplicação restrita, dadas por quem, em última instância, é o dono subjetivo dessas ideias. Se a língua é uma questão de cultura, e se a cultura, apesar de sua relativa autonomia, é uma questão de como dada sociedade produz e se reproduz, não é preciso compartimentar nada, ao modo dos primeiros comtianos; as próprias explicações sobre a economia, a política e a sociedade mostram amplamente como as pessoas se comunicam, como descrevem certas realidades e como as palavras, frases, expressões e sotaques mudam ao sabor da história. A língua também é história, tem história e está na história; e se os ruídos produzem o fascinante dinamismo da comunicação, o motor da evolução humana consiste naquilo que falta, que não se entende, que emerge de repente e que se presta à releitura, mas nunca à cópia, isto é, as sociedades, das “primitivas” às “civilizadas”, das dominantes às dominadas, constroem a história nos interstícios. (6)

Minha proposta de trabalho consiste em analisar a maior parte dos textos lidos durante a disciplina num aspecto que me chamou a atenção e estava quase sempre ausente em outras disciplinas cursadas na pós-graduação: a compreensão da lógica dos idiomas africanos como ferramenta central e importante no estudo das dinâmicas econômicas, culturais, religiosas e políticas locais, bem como nas relações destas com o mundo europeu e americano; mais do que isso, os usos, mudanças e fenomenologias linguísticas como um meio de resolver indiretamente, sobre tais sociedades, questões que outros resquícios materiais não suprem ou suprem incompletamente. Indiretamente, ressalto, porque nenhum atributo civilizatório pode ser estudado isoladamente, sem relação com outros, mesmo que aparentemente sejam de naturezas muito distintas e incompatíveis. Vários estudiosos da África nos séculos 15 a 19, bem como do tráfico escravista atlântico e de seus impactos culturais na América colonial, apoiaram-se nos idiomas nativos e nas transformações que eles sofriam em outros continentes para ilustrar as dinâmicas decorrentes de intercâmbios, opressões e concessões, mesmo que esses autores não dominassem ativa ou passivamente as línguas em questão; e quando as dominavam, a imprescindibilidade de seus trabalhos era inegável. (7) A assimilação e padronização dos idiomas nativos sempre foi igualmente uma das fases que escorou a empresa colonial, como prova, por exemplo, a sistematização e alfabetização do tupi como língua geral pelos jesuítas na costa litorânea brasileira. Mesmo que os idiomas europeus terminassem predominando nas relações diplomáticas, técnicas e científicas, por vezes servindo de interlínguas entre os diversos dialetos africanos, a introdução de alfabetos, gramáticas e manuais das línguas africanas por obra de literatos ocidentais, não raro membros de missões cristãs, serviu como uma ferramenta de controle sob a máscara de uma ação benéfica ou “perpetuadora” desses falares. Sem contar, claro, no monumento cultural constituído pelos idiomas crioulos e pelas influências e aportes do linguajar negro sobre as línguas indo-europeias nos dois lados do Atlântico.

Inicialmente, minha intenção é trabalhar com dois idiomas ou grupos principais de línguas e/ou dialetos, que são o iorubá, falado em grande parte da atual Nigéria, e o mbundu, originário do território atual de Angola, ambos pertencentes à grande família linguística nígero-congolesa, mas localizados em ramificações diferentes. Esses conjuntos foram os mais abordados nos textos lidos para as aulas, possuem ampla documentação escrita neles e sobre eles, e ainda conservam vastas populações falantes, além de se relacionarem a duas importantes realidades históricas muito relacionadas ao Brasil colonial, bem como sua herança que persiste até hoje: respectivamente, o Império de Ọ̀yọ́ e o Reino de Angola, posteriormente África Ocidental Portuguesa. A depender da massa de material acumulado, vou restringir-me apenas ao mundo de fala iorubá, já suficientemente dinâmico, bem documentado e com maior literatura linguística. Além disso, a estrutura política e a vida social do referido império são complexas o bastante para que possam ser amplamente analisados o papel da língua nas relações materiais e a influência que o iorubá teve nas práticas religiosas e no vocabulário do português brasileiro. Tal ligação com a América portuguesa não pode ser entendida sem a história do tráfico negreiro, portanto ele também constituirá cenário privilegiado para se saber como funcionava e se transformava o idioma nos mais diversos tipos de intercâmbio. Os artigos e livros, lidos durante o curso, sobre o Império de Ọ̀yọ́, o tráfico negreiro vindo dessa região, a formação do candomblé no Brasil e a progressiva conversão da África Ocidental em espaço colonial europeu servirão de base para a pesquisa, que contará também com o aporte teórico de alguma literatura sobre tradução e linguística histórica (cf. bibliografia abaixo) e com manuais e outros materiais que forem encontrados sobre a língua iorubá em bibliotecas e na internet.


Bibliografia preliminar

CARR, Edward Hallett. Que é história? Tradução de Lúcia Maurício de Alverga. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

ESTEVES, Lenita; VERAS, Viviane (Orgs.). Vozes da tradução: éticas do traduzir. São Paulo: Humanitas, 2014.

ESTEVES, Lenita Maria Rimoli. Atos de tradução: éticas, intervenções, mediações. São Paulo: Humanitas: FAPESP, 2014.

FARACO, Carlos Alberto. Lingüística histórica: uma introdução ao estudo da história das línguas. São Paulo: Parábola, 2005.

HOBSBAWM, Eric. Sobre história: Ensaios. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

MOREJÓN, Julio G. Garcia. Civilização versus cultura: o dilema do nosso tempo. Tradução & Comunicação, São Paulo, v. 1, n. 1, pp. 40-46, dez. 1981.

PAES, José Paulo. Tradução: a ponte necessária: aspectos e problemas da arte de traduzir. São Paulo: Ática: Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

PYM, Anthony. Explorando as teorias da tradução. Tradução de Rodrigo Borges de Faveri, Claudia Borges de Faveri e Juliana Steil. São Paulo: Prespectiva, 2017.

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Notas (clique no número pra voltar ao texto)

(1) Uma prova de que a linguagem é condicionada por vivências ambientais e consenso em torno de como codificá-las: na língua guarani, emprega-se apenas uma palavra (ka’aguy) para as ideias de “vegetal ou plantas em geral”, “bosque”, “monte” ou “selva”, bem como um só vocábulo (tovy) para as cores azul e verde. A visão holística que os indígenas tinham da natureza, assim como a geografia física de toda a latitude sul-americana que abrange o território original dos falantes dessa língua, talvez explique essa fusão de conceitos. Cf. P. Antonio GUASCH, S. I., El idioma guaraní: gramática y antología de prosa y verso, 6. ed. refundida y acrecentada, Asunción, Loyola, 1983, p. 40; Mário Arnaud SAMPAIO, Vocabulário guarani-português, Porto Alegre, L&PM, 1986, pp. 79 e 167.

(2) As citações são retiradas da Bíblia Sagrada: edição pastoral, São Paulo, Sociedade Bíblica Católica Internacional e Edições Paulinas, 1990, pp. 15-16.

(3) Ou, como classifica Ferdinand de Saussure em seu célebre Cours de linguistique générale, a língua abarca aquilo que é social e essencial, enquanto a linguagem (ou “palavra”) concerne ao domínio do individual e do acessório e relativamente acidental. Apud Jânio QUADROS et al., Curso prático da língua portuguesa e sua literatura, v. 1, [São Paulo], [Formar], [1966], pp. 24-25.

(4) Não por acaso, o substantivo latino munus, que está na origem do verbo communico, entre seus vários sentidos, tem os de “dever”, “função”, “obrigação perante regras estabelecidas”, “serviço prestado”, “presente” e “dom”. Cf. “Communico”. In: Wiktionary, the free dictionary. Disponível nesta página. Acesso em: 22 out. 2017; “Communis”. In: Ibid. Disponível nesta página. Acesso em: 22 out. 2017; “Munus”. In: Wiktionnaire, le dictionnaire libre. Disponível nesta página. Acesso em: 22 out. 2017.

(5) Isso refuta de antemão concepções como as de J. C. Catford e E. Nida, que entendem a tradução como “transferência” ou “substituição” de significados. Ou seja, tal qual um trem de carga, do qual o tradutor é mero maquinista, a mercadoria é alocada de modos vários nos vagões, desde que chegue “intacta” ao destino. Apud Rosemary ARROJO, Oficina de tradução: a teoria na prática, 5. ed., São Paulo, Ática, 2007. Como a autora, adoto e pratico a ideia de que o foco da tradução não é a língua em si, mas a mensagem geral, que deve ser reconstruída conforme o público, os objetivos, o suporte e outros fatores.

(6) Para sustentar essas hipóteses, apoio-me essencialmente em Eric HOBSBAWM, O sentido do passado. In: Sobre história: ensaios, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp. 22-35; Aleida ASSMANN, Memória funcional e memória cumulativa – Dois modos da recordação. In: Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2011, pp. 143-160.

(7) É o caso, por exemplo, de Walter Hawthorne, que aprendeu “graça”, a línguas dos balantas, para estudar a produção de arroz desse povo na Guiné-Bissau e regiões adjacentes. Cf. Nourishing a Stateless Society during the Slave Trade: The Rise of Balanta Paddy-Rice, The Journal of African History, v. 42, n. 1, 2001, pp. 1-24. Para as(os) historiadoras(es) não lusófonas(os) da África e América portuguesas, aprender português talvez seja um desafio adicional, pois esse idioma, embora muito falado no mundo, não tem um status de língua internacional, enquanto estudiosas(os) do Brasil e Portugal, por exemplo, em geral já contam com precoce aprendizado do inglês, francês ou espanhol, em graus variados.