segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Passar pano ao Hamas ajuda causa?


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Ontem cheguei a escrever um texto em tom de desabafo, acusando certos perfis do Instagram de apologia do terrorismo e instando o leitor a denunciá-los com as ferramentas oferecidas pela rede, e até o tinha programado pra sair hoje de manhã. Porém, com medo de sofrer um processo judicial por possíveis acusações infundadas e pensando se muitas das reflexões históricas que fiz não seriam puro achismo (de fato, assisti a alguns vídeos de “defensores” esquerdistas dos palestinos que, contudo, trouxeram informações interessantes), preferi não emitir nenhuma opinião apaixonada sobre o assunto, em nenhuma rede, exceto ocasionais afirmações cômicas ou amostras da incoerência de certas partes.

Ocorre que hoje, quando xeretei a aba Comunidade do canal do Jones Manoel, vi um anúncio seu de que hoje sairia um vídeo sobre a questão (gente, comunista realmente entende de tudo, de arqueologia egípcia a astrofísica quântica!) às 17h, e um dos comentários, muito longo (um “textão”, de fato), me chamou a atenção. Nem vou ver o vídeo, porque já sei que é “mais do mesmo” do pessoal que se diz “marxista-leninista” e porque tenho muito mais informação jornalística séria, em várias línguas, pra consumir. Mas pra suprir a falta de um posicionamento meu, me permito reproduzir ipsis litteris o textão da conta assinada como Marina Reis, que parece ter lido exatamente meu pensamento, e uma resposta mais curta que fiz. Sou responsável por ocasionais alterações na forma da intervenção da moça.


Dixit Ioannes:

Em matéria de política internacional, três temas separam quem tem compromisso real com a emancipação humana e quem no fundo não quer mudar o mundo:

– apoio irrestrito à luta palestina;
– condenar o bloqueio contra Cuba;
– ser contra todas as sanções e bloqueios dos EUA.

Quem vacila em qualquer um desses temas, cedo ou tarde, vai se mostrar um gestor da ordem burguesa, seja indivíduo, seja uma organização política.


Não vou entrar no mérito do reducionismo abissal de uma pessoa cuja mãe lhe deu um sobrenome como prenome: há dezenas de “povos sem país” que parecem não entrar no metro do Senhor das Esquerdas, Cuba é uma ditadura, e os EUA não são o único “mounstro malvadaum” do planeta. Segue o poema em prosa, que sinceramente me tocou:

Eu observei quando a guerra na Ucrânia começou, como parte da esquerda fez questão de dizer algo como: “É claro que a guerra atinge principalmente os ucranianos e nem precisamos dizer que somos contra guerra no geral, mas... deixando a questão moral de lado, é importante apontar a participação das potências ocidentais e do próprio governo ucraniano na deflagração do conflito. Se o povo ucraniano sofre hoje é porque o seu governo subestimou a Rússia, o seu poder militar, e a defesa do seu território e interesses, o que é, inclusive, o que os EUA fazem o tempo inteiro sem protestos das mesmas pessoas que agora choram pela Ucrânia.”

Estou apontando isso, porque, por óbvio, depois de o Hamas matar e sequestrar centenas de pessoas em consequência, sim, da opressão sistemática e inaceitável do povo palestino, mas matar e sequestrar centenas de pessoas reforçando a pecha de terrorista, o que vai acontecer?

Eles mataram e sequestraram civis. “Ahh, mas estamos falando de pessoas em assentamentos, não de qualquer civil.” Civis. Não são soldados, não são pessoas armadas e treinadas, prontas para o combate. Civis. Centenas de civis. [Acrescento: e nem colonos eram!]

Incluindo pessoas que estavam em uma rave e estrangeiros que desapareceram, entre eles um brasileiro.

Agora, pra surpresa de ninguém, a comunidade internacional que já era indiferente ao sofrimento palestino parece pronta para dar um passo ainda mais tenebroso e ignorar o genocídio que vai piorar.

Eu abri meu celular hoje de manhã e vi comandantes israelenses falando que “não tem água, não tem comida, não tem eletricidade, não tem combustível”. Eles estão intensificando o bloqueio. A situação das instalações médicas do povo de Gaza já era periclitante e está piorando.

Vai ser um massacre. Dá desespero.

E pior, metade das vozes que estão se levantando contra isso são de antissemitas mal disfarçados, reduzindo [eu diria: anulando] a legitimidade dos apelos humanitários.

Isso não significa que os ataques foram não-provocados como a mídia tenta pintar, mas me poupem desses discursos de que apoiar a atuação do Hamas é belo e moral, como se as ações do grupo fossem apenas estratégicas e em favor do povo palestino e quem não apoia “não quer mudar o mundo”.

Apoio à luta palestina e ao povo palestino não é apoio irrestrito à luta palestina, incluindo a atuação do Hamas. Nem de um ponto de vista estratégico, nem de um ponto de vista ético.

Os comandantes do Hamas, incluindo Yahya al-Sinwar, que ficou preso décadas, e Mohammed Deif, que perdeu mulher e filhos bebês no conflito, não estão simplesmente atuando em favor dos interesses do seu povo, prestes a ser massacrado. Existe um componente de vingança forte provocado pelo próprio Estado israelense, e como esses dois comandantes a gente vê que logo outros vão aparecer nesse ciclo sem fim, porque é isso que todas essas mortes vão provocar.

Eu não tenho soluções, e a minha solidariedade está com todo o povo que sofre nesse momento, inclusive os israelenses que perderam seus amigos e familiares e não devem ser desumanizados na defesa dos palestinos e da sua justíssima luta. Deve ser porque eu não quero mudar o mundo.


Minha resposta que provavelmente ela nem vai ler:

Bravo, tirou as palavras da minha boca! Gosto do trabalho militante do Jones, mas às vezes ele recai nesses simplismos típicos da antiga esquerda soviética que, infelizmente, ainda predomina no Brasil. Eu, por exemplo, me identifico com bandeiras sociais e identitárias ditas “de esquerda”, mas também com pautas econômicas e estruturais chamadas “de direita”, não dá pra ver o mundo de forma binária! E como descendente de ucranianos, me enoja que tudo o que se opõe aos interesses dos EUA, só por essa razão, deva ser automaticamente apoiado por quem se diz “de esquerda”, das piores ditaduras às mais cruéis carnificinas, passando por obscurantismo religioso (valei-me, Marx!) e negacionismo histórico. Parte da nossa “ex-querda” ainda vê a Rússia e enxerga a URSS, vê Putin e enxerga Lenin, Stalin, o que valha.

Infelizmente, como viajamos pouco pro exterior, falamos poucas línguas e temos o hábito de chamar de “imperialista” ou “burguês” tudo o que venha de fora, nossos movimentos sociais, no que toca a geopolítica, ficam reféns de narrativas malfeitas e totalmente enviesadas; praticamente o Grupo Globo ao avesso. Não duvido que tenha grana estrangeira rolando por aqui, mas é incrível como certos “cartunistas” enxergam tão fácil os abusos de Israel, mas se recusam a ver o caráter expansionista, genocida e ilegal da agressão de Putin; e não só na Ucrânia (onde eles racionalizam com essa história de “colônia ou proxy da OTAN”), mas também nos Bálticos, na Moldova, na Geórgia e agora, certamente, na Armênia. Ou seja, praticamente uma recriação do Império Tsarista que as esquerdas tanto criticam! E acabam, assim como as potências capitalistas, criando critérios próprios e subjetivos sobre quem “pode” e quem “não pode” ser considerado país ou povo...

Enfim, é só um lapso intelectual que quero apontar, não estou falando de lados nem de culpas, obrigado por esse alívio na minha segunda!

Porém, conforme umas xeretadas que dei em contas “pró-Palestina”, é incrível como a narrativa, além do cinismo, evoluíram a passos largos nesse comecinho de semana, rs: