Há muitos anos sou tradutor voluntário pra versão em português do portal Marxists.org, cujos administradores me deram em 2011-12 as primeiras oportunidades de ter minhas traduções do russo (Lenin, Stalin, Trotsky) divulgadas pra um público mais amplo, embora eu só tenha contribuído com uma gota naquele oceano de pesquisa e informação. Por mais que não sejamos leninistas, nem sequer marxistas, hoje o site, que existe em dezenas de línguas, é incontornável pra qualquer pesquisa no tema, sobretudo por ter muitas raridades fora de circulação e que alguns voluntários também digitalizaram e converteram pro formato HTML.
Ultimamente, após anos dedicados ao mestrado e ao doutorado em História Social, lhes escrevi afirmando abertamente que gostaria de voltar a contribuir no tempo livre que me sobrar, e nesse ínterim recebi a seguinte circular que achei necessária divulgar publicamente na página. Não na universidade, onde a posição sobre esse assunto é consensual; mas em minha vida pretérita de debates nas redes sociais, sobretudo no Facebook e no YouTube, infelizmente sempre me deparei com opiniões negacionistas sobre o golpe civil-militar de 1964 que instaurou uma ditadura pró-empresarial e entreguista vigente durante 21 anos e com cujas consequências lidamos até hoje. Negacionistas porque negam que foi “golpe”, porque dizem que teve amplo apoio popular, porque negam o auxílio dos EUA, porque aceitam cegamente o pretexto de que o Brasil ia se tornar “comunista”, porque subestimam a escala das torturas, dos assassinatos, dos desaparecimentos (“Foram só bandidos!”) e da repressão, e porque acreditam que não houve corrupção generalizada e aumento brutal da pobreza.
A maior prova de que o ensino de História no Brasil fracassou (e mesmo não sendo professor do ensino básico, e mesmo nunca pesquisando esse período, me incluo na culpa coletiva) foi o predomínio da memória seletiva de pessoas mais velhas e dos “influenciadores” de educação, que sequer têm formação na área e mentem descaradamente de acordo com seu gosto político, sobre a pesquisa séria e o papel do professor na formação de uma consciência cívica e democrática. O fantasma do “doutrinador comunista” nas salas de aula e nas cátedras universitárias foi tão bem espalhado nos grupos de WhatsApp que ajudou facilmente a eleger o falso outsider Jair Bolsonaro, que não tinha nenhuma qualidade política a não ser comer pelas beiradas da “grande corrupção” e instilar em parte da população essa falsa memória sobre uma “ditabranda”.
Assim como Vladimir Putin, Bolsonaro não soube se reciclar após o desmoronamento do mundo em que ele cresceu e em que acreditava (no caso do primeiro, a União Soviética do imperialismo grão-russo reciclado e proletária só no discurso) e, ao invés de se adaptar aos novos tempos, tentou a um custo alto pra coletividade reconstruir pra si esse mundo em cima da sociedade atual. Ao que parece, o ditador do Kremlin está tendo muito mais sucesso em sua empreitada, embora limitada às fronteiras da Rússia moderna, mas com respingos de sangue sobre alguns dos países vizinhos. Mas voltando ao tema, a administração da Marxists.org em português resolveu relembrar estes 60 anos do fatídico golpe por meio da divulgação, num só portal, de muito material livre e gratuito sobre o evento e o período, dividido, como eles mesmos informam, nos seguintes tipos: a) livros sobre a ditadura; b) escritos de autores e organizações sobre a ditadura; c) material audiovisual sobre a ditadura.
Peço que atente especialmente ao livro sobre as covas coletivas no Cemitério de Perus (mas com humanos, rs), na cidade de São Paulo, pois ela me traz várias coisas caras a minha afetividade política. O empresário Paulo Salim Maluf era então o governador designado pela ditadura civil-militar (as eleições diretas pro cargo só voltariam em 1982) e foi apontado como responsável pelo enterro clandestino de centenas de presos políticos que teriam sido fuzilados na década de 1970. A descoberta só foi feita em 1990, quando a então prefeita Luiza Erundina, uma das pessoas que mais admiro nesse mundo, ordenou a exumação e a identificação das pessoas, trabalho que demorou anos e, até onde eu saiba, ficou incompleto.
O único cargo que Maluf voltaria a ocupar no executivo seria a mesma prefeitura da capital, sucedendo exatamente a Erundina, e pro funcionalismo público, sobretudo, foi uma gestão horrível, e a de Celso Pitta, seu poste (ainda não havia reeleição), seria ainda pior. O primeiro ponto que me toca é que em 2012 ela foi convidada pra ser vice na chapa de Fernando Haddad, que então concorria à prefeitura de São Paulo e não foi um mal governante. Quando foi divulgada a fatídica foto dele com Lula e Maluf se dando as mãos na casa do empresário, a hoje deputada federal criticou abertamente na TV, e sua recusa a concorrer foi vista como “estardalhaço” pelos petistas; veja só... O segundo ponto é que exatamente aquele arremedo de presidente que tivemos, integrando comissões na Câmara dos Deputados nos anos 2000, militava contra a identificação dessas ossadas, dizendo que “quem procura osso é cachorro”. Meu nojo a essa figura já remonta daí!
Pra variar, eu já escrevi mais do que o texto que procurava divulgar, rs. Portanto, segue aí a circular. Aproveite!
Circular do Arquivo Marxista na Internet: Abaixo a ditadura, o povo no poder!
Este mês de abril de 2024 marca ambas as efemérides dos 60 anos do golpe militar-fascista no Brasil e dos 50 anos do 25 de Abril de 1974 em Portugal. Em descomemoração do primeiro e celebração do segundo, o Arquivo Marxista na Internet, seção lusófona do Marxists Internet Archive, destaca a resistência das classes trabalhadoras do Brasil e Portugal aos regimes burgueses ditatoriais dos militares e salazaristas.
Em 31 de março e 1.º de abril, a página inicial do Arquivo exibe um mural de protesto com a inscrição “Ditadura assassina” nos dispositivos em modo paisagem, e um registro de estudantes brasileiros derrubando uma viatura policial nos dispositivos em modo retrato. Inauguramos neste dia também a seção temática “Ditadura civil-militar de 1964”.
Nos dias 24 e 25 de abril, a página inicial igualmente celebrará com imagens especiais os 50 anos da Revolução dos Cravos e do início do PREC [Processo Revolucionário em Curso, período de turbulências de 1974 a 1976, sobretudo 1975].
a direção do
Arquivo Marxista na Internet,
seção lusófona do Marxists.org
Adendo (Erick): Recomendo que veja também este portal recém-lançado pelo Instituto Vladimir Herzog, que disponibiliza exatamente um vasto material pra que os professores possam abordar o assunto em sala de aula. É pra deixar qualquer tiozão do Zap de cabelo em pé!
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