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Questão 1
1.1) Meu tio critica a submissão à modernidade tecnológica na família Arpel, que vive abastadamente em um bairro residencial calmo, moderno e sofisticado. Como contraponto ao chefe da família (Jean-Pierre Zola), o filme coloca seu cunhado, o sr. Hulot (Jacques Tati), que protagoniza a história por simbolizar a França tradicional, pouco tecnológica e despreparada para o impacto da americanização. Sempre que ele vai visitar a irmã (Adrienne Servantie), deve atravessar um muro em um terreno baldio, simbolizando a fronteira entre essa França antiga e uma França moderna, avançada e mecanizada. Desempregado e solteiro, além de debater-se com os objetos da casa da irmã, temporariamente desvia Gérard (Alain Bécourt), seu sobrinho, da artificialidade da casa dos Arpel. Assim, o tio alivia-lhe o peso da disciplina paterna e dos estudos, o que ainda hoje ocorre no Brasil às crianças que costumam divertir-se com parentes não responsáveis diretamente por sua educação. Enfastiado com a vida moderna, o menino resiste a ela ativa (brincadeiras inusitadas, como as do para-choque e do poste) e passivamente (absenteísmo na hora de comer e de estudar).
Por outro lado, a modernidade parece resistir ao sr. Hulot, que não consegue mais arranjar um bom emprego sozinho ao exibir sua espontaneidade traduzida em uma série de atitudes caricaturais. Mesmo assim, ou talvez por isso, tio e sobrinho relacionam-se muito bem com a troca de carinhos, rara entre pai e filho, e de brinquedos realmente divertidos, como o boneco articulado e o apito. A diferença entre os dois é que enquanto aquele senhor não consegue lidar com os novos tempos, o menino rebela-se contra a disciplina dos anos 1950, por exemplo, não se portando bem à mesa. Diante das dificuldades, ao sr. Hulot só resta a ironia pela qual lida com a modernidade, como no jantar na casa dos Arpel, em que ele faz uma das convidadas gargalhar por motivo desconhecido. As situações em que o cunhado de Charles se vê envolvido na Plastac também são irônicas para o espectador e resultam do tédio advindo de um trabalho repetitivo que contrasta com a dinâmica vida do bairro onde mora.
1.2) Meu tio, em toda a sua duração, contrasta dois “mundos” entre os quais a França dos anos 1950 estava dividida: a modernidade de uma americanização adaptada na casa dos Arpel e o bairro humilde onde está o cortiço habitado pelo sr. Hulot. O início do filme já opõe o universo da construção de prédios modernos, a qual se mostra muito ruidosa, e o bairro antigo, sujo e feio, mas calmo, no qual transitam até carroças puxadas por cavalos. A música, que oscila entre uma animada melodia influenciada pelo jazz e outra calma, com instrumentos tipicamente europeus, ajuda a marcar a divisão entre os dois espaços. Mas o livre trânsito dos cães entre um lugar cheio de entulhos e o bairro residencial sofisticado, com certo estilo tomado da escola Bauhaus, indica o quão artificiais são essas fronteiras que o homem criou para separar-se de seus semelhantes.
No ambiente moderno, os vizinhos quase não conversam, são separados por muros e até mesmo a vinda de uma vizinha à casa dos Arpel é tida como uma ocasião excepcional. Ao contrário, o bairro do sr. Hulot é alegre, guarda relações maiores entre as pessoas e transborda de um coletivismo notado na leitura compartilhada de um jornal fixado em uma grade e na brincadeira conjunta das crianças. A inclinação comumente feita nos cumprimentos às mulheres deste local, indicativa da típica cordialidade europeia, contrasta com a falta de gentileza sentida pelas mulheres de melhor posição social. A feira de rua, que contrasta com o domínio global desejado pela Plastac (ver mapa-múndi estilizado na sala do chefe), exibe a cada vez mais rara prática da pechincha, em uma sociedade que impõe parcelamentos e descontos pré-fixados. Até na hora do prazer as diferenças aparecem: no jantar junto aos Arpel, o sr. Hulot começa a fumar seu cachimbo na frente de uma das convidadas, que lhe “responde” com um moderno cigarro, mais fino, mas que faz muito mais fumaça.
1.3) O modo de vida influenciado pelos EUA aparece no filme inicialmente na forma física do casal Arpel, o qual se não come tanto quanto os norte-americanos, ao menos se alimenta mais fartamente do que boa parte da população francesa. Os carros compridos também são vindos da América, andam elegantemente lado a lado no trânsito e ostentam acessórios modernos, como a seta, que mereceu até um close da câmera. São eles objeto do desejo dos novos consumidores mais abastados, como Charles, que oferece um à esposa como presente de aniversário de casamento. Mesmo assim, a cena em que o sr. Hulot busca Gérard na escola com a carroça mostra que o menino não liga muito para o que está na moda e que, apesar de caro e bonito, não parece divertido. A fábrica de plásticos é outro símbolo da modernidade do pós-guerra, fabricando objetos com um material novo e sendo gerida nos padrões elaborados por Frederick Taylor e Henry Ford. A sra. Arpel, já um pouco distante da mostra incessante de glamour das europeias, afirma, por exemplo, não gostar de chapéus, fugindo do padrão do continente. Contudo, a gentileza europeia por vezes se mostra em seu meio, como na oferta de um buquê por um convidado ao jantar de sua casa, ainda que com o toque tecnológico que conseguiu produzir flores “eternas”.
Já o chafariz em formato de peixe combina o gosto que a família possui pelas novas tecnologias com a ritualização de ocasiões consideradas especiais, como a visita de uma pessoa importante. Até a locomotiva que Gérard ganha de seu pai mostra não só uma abastança que permite presentes em qualquer época do ano como também o fascínio pelo moderno, inculcado nas pessoas desde a infância. Charles, por sinal, mostra ser um eficaz receptor da filosofia do self-made man ao dizer que foi ele quem conseguiu todas as coisas da família, contrapondo-se ao cunhado supostamente preguiçoso, mau exemplo para seu filho. Já a esposa preenche a ideia da concorrência que lhe é adjacente, dizendo que a casa da vizinha é mais bem administrada, ou seja, o outro sempre é melhor, um ideal a ser alcançado. Todavia, por melhores que sejam as casas modernas, elas não livram de suas armadilhas nem mesmo as pessoas tidas como mais acostumadas, a se notar pelas trapalhadas e tropeções em canteiros durante o jantar dos Arpel. A porta automática da garagem, presente de aniversário de casamento da sra. Arpel para Charles, também se revela constrangedora ao quase trancar o casal naquele lugar pela simples falta de prática do uso do utensílio. Ao final o sr. Hulot termina por ceder ao novo, mas retratando a adaptação que os franceses fizeram daquilo que receberam, como se nota no momento em que, no carro do cunhado, acende seu cachimbo com o isqueiro do veículo. Mas sem aquele que parecia ser seu espírito, o bairro que encarnava o antigo modo de vida torna-se vazio e silencioso, talvez fadado ao desaparecimento.
Para Body-Gendrot, a vida cotidiana francesa (os planos da política, da economia, das aparências e do processo de modernização) foi muito influenciada pelos EUA. Porém, na vida secreta, longe de ser integralmente americanizada, há um jogo de reelaborações que não são uma cópia fiel da cultura “ianque”, mas algo alimentado pelo “mito americano”. Este, em detrimento de um retrato fiel da sociedade no outro lado do Atlântico, sempre foi passado, sobretudo, pelo cinema e recebido pelas pessoas que não podiam atravessar o oceano. O peso do passado no lado europeu faz com que franceses e norte-americanos sejam, na verdade, diferentes, enquanto suas relações devem ser explicadas por um viés intercultural. A identidade norte-americana não ameaça a francesa, pois nesta ainda permanecem coisas como a ausência de autodisciplina, a importância dada à culinária e a opacidade da vida privada. Igualmente, embora o francês se enxergue um pouco nos EUA, impressionam-lhe neste país a enorme religiosidade, o desconhecimento sobre o resto do mundo, a violência e a ausência de controle sobre a identidade alheia. A administração científica do próprio tempo, efetuada pelos norte-americanos em prol da busca de eficiência e efetividade em suas tarefas, é outro aspecto que desagrada aos franceses, menos simpáticos à “loucura da velocidade”. Nos EUA, ao contrário da França, além de se condenar o adultério, não se vê o sexo, especialmente os homens, como uma prioridade na vida ou como parte indispensável do casamento. Com relação à pornografia, os norte-americanos são mais discretos do que os franceses, que não aceitam a intervenção do Estado em assuntos tão privados como esse. Na América, até a morte consiste em um grande mercado, com pagamentos generosos por funerais e cemitérios luxuosos, enquanto na França o assunto ainda é tratado com mais discrição. Quanto ao espírito de iniciativa norte-americano, ele não é unanimemente aclamado entre os franceses, que ainda frequentemente recorrem ao Estado para resolver seus problemas. Enfim, a França só recebe dos EUA aquilo que eles consideram “digerível”, pois os franceses dizem que não são ricos como os norte-americanos, mas têm uma história e uma cultura mais refinadas. Já as transformações na sociedade francesa, entre elas o aumento do número de divórcios, são mais frutos de mudanças estruturais do que de cópias do que acontece nos EUA. Body-Gendrot considera que é possível uma modernização que não reproduza fielmente os norte-americanos, mas que é muito mais complexo perscrutar como as coisas dos EUA interiorizam-se nas pessoas. O que complica também é a heterogeneidade da influência norte-americana, porquanto os EUA são um país muito diversificado.
De qualquer forma, pode-se dizer que a transmissão dessa cultura obedece ao mecanismo batizado de “coersedução”, ou seja, um misto de imposição e encantamento que exige certo isomorfismo entre o emissor e o receptor. A literatura norte-americana, por exemplo, não faria sucesso na França se não criticasse um pouco a própria sociedade dos EUA, enquanto os filmes de Charles Chaplin agradaram aos franceses antiamericanos por sua crítica à sociedade industrial que florescia na América. Já a crise de 1929, mostrada pelas atualidades cinematográficas, convencia os franceses de que muita coisa dos norte-americanos não deveria ser imitada. Uma das exceções era a música, como o blues, que, tomado apenas por sua sonoridade, perdeu seu sentido original de canção negra de lamento, esfumaçando-se, assim, o “modelo americano”. A expansão da língua inglesa também não levou à extinção do francês, como muitos temiam, pois na vida íntima o idioma materno continua sendo usado e não é corroído pelo uso de palavras inglesas. Mesmo assim, é inegável a visão positiva que os franceses passaram a ter da cultura norte-americana, em especial após a 2.ª Guerra Mundial, pois após libertar Paris, os “ianques” comportaram-se muito diferentemente de outros vencedores da história. A partir daí, o “mito americano” (ou seja, uma realidade distorcida) difundiu-se pela literatura, pela imprensa e pelo cinema, mas quando mais turistas da França passaram a ir de avião aos EUA, tal visão não foi apagada, mas corroborada. A pesquisa de opinião é outro elemento norte-americano que veio para ficar entre os franceses, assim como o culto ao corpo: esportes, regimes, consultas médicas mais frequentes, abandono do álcool e do tabaco, asseio, cirurgias plásticas e massagens. Contudo, restam algumas semelhanças um pouco mais tristes, como o caso da homoafetividade, que embora não seja mais vista como doença, é popularmente condenada e empurrada para “guetos” urbanos. A situação da mulher no mercado de trabalho também é discriminatória nos dois países: a diferença é que enquanto as norte-americanas costumam consolidar-se profissionalmente antes de ter filhos, as francesas têm menos propensões em “tomar o lugar” do homem.
Bibliografia
BODY-GENDROT, Sophie. Uma vida privada francesa segundo o modelo americano. In: PROST, Antoine; VINCENT, Gérard (orgs.). História da vida privada. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 529-579. (V. 1. “Da Primeira Guerra a nossos dias”.)
MEU TIO (Mon Oncle). Produção e direção de Jacques Tati. França: Alter Films, 1958. 1 DVD (117 min.).
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