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Religião é política. E os Estados democráticos não conseguem sustentar-se apartados do apoio e da conivência das grandes Igrejas. Essa verdade incômoda, pouco reconhecida em vários países ocidentais, desmente a possibilidade da existência de Estados realmente laicos dentro do modelo sócio-cultural em que vivemos.
O mesmo padrão é ainda mais verdadeiro às nações pouco desenvolvidas economicamente, nas quais a superstição é um substituto muito comum da ciência e da educação. E foi precisamente nesses países que a história comprovou ser fracassada de antemão qualquer tentativa lançada do alto de laicizar a sociedade ou de reduzir o papel e a influência das religiões na vida nacional.
O caso mais emblemático é o da Rússia soviética. E ele prova ainda que secularizações muito bruscas podem conduzir a formas ainda mais cruas de endeusamento e ritualização da política. Lenin, líder da revolução de outubro de 1917, passou boa parte de sua vida adulta exilado na Europa Ocidental desenvolvida e industrializada, em meio a círculos socialistas oficiosos ou conspiradores, longe do barbarismo e da supersticiosidade do atrasado império tsarista ortodoxo. Não sem antes, claro, ter recebido uma refinada educação típica de famílias abastadas para as quais o trabalho não era uma necessidade premente e ter cursado Direito, uma carreira então muito comum a jovens intelectuais politizados.
Ocidentalizado que era, Lenin aparentemente buscou moldar a Rússia à sua imagem e semelhança, ainda que seja muito duvidoso sugerir que ele pensasse e agisse mesmo como um russo médio ao querer realizar num salto a transição da Idade Média para o industrialismo avançado. E eis que surge Stalin, maior conhecedor da linguagem e das necessidades do povo e que, como já sabemos, amenizou o choque inicial ao criar uma nova espécie de fé orientalista em torno de sua pessoa e converter em teoria sagrada, ainda que em versão disforme, o comunismo marxista.
Em muitos países muçulmanos, o procedimento não foi diferente. Mustafá Kemal Atatürk, ditador que dissolveu o carcomido Império Otomano para fundar a Turquia moderna após a Primeira Guerra Mundial, obrigou a população a usar trajes ocidentais e impôs a substituição do alfabeto árabe pelo latino para escrever a língua nacional. No Irã, a dinastia ocidentalizante dos xás Pahlevi promoveu uma industrialização acelerada e uma inovação dos costumes cujos resultados de corrupção e pobreza ferveram o caldo de cultura propício à ascensão do regime islâmico, em 1979.
O iraquiano Saddam Hussein, recentemente enforcado pelos americanos, realizou diversas reformas, inclusive no tocante aos direitos das mulheres, mas ao custo de reprimir curdos e xiitas e de criar o cenário ideal para a explosão do radicalismo terrorista. Já a junta militar que está governando o Egito se depara com o duplo desafio de preencher o vazio deixado por três presidentes que, de 1953 a 2011, reprimiram a Irmandade Muçulmana, influente grupo extremista do país, e de atender aos clamores de uma população fortemente conservadora no quesito religião. Isso para não citarmos as autocracias laicas do Marrocos, Argélia, Tunísia, Síria, Iêmen e Jordânia, já depostas ou em vias de abalo ou desagregação.
Existem ainda exemplos caseiros e mais inteligíveis. Recentes ondas de ateísmo militante e humanismo secular promovem uma cruzada contra o que chamam de interferência religiosa no Estado laico brasileiro. Elas não conseguem enxergar, todavia, que esse mesmo Estado, por mais de trezentos anos, viveu umbilicalmente ligado à Igreja Católica e que, mesmo durante a República, o velho conúbio prosseguiu dando mostras de vitalidade. Elas não compreendem que, desde tempos quase imemoriais, qualquer estrutura governante sempre esteve atada a uma religião oficial, sendo ambas, por isso, frutos de um mesmo modelo institucional, e que a ideia dessa separação tem apenas pouco mais de dois séculos e meio. Se não é mais o credo romano que monopoliza a influência na política, ainda assim vemos leis que favorecem amplamente as instituições religiosas com isenção de impostos e proteção patrimonial em troca de mobilização de votos e de apoio político, quando os próprios sacerdotes não ocupam cargos nos três Poderes.
Enfim, esses novos movimentos não percebem que a superação das religiões instituídas virá somente quando for superado o atual modelo estatal, ou melhor, quando mudanças sociais mais profundas levarem de roldão esses dois gigantes. Em outras palavras, não é a retirada dos crucifixos das repartições públicas que tornará o serviço melhor, nem a adoção do ateísmo em larga escala que nos deixará mais ricos ou instruídos. Pelo contrário, é a construção de uma sociedade mais próspera, racional, autossuficiente e justa que dispensará o gasto de energia com fantasias sobrenaturais ou mitos consoladores.
O mesmo Lenin que citei atrás, num texto de 1905 chamado “Socialismo e religião”, ensina que a unidade dos trabalhadores para a construção do paraíso na Terra era mais importante do que sua unidade de opiniões sobre o paraíso no céu. Para ele, ainda que os revolucionários se declarem ateus, eles não podem fragmentar as forças que lhes é possível reunir por causa de delírios sem significado político e rapidamente “jogados no ferro-velho” pelo curso do desenvolvimento econômico.
Por isso, quem sabe não colaboremos melhor para a edificação de um mundo mais humano resolvendo nossos problemas materiais imediatos do que sonhando com Inquisições laicas bitoladas em miudezas ornamentais, fabulosas e, quando muito, lúdicas.
Bragança Paulista, 27 de agosto de 2011.
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