Certo dia, me lembrei desta cena do filme For All: O Trampolim da Vitória, gravado em 1997 e lançado em 1998, que assisti numa tarde de domingo da TV Globo quando eu era criança. De modo romantizado, o premiado e elogiado filme trata da chegada de soldados norte-americanos ao Rio Grande do Norte durante a 2.ª Guerra Mundial, quando formaram aí a então maior base militar dos EUA fora do país pra combater as forças do Eixo nazifascista. Recomendo muito que historiadores e curiosos assistam ou exibam, pois é uma riqueza esquecida da nossa cultura!
Este maravilhoso longa conta com o brilho de muitos astros de nosso cinema, TV e teatro, como Edson Cellulari, Diogo Vilela, Betty Faria e Ney Latorraca, bem como de alguns já partidos da Terra (José Wilker, Luiz Carlos Tourinho e Caio Junqueira). Óbvio que pelas cenas picantes e palavrões seria hoje classificado pra maiores de 16 anos, mas ele foi exibido em pleno horário nobre! For All... mostra um lado cultural da presença dos EUA que não se amarra na crítica do imperialismo e do capitalismo, mas se foca nos aportes linguísticos, musicais, materiais e amorosos. Note-se bem que há muitas cenas com bailes de forró, e que se supõe como uma das origens do nome “forró” a expressão inglesa for all, indicando essas festas “para todos”.
Nesta cena, o jornalista e poeta João Marreco, que tem a mesma pinta do professor Girafales do seriado Chaves, está dando uma aula de português pros soldados, ofício pro qual ele foi encarregado durante a estadia deles. Ele é apaixonado por Iracema, filha do italiano pró-fascista Giancarlo Sandrini, que o vê como melhor genro, mas ela acaba gostando do tenente norte-americano Robert Collins, posteriormente morto em combate. Nesta cena, João acaba descobrindo que um dos militares é Robert, e no impulso o chama de “filho da p...”. Questionado, acaba tendo que traduzir o son of a bitch na cara do rival confuso, e assim começa a zoeira dos Marines.
Depois de ter procurado e achado aquela cena, acabei achando outras que poderiam muito bem virar ótimos memes! Nesta outra, novamente João Marreco aparece dando uma aula de português pros soldados, e Luiz Carlos Tourinho interpreta Sandoval, que arrumou um emprego de faxineiro na base militar, lugar procurado também por outros moradores locais. Embora seja gay, Sandoval tem profunda admiração pela cantora e atriz estadunidense Jay Francis, que também veio ao Brasil, e pede a João que lhe ajude a escrever pra ela uma carta em inglês. Diante da recusa, Sandoval sai da sala nervoso dizendo: “O senhor pode seguir a sua reta, mas a Terra é redonda.”
Ou seja, um sujeito simples no início da década de 1940, interpretado num filme dos anos 90, poderia receber com escárnio a ideia hoje ruminada de que nosso planeta é plano/chato! Ele de cara e inocentemente “refuta” os atuais terraplanistas, rs. Curiosamente, fiquei sabendo esses dias numa curta entrevista com o autor de um livro francês sobre teorias da conspiração nas redes sociais que 1 em cada 6 jovens franceses até 24 ou 30 anos “julga possível” que a Terra seja plana. A tese é a de que haja uma fratura geracional em que os jovens estejam se informando cada vez mais por “fontes” ruins, como o TikTok, mas que a vulnerabilidade ao conspiracionismo seja forte igualmente em outras gerações, sobretudo se a escolaridade é menor.
Nesta última cena, Miguel Sandrini (interpretado por Caio Junqueira), que ao que tudo indica é um moço virjão, está praticando o onanismo vendo uma revista com a foto da atriz e cantora estadunidense Carol Byington com um maiô curto e apertado. Miguel é filho de Giancarlo Sandrini (papel de José Wilker), italiano residente no Brasil e que apoia o regime fascista de Benito Mussolini, ficando assustado com a perseguição aos compatriotas pela ditadura de Getúlio Vargas. Depois fiz inclusive um corte, passando logo pra outra cena em que Miguel encontra Carol pessoalmente, numa das festas promovida na base militar pra entreter os combatentes.
Interessante que nem na década de 1940 nem na de 1990 nenhum marmanjo se vitimizava como incel, culpando a sociedade por não transar: ou mandava no 5 contra 1 mesmo, ou saía por aí dando a cara a tapa.
Nas três cenas, eu fiz o corte do quadro e aumentei um pouco o volume do vídeo original completo. Só consegui fazer a segunda e a terceira descrições com a ajuda da tese de doutorado de Thiago Gobet Spada sobre a trilha musical de For All... e desta reportagem da Folha Ilustrada sobre o lançamento do filme.
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