quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Nazismo e comunismo, nada a ver?


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Nos últimos anos, tem voltado à tona não só no Brasil, mas também no debate político ao redor do mundo, a questão das semelhanças e diferenças entre o comunismo de Lenin e Stalin e o nazismo de Hitler (e, em algum grau, o fascismo de Mussolini). Algumas correntes liberais afirmam que na gênese dos segundos está o primeiro, e que o combate a um, portanto, implica o combate a outro. Essa redução sempre foi problemática na opinião dos historiadores profissionais, pois além da guerra mútua entre os dois campos ideológicos, as origens ideológicas e culturais são distintas.

Esperei muitos anos pra legendar este vídeo, cuja transcrição estava quase completa, mas só tive ânimo pra retomar após fazer no segundo semestre de 2019 uma extensão em tradução do francês na Unicamp, com a professora Marie-Lou, à qual propus que eu legendasse este vídeo como um dos trabalhos finais. Marc Ferro, nascido em Paris em 1924 e filho de um grego e de uma ucraniana (morta em Auschwitz em 1943), foi um dos maiores especialistas da atualidade sobre as histórias da União Soviética e da Rússia imperial. Mas é uma pena que poucos de seus livros estejam traduzidos, e que poucos brasileiros leiam francês, pois seu aporte seria fundamental nestes tempos obscuros (tanto 2019 quanto 2023). Falecido em 2021, Ferro se considerava de esquerda, mas não comunista, e também militou contra os chamados “revisionismos históricos”.

Este vídeo é o trecho filmado de uma entrevista exclusiva sua pra revista Algérie News (ele viveu por um tempo na Argélia), publicada bem no começo da edição que saiu em 5 de maio de 2013. A versão escrita, porém, foi bastante editada em relação à fala bem coloquial, cujos traços reproduzi em parte nas legendas. Eu mesmo traduzi, legendei e cortei o vídeo, no qual há inclusive uma citação de memória de Lenin, depois corrigida no impresso. Marc Ferro argumenta basicamente que não dá pra reduzir nazismo/fascismo e comunismo ao mesmo fenômeno, porque o nazismo era racista e baseado na irracionalidade, enquanto o comunismo era cientificista e universalista, querendo padronizar tudo e, por isso, não deixando de ser igualmente mortal (ao menos na época de Stalin).

Seguem o vídeo com legendas, o texto da tradução em português e a transcrição em francês (oral, e não a versão da revista):


O fascismo, o nazismo, o stalinismo, podemos colocá-los no mesmo plano? Esses são fenômenos da mesma espécie, portanto a se pôr num grande gênero, ou é preciso estabelecer distinções estritas, não são a mesma coisa, não são a mesma história, não são o mesmo conteúdo...?

Não, não é de jeito nenhum a mesma história, não penso que se possa a todo instante querer comparar constantemente comunismo, nazismo e fascismo. É claro que são regimes criminosos, são regimes que fizeram milhões de mortos, são regimes horríveis, são regimes que não devemos restaurar, é certo! Mas... comparar não prova nada. Então, por exemplo, hoje na Estônia, antiga república [soviética], os estonianos dizem: “Sim, tivemos os nazistas quatro anos, era horrível, mas tivemos os comunistas quarenta, era pior”. Eis então a comparação de imediato, mas eles foram vítimas de dois regimes, se é que posso dizer, em sucessão. Mas os russos respondem: “Não, nada disso, sua comparação não é boa porque... nós, russos, fomos subjugados pelo comunismo. E quanto ao nazismo? Os alemães o aplaudiram”. Então, não se pode a todo custo querer comparar os dois regimes, o que não quer dizer que seja preciso tentar um esboço de melhoria, de justificação deles; para ser breve, não é isso que quero dizer.

Foram completamente diferentes. Dito isso, por que eram diferentes? Porque... o nazismo era antes de tudo um racismo. E Hitler o mostrou de todas as formas. De todas as formas, quer dizer que ele perdeu a guerra por causa de seu racismo. Ele desprezava os eslavos, não pensava que os russos poderiam ter armas melhores que as dos alemães. Quando ele viu os [foguetes] Katiusha e os [tanques] T-34 russos, fez um drama terrível, sofreu um ataque de nervos, Göring também. Com seu racismo eles selavam a própria derrota, e foi isso que os levou a serem odiados por todo o mundo e a cometerem crimes abomináveis. Mas essa era a própria base do regime. O comunismo é outra coisa, o comunismo é uma doutrina que se acreditava científica: eles vão falar da ciência, e quem não concordasse com uma análise científica só podia estar doente, louco, devia ser internado, não se pode discutir com alguém que lhe dá uma equação, nem dizer “Isso é falso, isso é...”

São as injeções de Brezhnev?

Isso, exatamente. Por conta disso, eles diziam: “Os camponeses ricos são um obstáculo à construção do socialismo, precisamos suprimir os camponeses ricos”. Como assim? Meio como um cirurgião dizendo: “Você tem alguma coisa no braço, para fazer com que isso sare, devemos cortar o braço”.

Quer dizer: “Curamos a úlcera, mas matamos o doente”.

Exatamente. Eles tinham uma atitude cirúrgica, e não sou eu que estou dizendo! Pois se fosse eu que dissesse, você poderia dizer que estou exagerando. É Lenin: “Não se pode curar uma sociedade se não se estudou a medicina”, é ele que diz! É ele que diz a Ioffé: “Você diz que tenho poderes demais, mas você não se dá conta de que está doente”. É ele que diz a Balabanova: “Anda, vai... vai se tratar, você não entende o que é o marxismo”. Portanto essa atitude médica, cientificista, que permite serem suprimidas 10 mil pessoas para ser salvo um milhão de outras, na intenção, ahn, é uma atitude cientificista, que não tem absolutamente nada a ver com a atitude dos nazistas. É isso que eu quero dizer. Isso desembocou nos mesmos horrores, mas por percursos totalmente diferentes, e independentemente dos objetivos, porque os objetivos, os dois... tiranos queriam sociedades perfeitas, então, podemos discutir sobre isso, mas é antes o ponto de partida que mostra que a comparação é absurda.


Le fascisme, le nazisme, le stalinisme, est-ce qu’on peut les poser sur le même plan ? Est-ce que c’est des phénomènes qui sont de la même espèce, donc à mettre dans un grand genre, ou est-ce qu’il faut établir des distinctions strictes, ça n’est pas la même chose, ça n’est pas la même histoire, ça n’est pas le même contenu... ?

Non, ça n’est pas du tout la même histoire, je ne pense pas qu’on puisse à tout champ vouloir comparer constamment communisme et nazisme, et fascisme. Bien sûr, c’est des régimes criminels, c’est des régimes qui ont fait des millions de morts, c’est des régimes qui sont horribles, c’est des régimes qu’il faut pas retrouver, certes ! Mais... la comparaison n’est pas raison. Alors, par exemple aujourd’hui, en Estonie, ancienne république, n’est-ce pas, les Estoniens disent: « Ouais, on a eu les nazis quatre ans, c’était horrible, mais on a eu le communisme quarante, c’était pire ». Donc voilà, tout de suite la comparaison, mais eux, ils ont été victimes de deux régimes, si je peux dire, à la suite. Mais les Russes répondent : « Non, c’est pas du tout, votre comparaison n’est pas bonne, parce que... le communisme, nous l’avons subi, nous les Russes. Qu’est-ce que le nazisme ? Les Allemands l’ont applaudi. » Donc, on peut pas à tout prix vouloir comparer les deux régimes, n’est-ce pas, ce qui veut pas dire qu’il faille essayer d’esquisser une amélioration, une justification de là, pour parler tôt c’est pas ça que je veux dire.

Ça a été complètement différent. Cela étant dit, pourquoi c’était différent ? Parce que... le nazisme, c’était avant tout un racisme. Et Hitler l’a montré de toutes les façons. De toutes les façons, c’est-à-dire qu’il a perdu la guerre à cause de son racisme. Il méprisait les Slaves, n’est-ce pas, il pensait pas que les Russes pourraient avoir des armes meilleures que les Allemands. Quand il a vu les Katioucha et les T-34 russes, il en a fait une maladie, il a poussé une crise de nerfs, Göring aussi, n’est-ce pas ? Dans leur racisme ils scellaient leur propre défaite, et c’est ça qui les a amenés à être haïs de tout le monde et à commettre des crimes abominables. C’est ça quand même la base du régime. Le communisme, c’est autre chose, le communisme, c’est une doctrine qui se croyait scientifique : ils parleront de la science, et si on n’était pas d’accord avec une analyse scientifique, on était malade, on était fou, fallait aller à l’asile, on discute pas avec quelqu’un qui vous donne une équation, on dit pas « C’est faux, c’est... »

C’est les piqures de Brejnev?

Exactement, voilà. Par conséquent, ils disaient: « Les paysans riches sont un obstacle à la construction du socialisme, faut supprimer les paysans riches ». Quoi ? Un peu comme un chirurgien dit: « Vous avez quelque chose au bras, pour faire tant que ça remonte, faut couper le bras ».

Ça veut dire : « On guérit l’ulcère, mais on tue le malade ».

Exactement. Ils avaient une attitude chirurgicale, bah, c’est pas moi qui le dit ! Parce que si c’était moi qui le disait, vous pourriez dire que j’exagère. C’est Lénine ! « On ne peut pas guérir une société si on n’a pas étudié la médecine », c’est lui qui le dit ! C’est lui qui dit à Ioffé : « Tu dis que j’ai trop de pouvoirs, mais tu te rends pas compte, t’es malade. » C’est lui qui dit à Balabanova : « Allez te faire... va te faire soigner, tu comprends pas ce que c’est que le marxisme ». Donc cette attitude médicale, scientifiste, qui fait qu’on peut supprimer 10 mille personnes pour sauver un million d’autres, soi-disant, hein, c’est une attitude scientiste, qui a absolument rien à voir avec l’attitude des nazis. C’est ça que je veux dire. Ça a abouti aux mêmes horreurs, mais par des parcours totalement différents, et indépendamment des objectifs, parce que les objectifs, les deux... tirans voulaient des sociétés parfaites, donc ça, on peut discuter là-dessus, mais c’est plutôt le point de départ qui montre que la comparaison est absurde.



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