Esta senhora de ar bonachão se chama Valentína Matviénko, de origem ucraniana, mas que preside o Conselho da Federação, câmara alta da Assembleia Federal (o parlamento da Rússia) mais ou menos equivalente ao Senado em outros países, nada menos do que desde 2011. Obviamente ela é membro do partido quase único de Putin, o Rússia Unida, tem formação em farmácia, mas sempre trabalhou como política e diplomata. Ela está sob sanções de diversos países que resolveram as aplicar à nata do putinismo, entre eles a Ucrânia (óbvio!), os EUA, o Canadá, a UE, a Suíça e a Austrália.
Como toda pessoa pública agente da ditadura que deve dar a cara a tapa, ela também abre frequentemente sua “torneirinha de besteiras”, como diz o folclore. Em 6 de novembro de 2023, participando de um fórum governamental chamado “Znánie” (Conhecimento), em que diversos políticos da Rússia e personalidades do mundo da ciência e da cultura nacionais e estrangeiras palestram pra jovens universitários ou empreendedores a respeito de diversos aspectos de seus ofícios. Brincando com a predominância geral de más notícias e de apatia entre a população (em grande parte, na verdade, causadas pelas maluquices da ditadura), Matvienko propôs a criação de um “Ministério da Felicidade” (Ministérstvo schástia) no país, se bem que a meu ver, ao invés disso, eles deviam parar de dar motivos pra infelicidade não só dos russos e de outros povos do Império, mas também dos ucranianos!
Essa ideia não é original, e por volta do início da década de 2010, o Butão, nação nanica encravada entre a Índia e a China, foi pioneiro em criar seu “Ministério da Felicidade”, numa época em que entre os masturbadores intelectuais ocidentais ainda estava na moda a iniciativa local de valorizar a “felicidade” em detrimento da “riqueza” (isto é, PIB e crescimento). Curiosamente, após uma busca no Google, não achei mais informações sobre o atual funcionamento do tal ministério, e aparentemente ele foi extinto (provavelmente absorvido pelo Ministério da Saúde) sem deixar rastros. Ao mesmo tempo, achei esta matéria da Al-Jazeera informando que ocorreram ontem eleições gerais (parlamentares) no Butão e que desemprego crônico, baixa no turismo (uma das poucas fontes de renda) e fuga de cérebros estão entre os problemas que mais afligem atualmente o “país da felicidade”.
O único país que localizei ter ainda um “Ministério da Felicidade” são os Emirados Árabes Unidos, onde “felicidade”, a meu ver, assim como na Noruega e além da maioria estrangeira que vive lá, deveria ser chamada por outro nome: petróleo. Seguem os vídeos com suas traduções, já que não tive saco pra digitar também as transcrições:
“... Lei sobre a Felicidade Geral [Celso Portiolli rindo?...]. Eu sonho, e até propus: vamos criar na Rússia um Ministério da Felicidade, certo? A instituição pela qual vão passar todas as decisões, todas as leis pra que se examine se essa nova lei, essa nova resolução do governo faz as pessoas mais felizes. Por enquanto, meu grupo de apoiadores ainda é pequeno.”
Ainda em 5 de março de 2019, quem parece ter implantado a ideia na cabecinha de Matvienko foi Ievgénia Dmítrieva, então diretora-geral da empresa de tecnologia Kvant Programm e uma das vencedoras de um concurso nacional chamado “Líderes da Rússia”, destinado a estimular novos líderes, gerentes, diretores etc. Numa reunião com esses vencedores, a política discutia a participação de mulheres em cargos de liderança, e Dmitrieva então solta esta, citando exatamente o exemplo dos Emirados:
“Também depois do concurso, dado que tem se formado uma enorme rede de contatos, é possível criar projetos socialmente importantes. E um desses projetos de que participo é a criação, em nosso país, de uma ‘cultura da felicidade’: fazemos projetos de aulas sobre felicidade, em 20 de março vamos realizar o fórum ‘A felicidade como um modelo de negócios’. Como um todo, visamos, sonhamos com que a Rússia se torne um dos 10 primeiros países no índice de felicidade. E eu sei que a sra. também visitou o Ministério da Felicidade nos Emirados e talvez, com nossos esforços, e talvez com o apoio de algum tipo de participação estatal [a burocrata de azul-piscina já começa a rir da cara dela], queremos fazer com que um dia haja tal ministério em nosso país, ou algum tipo de organização parecida.”
Matvienko: “Obrigada, Ievgenia. Você falou muito bonito sobre devermos medir o índice de felicidade, pois os balanços quantitativos são tudo o que fazemos no Estado, pra que as pessoas sejam mais felizes e vivam melhor. Então, nesse estilo um tanto provocador, comecei a falar sobre esse tema, percebendo o que receberia como resposta. Quando cheguei dos Emirados (onde realmente foi criado um Ministério da Felicidade e eu perguntava como, o quê, por que isso opera), lancei esse tema na sociedade, sabendo que seria muito criticada, e em todo lugar achavam uma besteira esse negócio de ‘Ministério da Felicidade’. Eu falo de forma figurada no ‘Ministério da Felicidade’, na verdade, como o esforço que devemos fazer pra que cada ano meçamos o quanto, como resultado de nossas resoluções, nossas decisões, as pessoas se tornaram mais felizes. É o que fazem os Emirados: qualquer decisão tomada pelo governo passa por especialistas desse ministério que devem examinar se ela vai tornar as pessoas melhores, mais felizes, e se isso não acontecer, essas leis e decisões são vetadas. Precisamos desenvolver esse tema: queremos, sobretudo as mulheres, que todos na Rússia sejam felizes, que seja um país de pessoas felizes. Por isso, vamos juntas superar parte dessas críticas, estou feliz que apesar de me criticarem, não fui a única a ter essa ideia: agora já somos duas e espero que as restantes se juntem a nós!”
Aquela mulher séria do comecinho do vídeo deve ter tido como filho o meme “criança cética do Terceiro Mundo” junto com o Kid Bengala, rs.
No dia 9 seguinte à palestra de 2023, uma repórter parecia não estar a par de todo o contexto, e numa entrevista coletiva transmitida pela mídia do Conselho da Federação se dirigiu a Matvienko relembrando o episódio: “Eu via que a sra. clamou pela criação do Ministério da Felicidade...” E de repente foi interrompida:
“Eu estava brincando! [Risos gerais] Percebi que os jornalistas e os sites são ruins com o senso de humor.” “Mas saiba que todos gostaram da ideia.” “Sim, a ideia é ótima, mas é uma metáfora!” (Essa aprovação geral é falsa: segundo uma pesquisa feita no fim de novembro por um centro de estudos de opinião, 56% dos russos rejeitam a ideia – se fosse levada a sério, claro – temendo corrupção, excesso de burocracia, gastos irracionais e inchaço de funcionários.)
Na mesma vibe sobre a criação do “Ministério da Felicidade”, no dia 8 de novembro, Putin parecia já estar querendo fazer sua parte, visitando um hospital pra crianças com câncer em Moscou enquanto com os bombardeios impede que muitas outras tenham acesso ao mesmo tratamento na Ucrânia. O corte apenas com o começo desta cena viralizou entre as mídias ucranianas e de oposição: o menino Vadím, que também estava se tratando de um câncer, se escondeu debaixo do cobertor ao ver o genocida entrando.
Porém, quando procurei o vídeo inteiro e soube da história do menino, comecei a não achar mais tanta graça: ele estaria apenas envergonhado, e sua mãe disse que o deixaria dois dias sem telefone, no qual jogava Minecraft, caso não saísse dali. Putin tentou conversar com o menino, que só aos pouquinhos saiu das cobertas, e deixou ao pé da cama um helicóptero de brinquedo, pra ele pegar quando resolvesse sair. Quando o ditador deixou o recinto, as câmeras pegaram Vadim mais de perto, quando ele finalmente resolveu se descobrir...
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