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As primeiras impressões emitidas a respeito do recém-traduzido livro Em defesa de Deus, de Karen Armstrong, dão ensejo à retomada da discussão sobre a natureza do divino e sua existência. Minha opinião, em síntese, é a de que a autora, privilegiando a ideia de um Deus que só existe na consciência, reforça ainda mais a impossibilidade de sua existência real e cai em uma confusão conceitual já muito conhecida por nós.
Segundo alguns comentadores – ainda não tive a oportunidade de ler a obra inteira –, o conceito de Deus defendido por Armstrong é o de uma sensação ou vivência transcendental, extática, bela, não definível pela linguagem humana e que seria a verdadeira divindade professada pela teologia judaico-cristã em seu estado “puro”, e não o espírito pessoal e antropomórfico de supostas “deturpações” desse arcabouço teórico. Mais do que um ser com o qual devemos manter relações paternalistas de obediência, respeito e submissão, Deus seria a expressão das necessidades de bondade e beleza que todas as civilizações tiveram, e essa seria a essência do sentimento religioso em qualquer época. Tal delineamento não fica longe do de Rubem Alves em obras como O enigma da religião e Perguntaram-me se acredito em Deus: o “Senhor do Universo” torna-se uma metáfora passível de modificações interpretativas conforme as experiências espirituais subjetivas de cada pessoa ou grupo humano.
Se algumas delimitações conceituais fossem adotadas em larga escala, mesmo entre os escritores que gostam de fazer prosa poética com o vocabulário religioso, os leitores comuns e até os cientistas críticos mais apressados deixariam de ser vítimas de uma enganação cujos únicos privilegiados são os prosélitos eclesiásticos. Entendo, em primeiro lugar, que a religião, mais do que uma potência espiritual ou codificadora de preceitos celestes, é também um poder objetivo temporal, material, e que, por ser mais uma entre tantas instituições políticas ou “aparelhos privados de hegemonia” (Gramsci), não deve ter seu nome emprestado aos fatos transcendentais ou erótico-estéticos, de caráter estritamente subjetivo. Estes, aliás, alcançáveis por inúmeros meios e em matizados graus, desde a contemplação da natureza ou a fruição de uma música até a meditação ou o consumo de certas substâncias alucinógenas, passando pelo êxtase sexual ou pela emoção de encontrar alguém querido não visto há anos, são o Deus a que se refere Armstrong. Mas, em se considerando a história das escrituras religiosas, dos cultos oficiais e da teologia monoteísta, conclui-se que deuses – no plural, diga-se de passagem –, mais separáveis do sentimento individual do que da tradição codificada, sempre foram tomados como seres existentes – porém, pasmem, imateriais, se não se contar a exceção atomista –, com forma humana, onipotentes, onipresentes, oniscientes, interferentes no mundo, com vontades e paixões humanas, influenciáveis por preces ou oferendas e apresentáveis a castas ou indivíduos que afirmam interpretar suas mensagens – inclusive por aqueles instrumentos emocionais citados há pouco.
Verdade seja dita, impressões particulares de um mesmo fenômeno tão controverso e hermético não podem servir de regra geral para a normatização de condutas ou de teorizações. Mesmo que deuses – e já uso o termo em seu sentido estrito que determinei acima – existissem e se revelassem a certos grupos ou pessoas, as inferências se mostrariam tão díspares que não só seria mais plausível restringir a ocorrência desse tipo de transcendência ao campo privado, como também se imporia não levá-lo ao campo público, vistas as intermináveis discórdias e possíveis violências que elas causariam, além, é claro, da inviabilidade de coesão social. Mas nem é preciso levantar esses poréns contra um conceito unívoco de Deus: basta aproximarmo-nos mais de sua natureza filosófica para que se revele sua inveracidade. Dado que a percepção humana divide-se em subjetiva (consciência, ideal) e objetiva (exterioridade, material), Deus, para existir como força movente, deveria ser material, mas não é o que pregam os seus asseclas; portanto, é de se supor que se encontre no plano mental, ideal. Ora, conforme aquela divisão da percepção humana, o raciocínio não pode criar matéria, apenas moldar uma percepção dela dentro do cérebro, enquanto o meio condiciona o surgimento e a extinção de certos pensamentos e conceitos; assim, se os seres humanos, pedaços materiais dos quais a consciência tira a imagem dos deuses, não possuem as propriedades divinas de onisciência, onipotência etc., estas só podem ser uma adição vinda de dentro, de processos e vicissitudes internos condicionados pelas carências de nossa espécie, e não podem existir na realidade. Dessa forma, se Deus possuísse uma existência empírica, poderia muito bem ser detectado e verificado por instrumentos laboratoriais ou mensurais, mas, como isso nunca aconteceu – nem nunca acontecerá –, resta a sugestão de que sua razão de ser localiza-se apenas na mente humana, e não no mundo real, descartando todo o temor e influência de Sua ação.
Mesmo que a realidade de um “Deus empírico” seja impossível, resta ainda avaliar a força das ideias a respeito do sobrenatural sobre a sociedade: de fato, a organização do real na mente humana que proporciona o surgimento de deuses é fruto de contradições materiais muito bem exploradas por certos grupos chamados hoje de religiosos, messiânicos ou espiritualistas, e é na resolução dessas contradições que os grupos ateístas e secularistas precisam focar-se, o que os obriga a transformarem-se, mais do que em agrupamentos irreligiosos contestatórios, em movimentos sociais emancipatórios e transformadores. É assim que a prioridade, se se quiser extinguir pela raiz os males causados pelo fanatismo religioso, passa a ser não mais na prova da implausibilidade de Deus, objeto exclusivamente filosófico, mas nos problemas de sobrevivência da humanidade, estes sim, o verdadeiro alvo da ciência.
Bragança Paulista, 30 de janeiro de 2011.
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