domingo, 16 de março de 2025

40 anos do fim da ditadura militar


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Ontem, 15 de março, fez 40 anos que a ditadura civil-militar no Brasil acabou oficialmente e foi empossado presidente da República o primeiro civil desde João Goulart (gov. 1961-1964). “Oficialmente”, porque o regime já estava carcomido desde a década de 1970, e vários de seus “entulhos” (legislativos, materiais e humanos) permaneceram vivos e atuantes, alguns chegando até a atualidade. Nunca fui simpático à figura de José Sarney enquanto pude acompanhar sua atuação contemporânea, já que não tenho memórias do tempo em que ele presidiu o país (nasci em 1988!). Em outras palavras, conheci Sarney já senador, com toda sua nova carga de acusações dessa época, enquanto o Sarney presidente (assim como o Collor presidente, não o Collor senador do meme “bufando” em bate-boca com Pedro Simon) só conheci pelos livros de História e pelos documentários audiovisuais.

Mas, parafraseando Lula ao se dirigir a um próprio colega de partido, não quero me focar na figura do “cabeçudão do Maranhão”. A foto acima traz uma provocação pelo fato do último general-ditador, João Figueiredo (gov. 1979-1985), ter se recusado a passar a faixa presidencial naquele fatídico dia 15. Ele considerava Sarney um “traidor” por ter deixado o PDS (sucessor da ARENA, partido de apoio à ditadura, desde 1980) pra se filiar ao PMDB (sucessor do MDB, única oposição legal até 1979) e se candidatar à vice-presidência na chapa com Tancredo Neves nas eleições indiretas de 1985. Confesso que só vi algo semelhante a tal pirueta ideológica na Rússia moderna: antigos comunistas ateus, obedientes e militantes se tornaram ricaços religiosos, nacionalistas e amantes do luxo da noite pro dia...

Resumindo rapidamente pros jovens que nasceram ontem: apesar das lutas populares, das muitas manifestações de rua e do sangue operário corrido, o fim da ditadura civil-militar (por favor, não há outro nome pra essa aberração!) implantada em 1964 foi negociado entre os próprios esbirros e os políticos, geralmente empresários e grandes proprietários, menos conservadores. Entre as bizarrices dessa “transação” estão a anistia a todos os crimes contra a humanidade cometidos no período pelo Estado e “pelos terroristas de esquerda” (1979), a obrigação de todo novo partido a partir de 1980 ter no início de seu nome a palavra... “Partido” (rs) e a extensão do mandato de Figueiredo dos cinco anos constitucionais pra seis anos. Ofensa das ofensas, o Congresso Nacional rejeitou em 1984 um projeto de emenda constitucional (ainda vigorava a imposta em 1967) que previa eleições diretas (i.e. por sufrágio popular universal) pra presidência da República em 1985, bandeira que tinha mobilizado o país todo na famosa campanha das “Diretas Já”. Tecnicamente, o Brasil voltava a ter um presidente civil, mas ele tinha que ser eleito, assim como os cinco anteriores, por um Colégio Eleitoral (a Câmara e o Senado juntos), adiando a escolha do povo pra 1990.

Sem me aprofundar, mas a história foi apimentada pelo fato de que o popular político mineiro Tancredo Neves (avô do Aécio de Papelão!), do PMDB e vocal opositor da ditadura, foi eleito por esse colégio, mas morreu antes de tomar posse. As circunstâncias do óbito ainda hoje são alvo de teorias malucas, mas ocorria, como escrevi acima, que Sarney (que não é um sobrenome, mas o prenome do pai dele tornado sobrenome... que nem “Rui Barbosa”, entendeu?) se filiou ao partido dos milicos logo em seu surgimento e até presidiu a ARENA-PDS de 1979 a 1984. Porém, nesse ano entrou no PMDB pra apoiar Neves e ganhar em troca a candidatura à vice-presidência, embora também tivesse entrado em choque no PDS com Paulo Maluf, ex-governador de São Paulo e cúmplice de assassinatos políticos que se tornaria o “candidato indireto” apoiado pela ditadura.

O mineiro venceu, mas por não estar em condições de assumir, a posse de Sarney chegou a ser contestada, em prol de uma nova eleição, o que terminou não ocorrendo. O maranhense assumiu como interino até sua efetivação no cargo em 21 de abril de 1985, quando Neves morreu. Seu governo foi marcado por forte preocupação social e pelo estabelecimento das futuras bases de nossa política externa e integração regional, mas não conseguiu debelar a hiperinflação que se anunciava desde o final da ditadura e deixou uma economia em frangalhos.

Esses são os fatos. Antes de continuar, quero fazer um exercício de “história contrafatual”: imagine Maluf presidindo o país durante cinco longos anos. Quem tem mais de 30 anos sabe o significado de um elemento desse assumindo qualquer cargo público. Ele destrói o funcionalismo (e não é por desejo de eficiência!) por onde quer que passa. É o padrinho político de Jair Bolsonaro. Seria uma continuação da ditadura muito pior do que a democracia cambaleante que tivemos no início... Pegando esse gancho, quero ressaltar como é tão importante relembrar esses 40 anos do restabelecimento da democracia no Brasil, com suas negociações e conchavos, suas limitações e ineficiências.

Desde a Primeira República (1889-1930), que na prática não tinha representação popular, e sem contar o instável Império, é o período mais longo em que vivemos sem um regime de exceção. Ninguém precisa assistir a Ainda estou aqui pra usar seu único neurônio e concluir que os militares no poder não foram algo normal, muito menos positivo. A “democracia” não é um valor em si, mas uma forma de governo, pois também pode funcionar mal e se voltar contra a maioria ou contra grupos vulneráveis. O sufrágio universal direto, o equilíbrio entre os poderes e a igualdade perante a lei não são “bons” ou “ruins” em si, mas apenas a melhor garantia já encontra pela humanidade pra manutenção, incremento e aperfeiçoamento das liberdades civis, estas sim, o verdadeiro conteúdo de uma democracia saudável. E elas não podem ser garantidas nem por um tirano paternal, nem por uma oligarquia esclarecida e nem, em nosso estágio atual de evolução (e me perdoem os mais exaltados!), pela extinção do Estado e um governo direto sem intermediários ou fiscalização.

E tendo em vista essa vontade de aperfeiçoar a democracia (reitero, como forma de governo que pode garantir melhor o real conteúdo das liberdades civis!), um processo lento, às vezes doloroso e sempre exigente de responsabilidade pessoal, que louvo a iniciativa do portal G1 em ter relembrado ontem os 40 anos da posse de quem não foi nosso melhor presidente, mas abriu um período muito especial e teve a nobreza de convocar a Constituinte. Tomei a coragem de “roubar” os vídeos que a Globo inseriu na matéria e que podem ser vistos na seguinte ordem: uma ótima reportagem sobre a transição; uma reportagem de Daniela Lima na GloboNews sobre os 40 anos das “Diretas Já” (2024); a reportagem de época sobre a posse de Sarney como presidente em exercício (interino); idem, sobre a manhã de 15 de março; e um trecho do discurso do político antes de assumir o cargo. (E lá estava também, à esquerda, a igualmente inamovível Roseana...).

P.S. André Franco Montoro foi um dos melhores políticos que São Paulo já teve, é uma alegria o ver em tantos momentos nesse período tão importante:











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