sábado, 3 de agosto de 2019

Nazismo de esquerda e mais absurdos


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Os comentários postados por usuários nos vídeos do meu canal do YouTube, a TV Eslavo, bem como nas publicações que lanço na aba “Comunidade” da página inicial, revelam muito sobre o que eles gostariam de aprender mais e o que eles já sabem sobre determinados assuntos. É claro que muitos só vêm lá pra impôr os próprios pressupostos indiscutíveis e apenas censurar outros usuários só porque eles pensam de forma diferente. Mesmo assim, o engajamento intelectual em meu canal tem crescido bastante, e ao lado de trolls bastante desocupados, têm surgido comentaristas certeiros e com muitas leituras sobre os temas, mesmo que eu não concorde com as posições deles. É óbvio que, dado o material encontrado na TV Eslavo, quase sempre as discussões são a respeito da natureza e consequências dos regimes comunistas do século 20.

Não vou aqui esgotar o tópico nem expor minhas próprias conclusões, mas mostrar como interajo com os internautas e o que mais tem sido julgado correntemente. Continuando a série, mudo de assunto reproduzindo um texto da aba “Comunidade” em que critico a ideia bizarra e estropiada de que o nazismo teria sido uma ideologia “de esquerda” e que o regime nazista teria sido de caráter “socialista”. Mesmo os mais renomados acadêmicos sempre fizeram comparações entre Iosif Stalin e Adolf Hitler, demonstrando vários pontos de aproximação entre os dois governos e as duas personalidades. E inclusive intelectuais muito anticomunistas e pró-liberais como Ernst Nolte, François Furet e Stéphane Courtois, mesmo não sendo definitivos quanto à posição do nazismo e do fascismo no espectro ideológico, jamais disseram que ele seria nitidamente de esquerda, muito menos que o nazismo veio do comunismo ou que ambos tiveram a mesma fonte intelectual.

A leitura da historiografia séria e o conhecimento dos fatos históricos e do contexto da época, mesmo que as interpretações variem demais, desmentem esse delírio tipicamente brasileiro de que “o nazismo é de esquerda” e que “Lenin ou Stalin engendrou Hitler”. Estamos virando uma vergonha no resto do mundo, sobretudo porque queremos ter uma certeza arrogante sobre a Europa, mas sem nenhuma leitura ou bagagem aprofundadas! Basta lermos um ou dois artigos de qualidade duvidosa, um ou dois vídeos bem feitos por personalidades histéricas, e pensamos ter o mapa do tesouro, só porque são os argumentos que nos agradam mais. Os textos foram corrigidos e tiveram tiradas suas marcas de oralidade ou descontração, exceto ocasionais palavrões. As repostas dadas no canal mesmo estão marcadas com “TV Eslavo”, e as que escrevi pra esta postagem, com “O que penso”.



Meu texto inicial: Se o nazismo era “de direita” ou “de esquerda” é uma questão bizantina, que nada tem a ver com o essencial: sob Hitler, a Alemanha se tornou um país mais fortemente capitalista. E por quê? Não foi abolido o mercado, não foi expropriado o capital, foram destruídas todas as organizações operárias pra que o patronado controlasse absolutamente as condições de trabalho, foi ampliada a industrialização (que, tal como na história dos EUA, se move sobretudo por meio da produção bélica) e controlada a inflação, e não mudou de forma alguma a organização social (os ricos ficaram mais ricos, os pobres continuaram pobres e a antiga classe feudal prussiana continuou poderosa, mas agora virando industrial).

Os binômios “estatismo/liberalismo”, “capitalista/socialista”, “direita/esquerda” e “ditadura/democracia” não têm nenhuma correlação entre si. Por quê? Existem ditaduras capitalistas liberais de direita (Pinochet); ditaduras capitalistas estatistas de direita (Brasil militar e, pasmem, Vargas); democracias capitalistas estatistas de esquerda (Inglaterra trabalhista pré-Thatcher); democracias capitalistas liberais de direita (Inglaterra de Thatcher, e o objetivo de Bolsonaro); democracias capitalistas liberais de esquerda (FHC, social-democracia no Chile, Europa dos anos 90 e 2000 ‒ incluindo trabalhismo pós-Thatcher ‒ etc.); democracias capitalistas estatistas de esquerda (Lula e Dilma); ditaduras capitalistas estatistas de esquerda (Egito pré-2011, Mugabe, Gaddafi, Assad, em algum grau Putin e Chávez/Maduro); ditaduras comunistas estatistas de esquerda (URSS, China maoista e similares, além da Iugoslávia, mas com mercado um pouco mais livre); ditaduras capitalistas estatistas de esquerda (China atual: sim, há capitalistas, mas supercontrolados).

Enfim, vai do gosto do freguês, mas só pra dizer o óbvio:

  1. Correlação de que direita é necessariamente capitalista, que é necessariamente liberal e que é necessariamente democrática só existe em cabeça de adolescente, porque o que define capitalismo é a propriedade privada dos meios de produção (i.e. do capital), e não mais ou menos Estado, mercado livre ou controlado, Estado ditatorial ou democrático.
  2. Mesmo regimes capitalistas democráticos às vezes recorrem a uma intervenção maior do estado justamente pra manter o domínio privado do capital (contra ameaças do tipo insurreição operária), sejam de direita (de Gaulle na França) ou esquerda (Attlee na Inglaterra).

O fato de dizer que o nazismo era capitalista (ou, talvez, mesmo de direita nos valores) não deve irritar os capitalistas liberais democratas de direita, exatamente porque a análise histórica concreta nada tem a ver com reducionismos feitos por polemistas toscos de esquerda, que acham que “capitalismo é direita e direita é nazismo”, ou que “esquerda é democrática em sua essência, portanto Maduro, Assad, Mao e Stalin são democratas”. Certas direitas não devem incorrer no mesmo erro de achar que o mundo é feito de binômios!

Depois de uma galera ficar resmungando que eu “não conhecia a terceira posição” ou “não sabia o que ela era”, como se isso fosse resolver a discussão e como se eles quisessem achar que sabiam mais que eu “lacrando” a discussão de modo simplista, com rótulos e categorias que eles acham aleatoriamente na internet, fiz este adendo:

“Terceira posição” é um rótulo que o próprio Hitler e semelhantes inventaram pra dizer aos olhos do povo que não eram “nem direita, nem esquerda”, ou seja, algo “novo”, o que era absolutamente falso. Sem fazer equiparações, mas é a mesma coisa que o Bolsonaro dizer que representa “o novo”, mas ter passado 30 anos sem resultado concreto na atividade parlamentar, e como presidente recorrendo às mesmas práticas de barganha e negociação com o Congresso, as quais, na verdade, são essenciais pro funcionamento do país.

Voltando ao fascismo, nunca devemos aceitar os rótulos que os próprios autores se dão ao longo da história, mas analisar a estrutura social subjacente à “superfície” política. A primeira coisa que Hitler e Mussolini fizeram foi esmagar e destruir, fora de qualquer restrição judicial, o movimento operário organizado, e com mais ferocidade ainda os sociais-democratas (ou socialistas) e os comunistas. O resultado que isso teve foi uma liberdade imensa pra que patrões pudessem ter suas taxas de lucro aumentadas, explorassem o quanto quisessem os trabalhadores e proibissem qualquer reivindicação operária substancial. Em resumo, o capital (i.e. empresariado e industriais) se valeram de um regime de força pra que pudessem manter a economia funcionando como eles mesmos queriam. E essas oscilações “à direita” e “à esquerda” são comuns em regimes capitalistas, mas se referem apenas à troca de governos, em que capitalistas aceitam um controle mais ou menos restrito às suas atividades, mas não cedem suas propriedades, como ocorreu exatamente no governo “comunista” (!) do Lula (não por menos, vários analistas da época apontaram semelhanças entre a política econômica de Dilma e a do ditador militar Ernesto Geisel).

Por isso mesmo é um acinte à inteligência dizer que nazismo e fascismo são socialistas, ou mais ainda de esquerda! Assim, podemos tranquilamente encaixar fascismo e nazismo como ditaduras (forma de governo) capitalistas (formação socioeconômica) estatistas (papel do Estado, sobretudo na vida do povo, mas sem tocar nos capitalistas, que em algum grau aceitaram essa intervenção, mas pra manter o próprio poder) de direita (no plano dos valores, mantendo o tradicionalismo, a religião e a hierarquia).

Terceira via é uma forma envergonhada de dizer que Hitler não seria “de direita” ou “de esquerda”. Exatamente porque numa formação social em que predomina o capitalismo, não precisa haver exatamente um governo de direita. Partido ou ideologia política é uma coisa, formação socieconômica é outra e não se altera da noite pro dia. E foi justamente porque Hitler não alterou a propriedade do capital é que o país continuou sendo economicamente capitalista. E como eu disse, maior ou menor intervenção do Estado não altera esse caráter, que é justamente o erro de alguns liberaloides: mais ou menos Estado nada tem a ver com a posse efetiva do capital (a diferença no caso da URSS é que justamente o capital foi expropriado, o que não ocorreu em outros países).

E o que poucos conhecem ou fingem conhecer: nunca na Alemanha os capitalistas tiveram tamanha liberdade de explorar os trabalhadores, embora um ou outro empresário fosse antinazista. Neste caso, é óbvio que ele foi perseguido por razões políticas, e não econômicas. Reiterando o argumento: o que determina se um país é “capitalista” ou “socialista” não é ter respectivamente um governo “de direita” ou “de esquerda” ou ter “Estado mínimo” ou “Estado interventor”, e sim se o capital ou os meios de produção são de propriedade privada (caso da imensa maioria do mundo) ou pública (em tese, propriedade popular ou operária, mas na prática do Estado que afirma representar o povo).

Internauta 1: É como se estivéssemos ainda no período da bipolaridade. Eu diria que você é centrista, mas eu acho que na real é isso mesmo. Pelo que li no meu livro de História, o governo de Hitler era de extrema-direita, pois além de perseguir pessoas com deficiência, mórmons, evangélicos, católicos e Testemunhas de Jeová, ele cultivava ódio aos comunistas. Fora que não foi só isso: do socialismo (implantado pelas ideias de Karl Marx) evoluiu ao fascismo (comandado por Benito Mussolini), que evoluiu ao nazismo, enfim chegando a Adolf Hitler. O estopim da revolta socialista foi o impasse, na Revolução Russa, no POSDR (Partido Operário Social-Democrata Russo), em que de um lado estavam os bolcheviques (socialistas) e do outro lado estavam os mencheviques (capitalistas): um era liderado por Lenin, o outro era liderado por Iuli Martov.

O que penso: Hitler não perseguiu “evangélicos e católicos”, mas evangélicos e católicos que se opunham ao regime. Tanto que vários autores lembram o “vergonhoso passado” de colaboração do alto clero de ambas as igrejas (luterana, no caso dos evangélicos) com o regime nazista. Um dos padres simples perseguidos por Hitler foi o alemão Joseph (José) Kentenich, que quando veio ao Brasil fundou em Atibaia, SP, a comunidade de Nossa Senhora de Schoenstatt.

Quanto à evolução “do socialismo ao fascismo e ao nazismo”, isso não existiu, sobretudo com Hitler: quando fundou o partido fascista, Mussolini tinha rompido com o socialismo (na época, o reformismo da 2.ª Internacional), e não o desenvolvido, enquanto Hitler jamais foi socialista; muito pelo contrário, se envolveu com grupos militaristas e ultranacionalistas logo depois de ter lutado na 1.ª Guerra Mundial (na qual foi ferido e ganhou a Cruz de Ferro por bravura) e entrou no futuro partido nazista ainda no comecinho dos anos 20, enquanto era desmobilizado do exército. Hitler, portanto, não fundou o NSDAP, mas logo lhe tomou a liderança e deu a forma final. Na mesma época, elaborou o grosso da doutrina nazista escrevendo o livro Minha luta adivinhem onde? Na prisão, onde ficou por apenas uns meses por ter tentado um golpe de Estado na região da Bavária!

Das duas uma: ou o livro de História dele é ruinzinho, ou o menino é ruim em interpretação de texto...

Internauta 2: Gostei da explicação, mas para simplificar, sugiro a todos que afirmam que o nazismo era de esquerda, que vão a qualquer manifestação neonazista portando qualquer símbolo caro à esquerda (a foice e o martelo, bandeira vermelha, fotos de Marx, Lenin, Che ou Lula) ou gritando qualquer palavra de ordem esquerdista (“Abaixo o controle dos meios de produção”, “Cuba sim, ianques não” ou um inofensivo “Lula livre”). Sintam a reação dos “esquerdistas” à sua volta. Essa é a resposta mais clara, simples e prática para quem ainda tem dúvida nessa questão.

Internauta 3: A cabeça dessa galera iria explodir se eu mostrasse o socialismo de direita de Saint-Simon baseado em Adam Smith, que existia bem antes de Karl Marx, e que o anarquismo é socialismo sem Estado.

Internauta 4: Já vi ancap [anarcocapitalista] dizendo que a ditadura militar foi uma ditadura socialista de centro-esquerda!

Internauta 5: Antes da guerra, em 1934, os nazistas já controlam a iniciativa privada, tipo o que era produzido, como deveria ser produzido e a quem seria distribuído, e preços e salários eram decididos pelo governo. Então não era muito pró-livre mercado, embora a maior parte da economia fosse “privada”.

O que penso: E o que foi que eu acabei de dizer? O capital era privado, sem aspas, porque continuava como propriedade dos capitalistas, enquanto a intervenção estatal na economia, como eu disse (e que o rapaz citou), não é suficiente pra definir socialismo. Como escreveu Ralph Miliband, o patronado nazista aceitou essa intervenção pontual, sem expropriação, pra controlar o movimento operário (achatando salários e fechando sindicatos) e aumentar os lucros. Tanto que quando o nazismo caiu, os empresários não moveram uma palha pra defendê-lo e aceitaram igualmente a ocupação ocidental no lado oeste da Alemanha, que igualmente suprimiu o movimento operário e garantiu condições conservadoras de reconstrução. Além disso, as economias de guerra da Europa, dos EUA e mesmo do Brasil exigiram então um forte controle estatal de preços, produção e distribuição, sem que por isso falássemos em “esquerda” ou “socialismo”. O nazismo, na prática, se transformando numa indústria bélica gigantesca, vivia em permanente estado de guerra, porque o expansionismo estava justamente no cerne da ideologia (ao contrário, por exemplo, do comunismo).

Internauta 6: Eu acho que é terceira posição ideológica. Até porque o Führer chamava o Churchill de “porco capitalista”, odiava todas as potências ocidentais com sistema capitalista e chamava os comunistas de “praga vermelha”.

O que penso: “Eu acho” e “ele disse” são suficientes pra não merecer resposta. Discurso público é um terreno tão pantanoso, que é justamente o que diz mais sobre as contradições de um agente histórico e político. Basta lembrarmos que até a 2.ª Guerra Mundial, a política adotada por Inglaterra e França (com os EUA alheios ao assunto) foi de “apaziguamento” de Hitler, ou seja, a aceitação gradual de todas as anexações territoriais que ele ia fazendo, pra ver se ele enfim parava de vez: não adiantou. Vemos também que Stalin foi muito cauteloso, até 1941, em adotar um discurso antifascista consequente, tanto que a Comintern mal conseguiu sequer chegar a uma definição clara de fascismo e de como o combater até 1935, quando praticamente entrou em coma. E o pacto Molotov-Ribbentrop, por acaso seria suficiente pra chamar Hitler de “esquerdista” e Stalin de “direitista”, sendo que todos os países na mira da Alemanha menos procuravam acabar de vez com a ameaça do que ganhar tempo? O fato do regime nazista ter sido uma ditadura capitalista estatista de direita nada tem a ver com Hitler “odiar” as potências capitalistas, já que, como eu disse, o que define capitalismo é propriedade privada dos meios de produção, e não forma ou discurso de governo. A guerra entre as potências europeias era muito mais por mercados econômicos do que por concepções de política ou de civilização.

Internauta 7: Nem de direita, nem de esquerda. O nazismo é apenas uma ideologia nacionalista e socialista, algo próximo da atual Coreia do Norte.

O que penso: Mais um que não entendeu o que define “capitalismo” e “socialismo”. E é exatamente esse ponto que distingue a Alemanha nazista da Coreia do Norte, porque neste país sequer existe mercado ou propriedade privada. Impossível comparar as duas estruturas! Além disso, as circunstâncias históricas são diversas: enquanto o nazismo foi um fenômeno de reação interna à intervenção do Tratado de Versalhes na soberania do país, a Coreia do Norte foi um satélite da URSS (e depois da China) surgido como solução de compromisso à expulsão dos japoneses da península, em que soviéticos e norte-americanos dividiram o controle territorial, levando à posterior criação de dois países (exatamente como na Alemanha pós-1949). A Coreia do Norte se tornou então praticamente uma concessão feudal à família Kim, em que o fundador Kim Il-sung implantou uma espécie de governo e ideologia com características absolutamente irracionais, bizarras e idiossincráticas, traços continuados pelo igualmente idiossincrático filho Kim Jong-il. Na Alemanha, a estrutura política era muito complexa pra que fosse tornada de propriedade familiar, o que mesmo Hitler (que não deixou descendentes) não fez nem tentou fazer.

Internauta 8: Não é capitalismo se existe Estado, e Hitler apoiava o socialismo. [Esse fumou legal...]

TV Eslavo: O capitalismo só pôde se implantar com o apoio primeiro dos Estados absolutistas, depois dos Estados burgueses, que promoveram, sobretudo, a barbárie colonialista, razão maior pela qual a Europa hoje é rica. Nenhuma iniciativa sobrevive sem um investimento mínimo de Estados eficientes (e até conservadores reconhecem isso) em educação, infraestrutura, energia etc., projetos gigantes que a iniciativa privada (ainda) não tem condições de bancar. Quanto a Hitler, sugiro que leia qualquer escrito ou discurso dele, em que jura de morte o marxismo, o socialismo, o comunismo e coisas semelhantes (e não, o fato do nome do partido ser “nacional-socialista” em nada indica que era de esquerda, já que na época podia haver socialistas com posições pró-mercado ou conservadoras). Ou que conheça a história: os primeiros partidos que ele fechou em 1933 foram o social-democrata e o comunista...