quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

‘Caturro 13’ ou ‘Filando a boia’ (poema)


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Eu traduzo música e poesia (do português pra outras línguas ou vice-versa) em três ocasiões: quando estou inspirado, quando a peça me agrada esteticamente ou quando ela me diz algo sobre a atualidade. Esta postagem se encaixa no terceiro caso, praticando o que em sua teoria os tradutores chamam transcriação. Em tradutologia, transcriar não é apenas traduzir palavras, ocorrendo que o resultado não soaria inteligível na língua de chegada; é também traduzir ideias, conceitos, situações, personagens, elementos culturais, de forma a transmitir não exatamente a carga semântica do texto, mas antes uma aproximação do efeito que ele teria causado no ambiente original.

O exemplo mais básico é quando trocamos personagens de folclore, datas festivas ou provérbios por outros que queiram dizer algo igual ou parecido, sempre com palavras diferentes, e em geral repassando uma mesma ideia de alegria, tristeza, moralidade, festividade, humor, suspense etc., e não necessariamente a visão que faríamos com a figura traduzida literalmente. Isso pode ser chamado de transcriação, mas num sentido mais amplo, transcriar também é reconstruir todo um texto, refazê-lo, ordená-lo e montá-lo todo, de modo a quase sempre não permanecer nenhuma equivalência literal. Assim, o que tentamos reconstruir (já que jamais nenhuma tradução é perfeita) não é o significado literal, digamos, de um poema, mas sua função dentro do contexto em que ele apareceu primeiro.

Por isso que dizemos transcriar, e não, por exemplo, recriar: nós não tiramos nosso material do nada, mas de alguma forma transportamos (ou tentamos) pra nossa cultura o mesmo instrumento, sensação ou efeito que serviram ao deleite de outra cultura. E acredito que essa é uma das mais nobres maneiras de fazer uma nação progredir. Primeiro, porque as(os) tradutoras(es) sempre foram indispensáveis ao aperfeiçoamento das civilizações, já que nenhum povo podia viver apenas com sua própria língua e costumes. Novas incorporações sempre foram essenciais pra saltos de qualidade, embora nem sempre todos fossem poliglotas. E segundo, porque a transcriação, mais do que qualquer outra modalidade de tradução (as quais, obviamente, sempre exigem talentos parecidos), demanda um cabedal intelectual, uma empatia ou alteridade, uma criatividade e uma desinibição (e também, portanto, maior abertura a críticas construtivas) em grau muito mais alto. O extremo oposto da quase “transposição de tijolinhos de significado” dos manuais de máquinas e utensílios.

Aprender novos idiomas, e de roldão conhecer outras culturas (mesmo que até um momento somente por revistas ou pela internet), é condição essencial pra querermos evoluir mais e derrotarmos todo tipo de xenofobia e estranhamento nacional. Infelizmente, estamos vivendo no mundo todo uma ressurgência dos chauvinismos porque toda essa indústria multicultural, tecnológica e telecomunicativa (bem como as atuais redes sociais) só levou em conta seu papel material e ignorou ou desprezou o trânsito de valores que ela acarretava. Apenas agora, por exemplo, Mark Zuckerberg está querendo mudar os misteriosos “algoritmos” visando tornar seu site mais voltado pra família e menos pra empresa jornalística. Já passamos do tempo em que “escolinhas de inglês” deviam enlatar papagaios pro mercado e inculcar a sede de lucro. O contato com línguas estrangeiras, com ou sem tradutoras(es), qualquer língua que seja, reeduca todos os comodismos cerebrais e nos leva a perceber como outras pessoas enxergam o mundo, não necessariamente de um jeito melhor ou pior. Apenas diferente.

Imagine-se que amplo papel tem na cultura, sobretudo na literatura e nas artes plásticas, a tradução levada ao limite na modalidade da transcriação. Pois cultura não é somente acúmulo de informações ou domínio das técnicas necessárias pra atuar numa profissão. (Talvez cultura nem seja isso, pois senão não teríamos tantos empresários e cientistas incultos ou desaculturados por aí...) Cultura tem a ver, antes, com cultivo, cultivar, palavras com que tem em comum o radical de origem latina. A cultura não visa apenas juntar dados, visa também criar valores, educar sensações, aprimorar o espírito. Por isso ela é tão fundamental quanto as chamadas “disciplinas científicas”, não se justificando, assim, a marginalização da música e das artes plásticas nos currículos escolares. De fato, vemos no Brasil um movimento pra tirar essa habilidade do domínio jovem sob o pretexto de uma “preparação melhor pro mercado”. Ora, mas não existe mercado livre sem trânsito, trocas, viagens, deslocamentos, intercompreensões. E a cultura é justamente o grande carrefour das civilizações, o feirão onde se troca de tudo. Deste modo, não existe técnica neutra, sem um valor embutido, sem uma marca cultural de origem. Na verdade, a própria inspiração cultivada é a chave e o substrato que dá origem e favorece todo tipo de criação/inovação conceitual.

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Após este pequeno manifesto involuntário, creio estarem dadas as condições pra que se entenda a filosofia por trás da presente e de toda minha (trans)criação poética. Quando fiz uma extensão de língua latina na Unicamp, ministrada no primeiro semestre de 2017 pela Prof.ª Bárbara Polastri, ela não se limitou ao conteúdo programático em si e nos passou vários exemplos de textos e resquícios históricos relativos à Roma antiga. Um deles foi uma folha com quatro poemas de Caio Valério Catulo, poeta romano que viveu aproximadamente de 84 a 54 AEC (antes da era comum) – ou seja, no século clássico da língua e cultura latinas – e foi o único a legar à posteridade obras do círculo que Cícero chamou de "poetas novos”. Catulo era conhecido (e criticado) por ter trazido à literatura temas simples, prosaicos e diretos, sem a grandiloquência ou mitologia dos escritos tradicionais.

Os poemas dados pela Bárbara foram traduzidos, reunidos e anotados por João Ângelo de Oliva Neto, professor de Língua e Literatura Latina da USP, no volume O livro de Catulo (São Paulo, Edusp, 1996), que contém diversos de seus ditos carmina (sing. carmen), literamente “cantos” ou “poemas”. Um deles, denominado “Catullus XIII” ou “Catulo 13”, trata de um convite a um amigo pra que ele venha jantar na casa do narrador, mas que de fato traga toda a comida, porque seu bolso está “cheio de teias de aranha”. Em troca, receberia “amores, amizade e perfumes”, numa temática bastante familiar a nossos folgazões brasileiros. São esses clássicos que sempre dizem algo ao cidadão comum, não importa a época e lugar, os resistentes ao tempo, e tomo a liberdade de reproduzir abaixo o texto em latim (com maiúsculas apenas em nomes próprios) e a tradução do Prof. João Ângelo:


cenabis bene, mi Fabulle, apud me
paucis, si tibi dei fauent, diebus,
si tecum attuleris bonam atque magnam
cenam, non sine candida puella
et uino et sale et omnibus cachinnis.
haec si, inquam, attuleris, uenuste noster,
cenabis bene; nam tui Catulli
plenus sacculus est aranearum.
sed contra accipies meros amores
seu quid suauius elegantiusue est:
nam unguentum dabo, quod meae puellae
donarunt Veneres Cupidinesque,
quod tu cum olfacies, deos rogabis,
totum ut te faciant, Fabulle, nasum.

Jantarás bem, Fabulo, em minha casa,
muito em breve se os deuses te ajudarem,
se contigo levares farto e bom
jantar, e não sem fina artista, vinho,
graça e as risadas todas. Isso tudo,
se levares, encanto meu, garanto,
jantarás bem, pois teu Catulo tem
o bolso cheio de teias de aranha.
Em troca aceitarás meros amores
e o que há de mais suave ou elegante,
pois um perfume te darei que à minha
garota Vênus e os Cupidos deram,
que ao sentires aos deuses vais pedir
te façam, Fabulo, todo nariz.


Nesta transcrição latina, como é costume no meio acadêmico, usa-se “u” no lugar do “v” minúsculo e “i” no lugar do “j”, letras cuja introdução só se deu séculos depois. Existem também outras traduções: pode-se ler nesta página a inovadora versão de Haroldo de Campos, e encontra-se neste blog sobre cultura clássica uma tradução literal do latim. Em espanhol, podem-se ler nesta página os poemas de 1 a 60 de seus carmina, traduzidos literalmente por Ana Pérez Vega.

Agora, apresento-lhes minha transcriação deste poema, que realizei em Bragança Paulista na mesma quarta-feira, 14 de junho de 2017, em que a Bárbara nos apresentou Catulo (aluno à tarde, poeteiro à noite). Piada explicada não tem graça, então vou dar o poema primeiro (a “Carminha”, hahaha), vocês fruem/entendem como quiserem, e depois explico o que eu tinha em mente ao escrevê-lo. Atribuí-lhe também uma nova métrica, semelhante à latina, mas baseada na do português, um esquema próprio de rimas (ABAB CDCD EFE FEF) e a forma de um soneto, inclusive com o “verso de ouro” final. Quanto ao nosso Fabullus (Fabulo), apenas recentemente descobri que a pessoa responsável pelo sucesso de K.O. e Corpo sensual, e a qual não tinha ainda “bombado” na época, foi legalmente registrada como “Phabullo”. Eu poderia ter agora trocado nosso personagem, por exemplo, pra “Pabllinho”, mas como o texto não concerne à sua área de interesse ideológico, mantive o mais sonoro, natural e popular Fabinho:


Caturro 13, ou Filando a boia

Que bom, Fabinho, se vier na minha casa,
Aproveitando uma piscada da patroa,
Comer churrasco, pão, pirarucu na brasa,
Tomar cerveja, mulherada e pinga boa.

À tarde a gente vai jogar conversa fora,
Faz futebol, rasga viola no modão.
Mas meu querido, compra tudo e traz na hora
Porque o papai aqui tá sem nenhum tostão!

“É a crise”, eu digo, amigos tão aí pra isso,
Pro aperto, pra gandaia ou pra esconder tramoia,
Aparecer sem marcar dia ou compromisso.

Garanto que a bocada vai ser muito joia,
Mas se, fedendo, der PT, gorfar no piso,
Fabinho, não vai mais filar a minha boia!


Primeiramente, vocês devem ter notado minha onipresente influência sertaneja, tanto na temática quanto no vocabulário: realmente, é o tipo de música de que mais gosto e escuto... Isso é errôneo? Não sei, gosto dessas poesias “misturadas” não por delírios literários, mas pra fazer graça mesmo, zombar de um domínio que sempre foi visto como etéreo e superior, apanágio de pessoas “iluminadas” e ditas mais talentosas. Quero mais que as pessoas riam do que se admirem; a dessacralização e a irreverência são as melhores armas contra mitos e trevas, e destruí-los é a missão de todo cientista.

Agora, por que “Caturro”? Tá na cara que vem do Catulo, mas vamos resgatar o sentido (dentre outros) do verbo caturrar, segundo o Aurélio: “questionar com insistência; teimar”, “mostrar-se caturra”, “caturra” sendo um adjetivo que pode qualificar uma “pessoa teimosa, agarrada a velhos hábitos, sempre disposta a achar defeitos, a discutir; pechoso”. Não temos uma associação plenamente direta com o tema da minha versão, mas se estendermos pro domínio da conversa, conchavo, folga, impertinência, delação e falta de autopercepção (“semancol”), até que se adéqua bem. Afora também a inserção de todo um cenário típico de fim de semana e lazer masculinos no centro-sul do Brasil (churrasco, peixes, pães, mulheres, etílicos, papo furado, futebol e, por vezes, música – “modão” e “viola” dão a localização final), troquei toda a temática de “amores, deuses e perfumes” (já que o clima não é de “rosas, versos e vinhos”!) pela suposta chantagem que o narrador estaria fazendo, pedindo almoço grátis em troca de ocultar algum segredo.

O encerramento de aparência surreal, em que o “hóspede” ameaça futuras proibições a um almoço do qual ele não é nem mesmo o financiador, termina de dar um choque no(a) leitor(a), embora não seja necessariamente a “transcriação” de um possível efeito gerado por “te façam, Fabulo, todo nariz”. Não sei se Catulo teve a mesma intenção que eu, mas a inserção desse efeito foi de minha própria decisão. Pra quem não conhece, “boia” é um antigo sinônimo rural de “comida, refeição” (especialmente almoço, e mais ainda de quem volta da roça), e “gorfar”, na verdade “golfar”, sempre escutei muito em minha cidade como sinônimo de “vomitar”, pelo menos no sentido fisiológico, e não apenas (ou nem mesmo) figurado.

O toque final, que vocês daqui a pouco vão achar ideia fixa minha, fica por conta de três elementos interligados. Por feliz coincidência, o número do poema é 13, código eleitoral do partido que governava o Brasil enquanto explodia a “crise” econômica a que se referia o narrador (na verdade, também pintada aqui como uma desculpa genérica, sendo de fato “É a crise” um bordão muito generalizado nas redes sociais). O “PT”, jargão popular pra “perda total” (o famoso vexame numa balada ou festa alcoólica), lacra o assunto. E, claro, pode-se ter a liberdade de fazer as mais diversas associações: feder, sujeira, corrupção, tramoia, fisiologismo, desordem, bebida e futebol, crise/falta de dinheiro, gastança além da conta, caturra/implicância, pedidos descarados... (Não, eu não sou um antipetista de direita fanático, mas acho que ninguém está imune à Santa Zoeira, exceto se estiver na intenção ser chulo, ofensivo ou ameaçador!)

Com isso encerro minha exposição, que já foi mais do que suficiente.



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