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Quem é Deus? Ou melhor, o que são os deuses? Desde o início da civilização, ninguém soube descrever com precisão esses seres. Ora são brotados da reorganização transcendental da realidade objetiva na cabeça de alguns profetas, ora são criados deliberadamente por condutores de massas para consolidar a coesão de seu rebanho ou lhe jogar goela abaixo certos valores tidos como sagrados. Devemos lembrar que os deuses não são sempre fantasmas, mas podem ser personalidades de carne e osso deificadas, vivas ou mortas. Sequer precisam ser entidades humanas: longe da beleza e magnitude do vento, do sol, dos rios e dos mares, podem ser ainda aqueles aparatos técnico-burocráticos que nos infernizam a cada metro que andamos. É destes que tenho mais medo.
Vamos saborear um pouco de história. Na idade primitiva, nossos tataravós cavernosos adoravam e procuravam controlar magicamente as forças visíveis e invisíveis da natureza, e por elas possuíam grande temor e insegurança. Aparentemente deu certo, até que o desenvolvimento da inteligência e da cultura gerou as primeiras figuras dignas do nome de deuses, ou seja, entes de forma humana com poderes mágicos, sobrenaturais ou de onipotência. Existiam em grande número e tratavam dos problemas mais específicos e diversos: nascimento, morte, amor, guerra, música, trabalho e tudo o mais que a sociedade podia conceber. (Alguém aí notou a semelhança nada casual com os santos católicos?)
Até que, há uns 3800 anos, se crermos nos relatos bíblicos, alguém decretou do nada que essa riqueza cultural toda devia ser estigmatizada com os nomes feios de idolatria, paganismo e o que valha, enquanto deveria existir apenas um, e somente um deus, reunindo, como se esqueceram de dizer, as piores características dos concorrentes anteriores. A ideia demorou pra pegar, mas pegou. E pegou pra valer. É claro que no meio do caminho o cara lá de cima adquiriu uma feição mais doce, mais terna e mais firmeza, embora vez ou outra se dessem aqueles velhos ataques de birra ciumenta. Mas ainda assim, para alguns sujeitos certamente bem endurecidos pelo calor abrasante do deserto, essa faceta melosa não colava, e finalmente consolidaram as duas características fundamentais de qualquer religião posterior: a sua ligação inextricável com meios e fins políticos, como já ocorria no fim do Império Romano e em alguns primeiros reinos medievais, e a noção de que não basta praticar sua própria fé, é preciso ainda obrigar os outros a fazê-lo e eliminar fisicamente os resistentes.
A economia simbólica (nem sempre respeitada, claro) não compensou o tanto de gente que foi pro outro mundo (será que foi mesmo?) por não concordar com o deus do vizinho (mas não era pra ser um só?), mas demorou séculos para que um grupo resolvesse ir além na praticidade e inventasse o deísmo. Na Europa Ocidental do século 18, consiste na solução prática de um deus que criara o universo, mas não fazia nada. Provavelmente ficava admirando sua obra-prima de longe, mas não queria meter o bedelho nos assuntos da gente. Na mesma época, outros foram mais além e eliminaram a lenda toda por completo, mas nos dois séculos seguintes, alguns de seus pretensos continuadores, ainda precisando de um dedinho pra chupar, construíram altares para a Humanidade com agá maiúsculo, para líderes políticos, livros, doutrinas ou até mesmo dinheiro, luxo, indústrias e poder. Voltaram a matar por tudo isso, como era de se esperar.
Hoje em dia, com exceção de alguns lugares menos afortunados do nosso planeta, a decência comum rejeita cortar a cabeça alheia por causa de uma divergência mínima sobre objetos que sequer olhos sadios podem enxergar. Porém, nossa raça de macacos quase pelados tem algumas peculiaridades muito engraçadas que merecem breves comentários.
Há pessoas que creem num deus “Big Brother”: vê tudo, pune tudo e recompensa tudo, se intrometendo no mínimo passo que a gente dá ou na mínima cena que a gente pensa. É um bedel maníaco, e os que acreditam nele não são menos maníacos, porque vivem com medo do que ele possa achar de suas atitudes ou reflexões. Pra piorar, são elas mesmas pentelhas iguais, porque pensam que as supostas faltas dos outros vão influir nelas mesmas, também. Elas não precisam de igrejas, precisam de psicoterapia urgente.
Num meio-termo, outras acreditam em Deus, mas não acham que ele seja esse chato problemático do Antigo Testamento, das cartas de Paulo ou do Corão. No mínimo, elas simplesmente compram aquela imagem do velhinho cristão bondoso e misericordioso, que está sempre ajudando e corrigindo a gente, ou, na melhor das hipóteses, não praticam a religião que dizem professar ou declaram explicitamente a crença no onisciente folgazão dos iluministas. Vivem tranquilas, despreocupadas, como se Ele não existisse, e em maior ou menor grau, mas geralmente baixo, não atormentam os semelhantes por causa daquilo que eles seguem ou deixam de seguir.
(Minha família é uma espécie de meio-termo do meio-termo. São católicos praticantes que acreditam que Deus recompensa e pune, mas que têm um conceito bem mais restrito de pecado, sem aquelas irritantes minúcias sexuais, linguísticas, profissionais ou ideológicas. É à saudável transigência dela, bem ao estilo luso-brasileiro, que devo minha liberdade e flexibilidade de pensamento, expressão e respeito à opinião alheia.)
Por fim, há os que, ao menos na teoria, largaram mão de tudo e se dizem laicos, humanistas, secularistas ou ateus, criticando os abusos e incoerências das religiões e supostamente vivendo tão calmos quanto os semicrentes citados acima. Será mesmo? Pelos que chegaram a essa conclusão por si sós após muita leitura, reflexão e aconselhamento, guardo um imenso respeito. Até mesmo alguns teístas são assim, e sabem separar o joio do trigo. Agora, há outros, mais seguidores das modinhas online que vemos por aí, tão insuportáveis quanto os vigiados vinte e quatro horas. Gostam das palavras de ordem ásperas, da revolta vazia, da briga fácil, da adulação cega a personalidades e da intransigência em taxar os diferentes como burros e atrasados. São os primeiros a retornar aos padres, pastores e até bruxos e astrólogos quando surge a primeira oportunidade.
Esses mitos são fichinha pra mim. Não me preocupo mais se eles vão ou não me fulminar com um relâmpago celestial ou se meus conhecidos gostam ou não de brincar de amigo invisível. Minha preocupação agora está em outra: os deuses laicos. Por vezes me assusto com um ou outro caudilho de Brasília ou do Palácio dos Bandeirantes que quer aumentar a idade mínima para a aposentadoria ou reduzir os gastos com salários e investimentos na saúde e na educação. Mas piores do que os próprios são as máquinas que lhes servem: Fazenda, Receita, polícias, radares e câmeras nas estradas, fiscalização pela internet, “malha fina”, leis antidrogas, avaliações, concursos-surpresa... Foi-se o tempo em que pecávamos contra Deus, mas nossos bolsos saíam ilesos (ao menos, obviamente, se não o quiséssemos). Atualmente, o mínimo descuido pode gerar uma grave infração aos olhos do poder presumivelmente público. Não que a tecnologia não deva ajudar a punir aqueles que cometem faltas contra a população, mas o moralismo militante que tomou conta do estado de São Paulo, em especial, está ultrapassando os limites do razoável e confundindo certas escolhas privadas com ações realmente danosas a toda a coletividade, no mesmo esquema do pecado meramente cogitado.
Certa vez li que as pessoas não precisam de Deus, mas de polícia. Agora também são câmeras e outras formas de vigilância virtual. De fato, não busco respostas, apenas estou apontando o problema. Mas já dá mais o que pensar a impressão de que, retornando àquele velho modelo da divindade controladora, vivenciaremos futuramente uma nova onda de neuroses causadas pelo receio de uma punição fácil e, já que informatizada, praticamente incontestável.
Bragança Paulista, 17 de agosto de 2011.
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