domingo, 2 de junho de 2019

Impressões sobre “Caim” (Saramago)


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NOTA: Este texto foi originalmente publicado em 19 de janeiro de 2010 no meu antigo blog “Pensadores Libertos”, que mantive entre 2009 e 2010 e cujas postagens salvei em sua maioria. Ele tinha o nome “Caim: não uma resenha, mas um apanhado de impressões” e o repostei no blog Materialismo.net em 31 de dezembro de 2012, quando fiz umas poucas alterações textuais. Os leitores hão de me desculpar por certos desvios da norma estilística que busco seguir hoje, mas eu costumava na época escrever com bem mais virulência, pessoalidade e sinceridade, num momento de introdução à polemística pública salpicado ainda de bastante intimismo, se bem que as ideias centrais e o argumento continuam os mesmos em 2012-13 e em 2019. O polímata português morreria em 18 de junho de 2010, deixando um exemplo ao jamais renunciar a suas convicções ou se dobrar aos ditames da sociedade ocidental polida e supersticiosa.


Antes de desfrutar Caim, o mais recente lançamento de José Saramago, confesso nunca ter tomado contato com o célebre e inteligente escritor português. Ano passado, mais precisamente no segundo semestre, comprei dois livros dele no sebo do instituto em que estudo, Ensaio sobre a cegueira e O evangelho segundo Jesus Cristo, e até agora não entendo com alguém pôde desfazer-se de tais preciosidades, e mais, não sei como tive a sorte de conseguir encontrar as duas obras num espaço de tempo tão curto!

De fato, eu havia começado a ler O evangelho... antes que acabasse o semestre letivo, mas as obrigações acadêmicas impediram-me de continuar, embora tivesse conseguido terminar o primeiro capítulo. Não se podem cobrar de mim quaisquer avaliações dessa breve incursão, já que li com bastante desatenção, preocupado se estava tomando muito tempo útil que poderia ou deveria ser empregado no adiantamento de minhas tarefas, e já não me recordo de quase nada do que coloquei diante de meus olhos. Certamente é um livro muito bom, mas ainda não tive a oportunidade de chegar a uma conclusão mais definitiva, coisa que farei após sua leitura completa daqui a algum tempo.

Voltando a este Ano do Senhor de 2010, viajei à Serra Gaúcha num cansativo pacote turístico da CVC entre os dias 3 e 10 de janeiro, mas consegui encontrar tempo para, em Gramado, ir a uma livraria próxima à “Rua Coberta” e procurar alguma obra que pudesse começar nos poucos momentos livres que ainda restariam naquela aventura. Nesses dias, já havia lido Como vejo o mundo, de Albert Einstein, o qual me deixou impressões muito positivas, e Einstein: reflexões filosóficas, de Irineu Monteiro, que mistifica demais certas opiniões humanísticas do físico alemão e algumas de suas descobertas científicas.

Encontrei muitos títulos bons, mas como não podia levar todos... Um deles era Deus: um itinerário, de Régis Debray, que eu julgava ser uma resposta à onda “neoateísta” dos últimos anos (notar a semelhança do título com Deus: um delírio), mas descobri pela Wikipédia que havia sido escrito originalmente em 2001, portanto, cinco anos antes do livro de Dawkins. Não comprei, mas fiquei curioso em conhecer um pouco mais o autor, e li o artigo sobre ele na Wikipédia francesa. Realmente ele tem uma visão muito equilibrada sobre a religião e a transcendência, e acredito que ele será uma de minhas leituras nos próximos tempos.

O fato é que me decidi finalmente por Caim, o qual já estava pensando em comprar em São Paulo ou em Bragança Paulista. Queria muito conhecer Saramago, e já havia tomado contato pela internet com muitas impressões sobre a obra. Pelo que em consta, o autor havia deixado um pouco de lado a temática religiosa, a qual frequentemente abordara de modo crítico e polêmico, a se notar pelo Evangelho... já citado acima, e agora a retomava, deixando o Novo Testamento para incursionar no Antigo, coisa que, acredito, é muito mais difícil não só pelo tamanho desse escrito como também por várias características que lhe são intrínsecas ‒ implausibilidade das narrativas, excesso de personagens, abordagem sucessiva de inúmeras gerações, características culturais e temporais que nos são totalmente estranhas e passagens que ultrajam nossas concepções atuais de direitos humanos. Portanto, só daí se pode depreender que Saramago tem um quê de gênio, pois é preciso muita disposição para que um ateu possa deparar-se com um texto que, além do caráter religioso e extremamente moralista, apresenta todos esses obstáculos na ordem da inteligibilidade.

Enfim, do que trata o livro? Não vou me dar à gafe de contar o enredo, mas tentarei pontuar brevemente em torno de quais fatos e pessoas é montada a trama. Assim como no Evangelho..., Saramago, apoiando-se no conhecimento adquirido sobre parte do Antigo Testamento, reconta os principais pontos dessa parte preenchendo lacunas, criando diálogos “impossíveis” e humanizando as personagens, que de seres santos, carolas e tementes a Deus (ou “deus”, segundo o texto) passam a ser pessoas com sentimentos, sejam de prazer, ódio ou alegria, e finalmente enxergam a contradição existente entre a “misericórdia” do Senhor (ou “senhor”...) e suas ações destrutivas movidas pelo ciúme, pela inveja e pela prepotência.

Após uma divertida e engraçadíssima narrativa do período de gozo no Éden e da expulsão de Adão e Eva desse jardim, aparece a figura de Caim (ou “caim”, conforme o hábito particular de escrever nomes próprios com inicial minúscula), marcado pelo desprezo do criador, as zombarias de Abel e o assassinato do irmão, muito incoerentes com um mundo que deveria ser pura harmonia se fosse planejado por uma inteligência superior (e como são acres e espirituosas, no livro, as dúvidas sobre a real inteligência de Deus!), como pregam hoje os infelizes defensores do “design inteligente”.

Condenado a vagar pelo mundo, Caim, em fantásticas digressões temporais e espaciais, visita diversos episódios bíblicos, sempre ressaltando as ofensas ao bom-senso do leitor (como a geração dos netos de Adão e Eva sem que houvesse outras mulheres com quem procriar), a pouca paciência de Deus para com os fracos e os não judeus, a impossibilidade de levar uma vida de continência e desprezo do mundo e a origem completamente humana, com a complacência divina, dos males terrenos ‒ Satã, perto de Deus e dos seres humanos, chega a ser fichinha! Tudo isso com incontáveis pitadas de bom humor, sarcasmo crítico e anacronismos propositadamente hilariantes, como a ideia da Torre de Babel poder servir para a visita de futuros turistas...

Os cristãos ou exegetas bíblicos mais recalcados poderão dizer que tudo o que Saramago escreve é de existência implausível e ofende o caráter meramente “metafórico” de passagens como a liquidação de povos inteiros a mando do Senhor. Claro, obviamente o conteúdo de Caim é totalmente inventado, improvável e confuso, não só porque o protagonista vai e vem do presente ao passado, daí ao futuro, depois volta e depois começa tudo de novo, mas também porque o Deus aí retratado parece por demais terreno para quem deveria ser inescrutável, inacessível e invisível. Mas e a Bíblia? É melhor ou mais plausível por ser mais antiga ou mais enraizada na tradição? É mais moral por pregar a submissão cega e ter sua interpretação reservada aos líderes religiosos, ao contrário de Caim, um chamado ético à desobediência, à crítica e à observação inteligente? Os dois escritos, afinal, não seriam simplesmente literatura, obras do espírito geradas de acordo com as necessidades humanas e o instrumental de cada época?

Este é o fantástico do potencial humano: temos a capacidade de criar coisas que nem nós mesmos julgamos prováveis ‒ até que ponto os autores originais dos livros bíblicos, se é que existiram autores originais, criam no que eles mesmos escreviam? ‒, mas grandes fantasias, contudo necessárias para que continuemos nos reproduzindo (incluída aí também, sem dúvida, nossa sociedade) e inventando novos possíveis.

Mais do que isso, Caim é um alerta para os fundamentalismos gerados pela interpretação literal da Bíblia e sua imposição a pessoas de pouca instrução e senso crítico pouco desenvolvido. Obviamente, para quem não acredita no deus abraâmico, falar mal dele é inútil, pois, de acordo com tal visão de mundo, Ele simplesmente não existe. Por isso, tenho mais pena do que admiração por aqueles que poluem o Orkut com frases do tipo “Deus é um merda”, “Deus não presta”, “Deus é um filho da puta”... Por acaso os deuses de outras religiões não seriam igualmente responsáveis por gerar e cuidar de uma humanidade que, além de prejudicar a si mesma com guerras e armas de potencial ultradestrutivo, sofre com calamidades naturais possíveis e impossíveis de evitar, como as enchentes no Sul e no Sudeste brasileiros e o terremoto no Haiti e na República Dominicana, que retornou ao nível da animalidade um país inteiro, feito de seres humanos, justo eles, o centro da criação?!

Resumindo, Caim, conforme posso ver, não tem a intenção de falar mal de Deus ou da religião, nem mesmo do relato bíblico em si, mas dos usos que são feitos de tudo isso. Creio que os empregos das ideias são bem mais perigosos do que as ideias em si, afinal que mal teríamos em reconhecer que a Bíblia, pelo menos o Antigo Testamento, como uma grande obra de ficção, com uma linguagem belicosa totalmente comum e compreensível em seu tempo?

A crença de que todos os acontecimentos narrados na Bíblia ocorreram de fato, isso sim, é perigoso. Claro que a Igreja Católica já faz uma exegese mais racional, reconhecendo seu caráter fabuloso, mas não são poucos os grupos cristãos, sobretudo de evangélicos, mais precisamente pentecostais e neopentecostais, que não só inculcam em seus fiéis a veracidade desses relatos, como também tiram deles as conclusões morais mais medonhas e atrasadas, especialmente no que tange aos direitos das mulheres e dos homossexuais, ao aborto e ao comportamento sexual.

O que mais me impressiona é que até pseudociências são criadas para tentar “provar” a autenticidade da “palavra de Deus”, traçando o caminho inverso da verdadeira ciência: ao invés de perguntar “Aqui estão as provas, que conclusões tiramos delas?”, indaga-se “Aqui estão as conclusões, que provas encontramos para respaldá-las?”, num trajeto muito semelhante à introdução do marxismo cominterniano dentro do PCB nas décadas de 1920 e 1930. Parte desses pseudocientistas pensa ter encontrado provas arqueológicas e geológicas, por exemplo, da existência do dilúvio e da arca de Noé, quando não só uma enchente global seria um contrassenso como também a reunião, e mais ainda o recolhimento, de todas as espécies vivas numa arca, dos quais Saramago zomba genialmente, é logicamente impossível. Lamento muito que “escolas” particulares no Brasil equiparem essas lendas às conclusões científicas e, inversamente, também mentem aos seus estudantes que não só as conclusões de Darwin podem ser tão implausíveis quanto as lendas aí ensinadas como verdades, como também que elas são defendidas pelos cientistas como um dogma religioso, como se a ciência fosse feita de certezas imutáveis.

É claro que muitos verão Caim como uma mera leitura de entretenimento e, como admiradores de Saramago, vão se divertir com suas tiradas fantásticas sobre a Bíblia e a religião institucionalizada. Todavia, acredito que daqui a algumas décadas, este opúsculo de umas 172 páginas será considerado um documento histórico sobre um período de nossa civilização ocidental em que o sagrado é descido de seu altar e trazido para o escarnecedor nível do profano como reação ao recrudescimento dos discursos religiosos moralistas que desejam, aparentemente sem vantagens para ninguém, barrar os avanços da ciência e dos direitos humanos. Será uma amostra de que ao absurdo da suposta veracidade dos relatos bíblicos do Antigo Testamento não se deve responder somente com ciência pura, mas também com novos absurdos, os absurdos do espírito e da imaginação, os quais, apesar de sua idêntica implausibilidade, contrabalançam, com seus palavrões, sensualidade e humor, o ascetismo irrealista da ladainha cristã.


“A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.”
(Caim, São Paulo, Companhia das Letras, 2009, p. 88.)




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