sexta-feira, 14 de outubro de 2022

A visita de Bolsonaro a Prudentópolis


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O filósofo e antropólogo Claudio Cavalcante Junior, com o qual há alguns meses mantenho intensas trocas intelectuais pela internet, nasceu no estado do Rio de Janeiro e é casado com uma descendente de ucranianos, com quem mora na cidade paraense de União da Vitória. Ativo defensor da comunidade ucraniana no Brasil e da existência da Ucrânia face ao imperialismo russo, realizou vários estudos sobre as práticas identitárias dos descendentes de imigrantes ucranianos e milita nas mídias sociais contra as mentiras e deturpações propagadas por Vladimir Putin.

Há alguns dias ele me enviou “Visita de Bolsonaro a Prudentópolis: inserção e contexto brasileiro”, texto que ainda estava em estado de rascunho para a publicação em mídias ucraino-brasileiras, e me autorizou a publicá-lo como ainda se encontrava. Portanto, fiz algumas correções e bem poucas adaptações, embora o Claudio seja totalmente responsável pelo conteúdo e argumento em si. Sua tese principal é a de que os descendentes de ucranianos no Brasil guardam uma relação tão tênue com a Ucrânia moderna que o mais correto e exato é dizer que no sul do Brasil floresce uma “cultura ucraino-brasileira”, e não uma cópia fiel da cultura ucraniana hoje existente na Europa. A relação com a religião é apenas um tempero que torna essa mistura ainda mais picante.



O dia 16 de setembro de 2022 marcou a cidade de Prudentópolis, quando num misto de comício eleitoral e evento cívico, a cidade recepcionou o presidente da República e candidato a reeleição Jair Bolsonaro. Seu roteiro começa com a chegada de avião a uma cidade próxima (Guamiranga), onde o presidente-candidato monta em uma moto e leva na garupa Paulo Martins, “seu candidato ao Senado” no estado do Paraná. Pelas imagens divulgadas nas redes sociais e imprensa, Bolsonaro e Martins ganham destaque na comitiva também por serem os únicos motociclistas sem capacete.

Era uma sexta-feira, mas as informações de que o candidato à reeleição visitaria a “Pequena Ucrânia”, como Prudentópolis é conhecida, já circulava nas redes sociais desde o início daquela semana. Isso já mobilizava alguns descendentes de ucranianos da minha rede, como Andreiv, funcionário público, morador de Curitiba, 38 anos, vice-presidente da SUBRAS e dançarino do Barvinok. Um progressista que às vésperas da visita de Bolsonaro à cidade me disse no direct do Instagram: “Está difícil defender a comunidade”. Dias depois de termos tido essa conversa, cheguei à conclusão que excluindo o presidente da RCUB, Vitório Sorotiuk, é muito difícil entre os ucraino-brasileiros progressistas falar sobre política (e eleições), o que dá a este grupo pouca visibilidade.

Um dia antes da visita, o prefeito decretou ponto facultativo para os funcionários públicos municipais em 16 de setembro. A prefeitura também convocou para a recepção do presidente o grupo de dança ucraniana local por ser uma instituição de “utilidade pública”. Também houve o envolvimento da prefeitura na organização da motociata, onde foi sugerido quem emprestaria a moto que seria utilizada pelo presidente. A “honra” ficou com um prudentopolitano.

O espetáculo de 16 de setembro começa com a motociata, trilha sonora embalada por jingle de Bolsonaro e os gritos de “mito” da plateia: a caravana passa por rodovia e adentra o centro de Prudentópolis, em um cenário que nas redes sociais foi descrito pelo prudentopolitano Fábio no Facebook como parecendo “Copa do Mundo”, devido à quantidade de bandeiras do Brasil. Estava montado o cenário, onde prudentopolitanos estavam exercendo uma espécie de civilismo, um retrato de uma profunda imersão na identidade nacional brasileira.

O lugar do comício de Bolsonaro e do governador do Paraná e candidato à reeleição Ratinho Jr. não poderia ser mais emblemático: uma rua central da cidade em frente à Igreja Ucraniana São Josafat, que pertence à IGCU. Havia também bandeiras da Ucrânia (uma na multidão e algumas nos espaços da paróquia), mas se perdiam entres as cores verde e amarela do Brasil que estavam não só nas bandeiras, mas na roupa da multidão.

Antes do presidente-candidato falar, houve, um momento cívico com a execução do Hino Nacional Brasileiro e falas de autoridades, como do prefeito municipal, que lembrou entre outras coisas que 80% dos habitantes da cidade tinha origem ucraniana, e do ex-vereador e presidente da comissão da Paróquia São Josafat, que é envolvido nas atividades culturais ucranianas e complementou a fala do prefeito sobre a importância da agricultura na cidade. No carro de som, estava presente também a candidata a deputada federal pelo partido Progressistas, Fabiana Tronenko, ex-embaixatriz da Ucrânia no Brasil, que fez campanha entre os ucranianos do Paraná com foco na agenda conservadora.

A fala de Bolsonaro durou quase sete minutos. Entre os assuntos, falou que desejava a paz (uma referência à guerra na Ucrânia), que eram “povos irmãos”, falou da economia e do grande trunfo naquele contexto paranaense: a agenda conservadora. Defendeu a “família brasileira”, se posicionou contra o aborto e contra a liberalização de drogas. Lembrou a todos que acreditava em Deus, que era leal ao povo brasileiro e, em ataques ao comunismo, bradou que “nossa bandeira verde e amarela jamais será vermelha”. A multidão respondia com muito entusiasmo ao discurso do presidente-candidato.

Nas redes sociais esse encontro com o presidente nas ruas tinha tons que incluíam a honra de receber a maior autoridade brasileira: Rodrigo, um prudentopolitano, componente do grupo folclórico local, me contou que apesar do receio de ser considerado “bolsominion” assumia a responsabilidade de dançar para uma autoridade, como havia feito em 2011, quando seu grupo dançou na posse da presidenta Dilma.

Além da recepção como uma celebridade, havia prudentopolitanos que pareciam identificar na pessoa do presidente alguém com poderes “religiosos”. Uma das postagens em story no Instagram mostrava o presidente em frente à multidão com a palma da mão sob a cabeça de uma menina e na legenda estava escrito: “Ele abençoou minha filha”. Outras postagens mostravam a felicidade estampada no rosto de crianças que haviam encontrado o presidente, outros mostravam adultos emocionados por ter conseguido tocar em Bolsonaro.

A religião tem uma força grande entre descendentes de ucranianos, e Prudentópolis tem algumas particularidades. A cidade tem dois padroeiros (um “brasileiro/civil” e outro “ucraniano”) e é também conhecida como “capital nacional da oração”. Apesar disso, não parece estranha essa identificação do presidente como uma espécie de tocado por Deus, o que tem sido bem trabalhado nos últimos anos e, potencializado em uma eleição polarizada, normalmente narrado como sendo o palco da luta do bem contra o mal, como ficou claro no discurso de Bolsonaro. É inclusive da religião que os ucraino-brasileiros mais se engajam na guerra contra os invasores russos: com orações direcionadas a vítimas da guerra e pedidos de paz.



No palanque, Bolsonaro ensaiou um “Slava Ukraíni” (“Glória à Ucrânia”, uma saudação nacionalista), que não saiu muito bom. Depois de descer do palanque, ele vai à igreja São Josafat que foi apresentada pelo pároco e pelo bispo ucraniano local. Lá entre os membros da Irmandade dos Cossacos de Prudentópolis, ele entoa novamente, com melhor pronúncia, o “Slava Ukraíni”. Depois foi oferecido ao presidente um almoço típico ucraniano no clube XII (da paróquia ucraniana), onde o mesmo foi recebido com as tradicionais boas-vindas com pão e sal oferecidos por uma refugiada ucraniana, que vive em Prudentópolis, seguidas de canção (hino evangélico em português) executada por outra refugiada e da apresentação do grupo folcórico ucraniano Vesselka da cidade. Neste almoço estava presente também o missionário evangélico ucraniano, um jovem nascido na Ucrânia que organizou a vinda de refugiados que se estabeleceram em Prudentópolis, em Guarapuava e no norte do Paraná. Segundo relato do presidente do Comitê Humanitas Brasil Ucrânia, organização ligada à RCUB que surguiu para promover ajuda humanitária às vítimas da guerra, o missionário teria relações próximas com uma ex-ministra de Bolsonaro, Damares Alves, que também é pastora evangélica.

No fim daquele dia, houve manifestações de ucranianos progressistas através de stories nas redes sociais, ora com um simples “Fora Bolsonaro”, ora lembrando a visita de Bolsonaro à Federação Russa para encontro com o presidente Putin, na semana anterior ao início da guerra em total escala da Rússia na Ucrânia. Um assunto inclusive difícil de tratar com ucranianos bolsonaristas, que fogem do assunto quando são perguntados sobre atividades e falas de Bolsonaro a respeito. Lembram que Lula também fez declarações infames sobre a guerra ou sobre o presidente da Ucrânia.

Entre os prudentopolitanos parecia haver um clima positivo com relação à visita: antes dela, André, um professor de inglês envolvido em atividades culturais ucranianas, me contou no direct do Instagram que achava positiva a visita de Bolsonaro. Mesmo se declarando eleitor de Bolsonaro, ele não o poupou de críticas pelo momento da visita ao reclamar que ele deveria ter ido à cidade quando chegaram os refugiados da guerra. Entretanto, após a visita visualizo uma reação clara aos progressitas: Tati, uma prudentopolitana, folclorista, ex-presidente da AJUB, em story no Instagram defendeu que a Igreja não havia sido palanque de Bolsonaro. Quando perguntei o porquê daquela postagem pelo direct do Instagram, ela disse que havia “(...) pessoas sem noção, que só pq são contra o bolsonaro, acharam ruim que ele foi visitar a nossa Igreja”. Ela não quis nomear para quem era aquela postagem, reduzindo os destinatários a “uns ucrainos”.

O evento citado mostrou como a sociedade brasileira, a sociedade envolvente, através de ações do Estado, foi exitosa na transformação de descendentes de ucranianos em brasileiros: apesar da preservação da identidade e cultura própria, estes foram incorporados de forma profunda à sociedade brasileira, mantendo quase nenhuma lealdade ou solidariedade aos “irmãos ucranianos” e a “pátria-mãe Ucrânia”.

Em Prudentópolis, podemos observar demonstrações do que poderia ser considerado patriotismo brasileiro (o termo “patriota” é usual no discurso bolsonarista), o que inclui aspectos devocionais: não é raro que ucraino-brasileiros greco-católicos expressem a devoção à padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, seja em visitas à cidade de Aparecida do Norte, onde se encontra o santuário dedicado à santa, que é exposto através de fotos nas redes sociais, seja através da presença da imagem em igrejas católicas ucranianas. Inclusive há uma destas imagens na igreja São Josafat, aquela ucraniana que Bolsonaro conheceu em 16 de setembro de 2022.