terça-feira, 11 de novembro de 2014

Do direito ao ateísmo


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NOTA: Artigo do filósofo ateu francês Michel Onfray publicado no site do jornal francês Le Monde a 5 de fevereiro de 2011 e traduzido por mim logo depois de seu aparecimento. Como parte do interesse maior que eu tinha na época pela filosofia ateísta, publiquei-o em fevereiro de 2012 no outro blog que administro, o Materialismo.net. Antes de repostar aqui, fiz uma nova revisão que resultou em algumas modificações. O original, “Du droit à l'athéisme” pode ser lido aqui. Para um aprofundamento maior nas ideias de Onfray a respeito do ateísmo, recomendo especialmente suas obras Tratado de ateologia, A arte de ter prazer: por um materialismo hedonista e sua série Contra-história da filosofia, todas já traduzidas.

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O ateísmo é uma ideia recente na Europa, tão recente que parece ainda estar para nascer... Através dos séculos, os detentores do poder clerical rotularam de ateus um agnóstico como Protágoras, um politeísta como Epicuro, um fideísta (1) como Montaigne, um panteísta como Spinoza ou um deísta como Rousseau, porque eles não acreditavam muito no Bom Deus, em outras palavras, no deus que encarna a lei do lugar e do momento. Por muito tempo o epíteto foi um insulto, antes que desaparecesse seu efeito injurioso na segunda metade do século 20, até voltar a ser, recentemente, a ofensa que fora por séculos.

Foram necessários, no século 17, os escritos de um Pierre Bayle para que enfim se cogitasse a ideia de um ateu virtuoso, de tanto que o sem Deus passava naturalmente por uma pessoa sem lei, visto que sem fé. Ora, sabe-se desde então que a fé não impede ninguém de ser também sem lei, como mostra Simão de Monforte: (2) a crença em Deus justifica racionalmente assassinatos em seu nome. Inúmeros crentes pós-modernos se conformam, de fato, ao grito de guerra do assassino de cátaros que afirmava: “Matai-os todos, Deus reconhecerá os seus!” (Sim, eu sei, na verdade era o núncio Arnaud Amaury, (3) não precisam se precipitar à coluna dos leitores...)

Queiramos ou não, a França é realmente “a filha primogênita da Igreja”, pois, no sentido etológico, a impregnação judaico-cristã em nossa civilização por mais de um milênio é hoje incontestável. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, conforme seu prólogo, foi redigida “na presença e sob os auspícios do Ser Supremo”, e não segundo os princípios descrentes de um Jean Meslier, para nomearmos o primeiro ateu francês – um padre, diga-se de passagem, cujo Testamento (a Bíblia dos ateus, se me permitem a expressão...), descoberto logo após sua morte, em 1729, deve ser lido com toda urgência.

Hoje em dia, a laicidade está na moda. Mas quase sempre essa laicidade é um balaio de gatos que permite aos judeo-cristãos conservarem as numerosas conquistas da antiga religião longamente dominante, e aos muçulmanos reivindicarem um lugar no concerto monoteísta para defender sua crença, tudo em detrimento do ateísmo.

O serviço público, por exemplo, transmite a missa nas manhãs de domingo, e a France-Culture cumpre essa tarefa sem que ninguém ache certo. Talvez fosse oportuno lançar uma petição para tirar do ar essa liberdade de expressão – petição que a milícia freudiana havia a seu tempo lançado contra mim em nome... “da liberdade de expressão”!

Sou ateu declarado, e mesmo assim não me viria a ideia de pedir um direito de resposta, envolto numa petição, para proibir a retransmissão de um ofício dominical! A laicidade de uma Marine Le Pen é hemiplégica: ela é um combate às pretensões sociais do islã, claro, mas em nome do cristianismo. Tal como o feno das charretes nos filmes de faroeste que esconde as carabinas dos insurgentes, essa laicidade dissimula uma arma de guerra contra o que seu pai chamava outrora de “imigração” e em prol dos valores cristãos, europeus, brancos, conservadores e reacionários. Em outras palavras, essa neolaicidade jura sobre a Bíblia que é preciso acabar com o Corão. Ora, podemos não escolher nenhum desses livros ditos sagrados e deplorar igualmente as cruzadas e as contracruzadas.

Ao contrário do que muitos dizem, sou ateu, mas não sou anticlerical. Penso, por exemplo, que a barulheira de pretensos descrentes que insistem em se desbatizar dá crédito à tese de que essa banal cerimônia assimilável ao termalismo é mais do que isso, ou seja, é o que os padres pretendem, já que seria preciso apagar totalmente o vestígio do que eles consideram uma infâmia. Estar ou não estar no rol dos batizados conta tanto quanto figurar entre os titulares de um cartão de fidelidade num supermercado – um verdadeiro ateu tem preocupações melhores... Tampouco me recuso a cruzar a porta de uma igreja para o casamento de um amigo, o batismo dos filhos de conhecidos ou o enterro de alguém próximo, sob o pretexto de que entrar no templo seria como pactuar com... o diabo, que não é mais real do que Deus! Meu pai foi sepultado há um ano na igreja de seu povoado natal, que é também o meu, numa cerimônia concelebrada, a pedido meu, por um amigo dominicano de Bordeaux e um outro amigo, um padre operário, porque eu sabia que meu pai não cogitava deixar este mundo sem uma cerimônia no lugar onde ele havia vivido sua espiritualidade na tradição de seu país – como Montaigne, que se dizia católico na França, como teria sido protestante na Suíça ou muçulmano na Pérsia... Gesto de um filho ateu para com seu pai fideísta.

(1) Fideísta: pessoa que antepõe a fé à razão, ou adepto da corrente doutrinária católica com essa atitude.

(2) Simão de Monforte (ou Simon de Montfort): nobre franco-normando que protagonizou, em 1209, a cruzada dos albigenses contra os hereges cátaros no sul da França.

(3) Arnaud Amaury (ou Arnau Amalric): abade cisterciense que liderou a referida cruzada dos albigenses.