segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Politizado, apartidário e não comunista


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NOTA: Há exatamente seis anos, alguns meses depois de defender minha monografia de fim de curso e atento aos debates políticos do país, escrevi este texto pro blog Materialismo.net, que intitulei então “Sou um historiador politizado, apartidário e não comunista”. Era minha primeira e mais refinada elaboração explicando por que eu gostava de estudar o comunismo, mas não considerava a mim mesmo comunista, mesmo simpático a algumas bandeiras sociais e libertárias. Deixei o artigo online por um tempo, e uns anos depois tirei, na expectativa de que fosse enfim aderir, mesmo que informalmente, a algum partido ou corrente ideológica. Após muitas idas e vindas, minha entrada na pós-graduação e fixação como estudioso do PCB, as turbulências políticas desde 2016 e o cenário de violência que o Brasil vivencia agora, reli há pouco este texto e, apesar de seu tom idealista e subjetivo, percebi que reflete exatamente o que penso na atualidade. Por isso, republico-o abaixo, mesmo que nem tudo mereça concordância, num momento em que estamos encurralados entre o aparelhamento da história e a destruição da própria disciplina. Quem tem fôlego de leitura, pode ler cada item como um só parágrafo.



1. Este texto é bastante pessoal, mas não deixa de ter um inevitável caráter dissertativo-argumentativo. Seria muita pretensão um jovem de 24 anos, recém-formado e ainda sem emprego fixo autodefinir-se como historiador? Seria muita vaidade atribuir a mim mesmo, um inexperiente intelectual em formação, adjetivos tão marcantes e definidores de uma postura no mundo tão polêmica?

Não penso dessa forma, e inclusive a falsa modéstia que toma conta de nosso meio acadêmico, uma falsa humildade que castra iniciativas e criatividades e cria profissionais medíocres e acríticos, consiste numa ineficaz “curvatura da vara para o outro lado”, não curando o pedantismo inerente a muitos de nossos pesquisadores.

De fato, definir-me como alguém preocupado e sintonizado com os destinos de minha sociedade, não filiado ou a serviço de nenhum partido ou agrupamento político e não aderente explícito da ideologia comunista marxista é um desabafo para mim mesmo e, creio e espero, uma contribuição saudável àqueles que acompanham meu incipiente trabalho e depositam nele sérias expectativas.

2. Todo cientista deve ser politizado, não importa em que área ou ramo profissional atue, e essa é uma exigência ainda mais premente no Brasil, onde muitas pessoas padecem de necessidades materiais e espirituais e carecem, mais do que ninguém, dos benefícios de uma tecnologia eficaz e refinada. A politização não implica necessariamente a adesão pessoal a um dogma ideológico predefinido nem a filiação ou recrutamento a qualquer partido político registrado ou organização que arregimente militantes em torno da mesma práxis político-ideológica. Também não exclui tudo isso, claro, mas pressupõe, antes de qualquer alistamento e independentemente dele, um amplo conhecimento, ainda que superficial, da realidade que cerca imediatamente o cientista (instituição, classe social, grupo étnico, cidade, província ou país) e de um espaço geográfico e grupal mais amplo (continente, subcontinente, comunidade linguística, civilização e o mundo inteiro).

A ciência não é um fim em si, não se faz para si mesma, mas atende às necessidades urgentes de pessoas reais que sofrem e devem ter seus problemas mitigados. O cientista, portanto, não tolera nenhum tipo de sadismo, injustiça, opressão ou angústia inútil, é um humanista por natureza, defende o uso da técnica e do conhecimento a serviço do bom, do prazeroso e do verdadeiro a serem desfrutados por todos, meta de um construtor de ciência alocada antes de qualquer opção partidária, existencial ou pessoal.

Não há como transigir quanto a isso: se o cientista não defende ideais nobres, não é um benfeitor, mas um monstro, um psicopata com um revólver nas mãos. A sociedade capitalista tem privatizado os saberes em prol do lucro de poucas pessoas ou empresas e se aproveita da escassa ou nula consciência crítica e informativa dos jovens para perpetuar o cercamento da ciência em muros, com recursos tão desumanos e mal utilizados como as patentes e os direitos autorais. Essa barbárie deve sofrer alguma oposição.

3. “Tomar partido”, como se sabe, possui o sentido dúbio de se inscrever numa agremiação política e, como descrevi acima, o de adotar um posicionamento consciente diante da realidade circundante. Na primeira acepção, não sou de forma alguma um cientista partidário. Escolhi como tema de pesquisa histórica para a vida o Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922, inúmeras vezes tendo o registro cassado, transformado em 1992 no Partido Popular Socialista (PPS) e registrado novamente como PCB em 1995 por um grupo de militantes que havia resistido à sua dissolução.

É tentador envolver-se pessoalmente com o objeto de estudo durante o trabalho, embora muitos o tenham escolhido justamente por já possuírem esse envolvimento. Paradoxalmente, escolhi o comunismo inicialmente por certa antipatia: eu o julgava uma ideologia assassina, arbitrária e antidemocrática e, influenciado pelo lamentável panfletário liberal-direitista dos grupos socioeconômicos dominantes, desejava compreendê-lo e mostrar às presentes e futuras gerações o que não se deve fazer em matéria de política e ideologia.

Pois bem, fiz minha iniciação científica entre 2008 e 2009, confeccionei minha monografia de fim de graduação em 2011, defendi-a em 2012, li vários livros, consultei documentação primária, cursei matérias, participei de debates presenciais e online e não encontrei os tiranos malévolos que procurava, mas cidadãos sofredores, resistentes, conscientes dos problemas dos mais necessitados e que, com todas as suas deficiências teóricas e intelectuais, mantiveram em pé por 90 anos uma edificação combativa que em todos gerou fascinação e ódio, temor e esperanças, não admitindo neutralidade.

Obviamente nunca deixou de me incomodar a questão sobre como uma filosofia inicialmente libertária e emancipatória pôde inspirar regimes políticos que, para muitos, significaram o que houve de mais cruel, opressivo e usurpador na história da humanidade. Mas o dilema de aderir a um ou outro partido continuava a me atormentar consideravelmente. Concluí que esse comprometimento implicava uma dedicação à qual eu não estava disposto, não por preguiça ou maldade, mas porque via na atividade científica consciente um ato político em si mesmo, capaz de contribuir com qualquer setor social interessado, mas conforme as determinações da verdade e da justiça.

Heróis e gênios possuem a capacidade extraordinária de atuar em duas ou mais frentes simultâneas em prol de uma só causa, sem desperdiçar tempo, desempenho e energias. Mas não sou herói nem gênio, sou um ser humano simples que enlouquece se não mantiver o foco, e por isso optei pela atividade científica em detrimento do partidarismo. Não são os comunistas que não me merecem, mas eu que não mereço os comunistas.

4. Muitos poderão objetar ainda que a opção pelo comunismo não exige necessariamente a filiação a um partido, assim como aceitar Jesus, para uma grande multidão, não significa automaticamente a adesão a uma igreja instituída. Bem, não sou comunista nem cristão, não por negligência, mas novamente por desmerecimento e por questões de foco. Comunistas e cristãos fazem muitas coisas boas em nome da causa ou da própria razão, mas também podem cometer abusos por cegueira dogmática ou transtornos na consciência, como a história humana já demonstrou cabalmente.

Predefinições ideológicas, assim, não compensam tanto quanto o refinamento do caráter, com reflexos na vida pessoal e profissional, nem ajudam a fazer ciência, a qual exige criatividade, pensamento autônomo e um posicionamento crítico diante de qualquer incoerência, venha ela de quem vier, com um amadurecimento mais pessoal do que no nível de assimilar passivamente instruções vindas de fora.

Ainda de forma comparável ao cristianismo, não existe um consenso, no plano teórico e prático, sobre qual é o “verdadeiro” comunismo, e condicionar a vida e o trabalho ao envolvimento com miudezas desse gênero traz prejuízos incalculáveis a ambos. A compreensão objetiva, e não o compromisso sentimental, de um universo tão vasto, contraditório e multifacetado é uma atividade muito mais premente e benéfica até mesmo aos próprios comunistas, e é dessa forma que desejo lutar pelo bem, pela verdade e pela justiça.

O historiador-detetive, como cientista, busca uma compreensão cada vez mais precisa do que aconteceu objetivamente num determinado período ou evento histórico, mas a atribuição de um significado a esse material é função dos mais diversos grupos ideológicos e sociais de determinado espaço geopolítico. Não que o profissional, muitas vezes de forma inconsciente, não sirva a certas forças ocultas interessadas, devendo ao menos ter consciência delas e direcioná-las à satisfação mais geral possível, nem que ele mesmo possa ocasionalmente empreender a tarefa significadora. Mas, em todo caso, a adesão político-ideológica quase sempre exige coragem e disponibilidade para priorizar uma camada social específica, no caso do comunismo, o proletariado oprimido.

É uma sensação paradoxal de impotência e amor à humanidade que me faz, ao mesmo tempo, abranger tudo e não escolher nada. Mais uma vez, não é o comunismo que não me merece, mas eu que não mereço o comunismo.

5. A adesão ao comunismo e a filiação a um Partido Comunista, dadas a antipatia e o desconhecimento que a sociedade média lhes reserva, são opções que exigem valentia e disposição, mais do que qualquer escolha na vida. Mas buscar compreender objetivamente temas que foram alvo de grande paixão nos últimos 150 anos, especialmente no século 20, também não é para todos, em vista do grau de desprendimento, raciocínio crítico e amadurecimento intelectual que demandam.

A história partidarizada ou ideológica não é ruim, mas despende uma quantidade de forças e energias que poderiam ser usadas por pessoas cautelosas, mas sinceras, um tanto insossas, mas laboriosas, a realizarem o trabalho inglório da pesquisa empírica que devem ofertar aos inúmeros e distintos grupos significadores de nossa sociedade, para bem de uma própria liberação de tempo e talento destes.

A verdade e a justiça dos fatos darão conta de aparar as arestas prejudiciais, e a ciência poderá receber a devida dignificação por colaborar arduamente no esclarecimento sobre algumas das pessoas mais injustiçadas da história do Brasil.


Bragança Paulista, num chuvoso e
frio feriado de 12 de outubro de 2012.