segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

“Antes da era comum” e “Era comum”


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Este texto é essencialmente minha tradução de partes do artigo “Common Era (CE)” da Wikipédia em inglês, mais alguns acréscimos meus. Resolvi fazer esta publicação pra explicar o interessante conceito de Antes da Era Comum (AEC) e Era Comum (EC), que alguns trabalhos historiográficos têm usado, e que de fato vi pela primeira vez num texto traduzido ainda em 2006, quando fazia a matéria de História Medieval na graduação da Unicamp. Penso basicamente que o uso de “AEC” e “EC” no lugar de “a.C.” (antes de Cristo) e “d.C.” (depois de Cristo), além de mais elegante, faz jus à própria exatidão histórica da doutrina cristã. Primeiro, porque não abandonaria a contagem tradicional dos anos, como se tentou fazer outras vezes, entre as quais com o calendário revolucionário francês, dado que a atual contagem já é consagrada no mundo inteiro, mesmo nos países muçulmanos, em que pra fins religiosos vigora o calendário islâmico. E segundo, porque se admitirmos a existência de um Jesus histórico (em cujo mérito não vou entrar aqui), as melhores pesquisas históricas estabelecem sua data de nascimento aproximada entre 6 e 4 a.C. (por nosso calendário), embora na prática nunca vai ser possível estabelecer uma data real exata. Isso, claro, se descontarmos outras disputas teológicas e hermenêuticas dentro do cristianismo e entre várias religiões.

Parece estranho mesmo dizer que “Jesus Cristo nasceu antes de Cristo”, mas mais estranho ainda seria reverter um sistema ao qual o mundo inteiro já se adaptou, sendo sua ocasional reforma ou abolição muito mais caótica do que benéfica. Assim, embora reconheçamos que nossa contagem dos anos teve origem no cristianismo, com pitadas de paganismo greco-romano (aí inclusos os calendários juliano e gregoriano), a assumimos como uma Era Comum, por sua aceitação universal, sem distinção de crença ou cultura (algum ateu, exceto Stalin num breve momento, ousaria recusar nosso calendário?...). Eis o principal do conteúdo da Wikipédia, com poucas adaptações, que vai adicionar muito mais ao que falei aqui:


Common/Current Era (Era Comum/Corrente) e Before the Common/Current Era (Antes da Era Comum/Corrente) são notações alternativas às originais Anno Domini (AD, “no ano do Senhor (de)...”) e Before Christ (BC) – sendo mais comum em português “antes de Cristo” (a.C.) e “depois de Cristo” (d.C.) –, ambos os pares designando a mesma era-calendário e sendo numericamente equivalentes: “2022 EC” = “2022 d.C.”, e “400 AEC” = “400 a.C.”. A expressão remonta a 1615, quando apareceu pela primeira vez num livro de Johannes Kepler pela expressão latina annus aerae nostrae vulgaris (ano de nossa era comum), e a 1635 na expressão inglesa “Vulgar Era” (Era Vulgar). Em latim, vulgus significa “o povo comum”, e aqui faz contraste com “regnal year” (ano real), sistema de datação usado por alguns povos monárquicos que marcam “eras finitas” de acordo com seu soberano. Os países da Commonwealth britânica ainda usam esse sistema, mas de forma bastante limitada, em que de 8 de setembro de 2022 (data da posse, mas não da coroação) a 7 de setembro de 2023, por exemplo, teríamos o ano 1 do reinado de Charles 3.º (em latim oficial, “1 Carolus III”), e assim sucessivamente.

A expressão Common Era pode ser encontrada em inglês desde 1708, e se tornou mais amplamente usada em meados do século 19 por teólogos judaicos. Em fins do século 20, as siglas “BCE/CE” (“EC/AEC”) passaram a se tornar populares em publicações acadêmicas e científicas por serem religiosamente neutras. Também são adotadas por aqueles que desejam incluir os não cristãos ao não se referirem explicitamente a Jesus como “o Cristo” nem como “Dóminus” (o Senhor), como ocorre nas abreviaturas tradicionais.

Além do livro de Kepler já citado, lê-se num livro editado em 1701 por John LeClerc “Before Christ according to the Vulgar Æra, 6” (antes de Cristo de acordo com a Era Vulgar, 6); num livro de 1716 pelo deão Humphrey Prideaux, “before the beginning of the vulgar æra, by which we now compute the years from his incarnation” (antes do início da era vulgar, pela qual contamos agora os anos desde sua encarnação); e num livro de 1796, “vulgar era of the nativity” (era vulgar da natividade). Por outro lado, o primeiro uso conhecido da expressão “Era Cristã” aparece na folha de rosto de um livro de teologia de 1584, em latim (annus aerae christianae, “ano da era cristã”), e em 1649 a mesma annus æræ Christianæ apareceu no título de um almanaque inglês. Uma efeméride (tabela astronômica) de 1652 constitui o primeiro exemplo encontrado até hoje do uso de Christian Era em inglês.

O primeiro uso encontrado até hoje da expressão “before the common era” (antes da era comum) está num trabalho de 1770 que também usa common era e vulgar era como sinônimos, na tradução de um livro escrito originalmente em alemão. A edição de 1797 da Encyclopædia Britannica usa as expressões vulgar era e common era como sinônimos, em contraposição ao regnal year. Alexander Campbell escreveu em seu livro Living Oracles de 1835 (minha tradução livre): “A Era vulgar, ou Anno Domini; o quarto ano de Jesus Cristo, o primeiro dos quais teve apenas oito dias”, e também se refere à common era como sinônimo de vulgar era devido “ao fato de que Nosso Senhor nasceu no quarto ano antes da era vulgar, chamada Anno Domini, fazendo assim (por exemplo) o ano 42 de seu nascimento corresponder ao ano 38 da era comum”.

A expressão “era comum” com iniciais minúsculas também aparecia no século 19 num sentido “genérico”, nem sempre se referindo à Era Cristã, mas a qualquer sistema de datas usado comumente no curso de uma civilização. Daí “a era comum dos judeus”, “a era comum dos muçulmanos”, “a era comum do mundo”, “a era comum da fundação de Roma”. Quando a referência à Era Cristã era explícita, às vezes se usava, por exemplo, “era comum da Encarnação”, “era comum da Natividade” ou “era comum do nascimento de Cristo”. Embora os judeus tenham seu próprio calendário hebreu, eles frequentemente usam o gregoriano sem a marcação “AD” ou “d.C.”. Em 1825, a abreviatura “VE” (Vulgar Era) já era usada entre os judeus pra indicar anos no calendário ocidental, e também na atualidade alguns judeus usam a expressão “Era Corrente”.

Alguns acadêmicos dos campos da teologia, educação, arqueologia e história adotam a notação “AEC/EC”, apesar de algumas divergências, e vários guias de estilo estão preferindo ou obrigando seu uso. Os defensores da nova notação argumentam que seu uso mostra sensibilidade aos que usam a mesma numeração dos anos que se originou dos e é usada atualmente pelos cristãos, mas que não são eles mesmos cristãos. Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU, argumentou que “o calendário cristão não pertence mais exclusivamente aos cristãos. Pessoas de todas as crenças passaram a usá-lo por mera questão de conveniência. Existe tanta interação entre pessoas de diferentes crenças e culturas – diferentes civilizações, se preferir – que é necessário algum modo compartilhado de contar o tempo. Assim, a Era Cristã se tornou a Era Comum”.

Os opositores cristãos, não cristãos e irreligiosos da notação “AEC/EC” geralmente fazem notar que não há diferença na origem dos dois sistemas. “AEC/EC” ainda se baseiam em “a.C./d.C.” (inglês “BC/AD”) e indicam os períodos antes e depois do nascimento de Jesus. Alguns se opõem à nova notação por razões claramente religiosas, pois a notação tradicional é baseada no ano presumido da concepção ou do nascimento de Jesus, e certos cristãos se sentem ofendidos com a remoção à referência a ele na contagem dos anos. Raimon Panikkar, padre católico e escritor sobre assuntos inter-religiosos, argumentou que “AEC/EC” é a opção menos inclusiva, pois a seu ver o calendário cristão continua sendo usado, bem como imposto a outras nações.

Em 1993, o especialista da língua inglesa Kenneth G. Wilson especulou em seu guia de estilo um cenário em que, por um efeito cascata, “se realmente abandonássemos a convenção ‘a.C./d.C.’ [BC/AD], quase certamente alguns argumentariam que também deveríamos abandonar o próprio sistema de numeração convencional [dos anos], devido à sua base cristã”. O efêmero calendário republicano francês, por exemplo, iniciava a contagem a partir do primeiro ano da Primeira República Francesa (1792) e rejeitava a semana de sete dias (por suas ligações com o Livro do Gênesis) em prol de uma semana de dez dias.



“Humm, AEC e EC... Isso parece ser uma boa ideia!”